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Do acesso restrito à democratização do texto impresso

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 85-97)

II. LA REGENTA: O RETRATO DE UMA SOCIEDADE LEITORA

2.1. Do acesso restrito à democratização do texto impresso

No mundo ocidental, a leitura “constituía-se, da Antigüidade até a Idade Média, em exercício para uma elite erudita” (LOBO, 1992, p.231), ou seja, era uma atividade restrita e limitada, destinada somente a uma pequena parcela da sociedade, composta por membros da alta nobreza e do clero. No Renascimento, com o surgimento da nova técnica desenvolvida por Johannes Gutenberg e com a difusão da alfabetização através das escolas, essa situação se modifica, e esta mudança, sem dúvida, muito contribuiu para a formação de um novo panorama social, político e cultural na Europa.

A partir destas transformações, a cópia manuscrita40 deixa de ser o único recurso disponível para garantir a multiplicação e a circulação dos textos no cenário europeu, e por reduzir bastante o custo da fabricação do livro, o tempo necessário para a sua produção, que era longo ao tempo do manuscrito, a invenção de Gutenberg possibilita, já na primeira metade do século XV, a circulação dos textos em uma escala antes impossível e inimaginável. Com isso, cada leitor pode ter acesso a um número maior de livros, e cada livro pode atingir um número maior de leitores.

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É oportuno comentar que a cópia manuscrita, geralmente realizada pelos monges, era uma prática artesanal, lenta e, muitas vezes, imprecisa, pois se cometiam muitos erros. Além disso, os livros eram tão caros que só os mais nobres e o clero tinham dinheiro suficiente para comprá-los e se instruir.

Nos séculos seguintes, XVI e XVII, notou-se que essa disposição ainda se mantém muito presente na sociedade européia, que, por sua vez, teve de reorganizar seus tradicionais sistemas políticos e sociais em decorrência do surgimento de novas cidades, ao invés de feudos, e de regiões cada vez mais voltadas às práticas comerciais. Neste caso, tanto a escrita como a leitura tornam-se atividades essenciais ao homem, principalmente para aqueles que se empenham em fortalecer o capitalismo.

Viva, Diderot!, gritaram e depois: <<Bravo Voltaire! Aos menos eles são contra a ignorância e o fetichismo do povo. Mostram- lhe os caminhos da liberdade! Emancipam-no! Em primeiro lugar, que todo o mundo saiba ler jornais! Não mais analfabetos! Que votem! Que leiam!>> (tradução nossa) 41.

No século XVIII, período marcado pelo predomínio das idéias iluministas42, pelas fervorosas manifestações burguesas e pelo processo de industrialização, o texto impresso passa a exercer um papel definitivo “nas adesões à revolução, no interesse pela política, nas diversas expressões de rebeldia, e até na invasão, por parte das mulheres ou dos burgueses e trabalhadores, de ordens da vida social antes vedadas a eles” (CATELLI,

41 CÉLINE, L.-F. Viaje al fin de la noche [1932]. Trad. de Carlos Manzano. Barcelona: Edhasa, 1993. In: CATELLI, Nora. Testimonios tangibles- Pasión y extinción de la lectura en la narrativa moderna. Barcelona: Editorial Anagrama, 2001. p.17. “¡Viva, Diderot!, gritaron y después: <<¡Bravo Voltaire! ¡Al menos ésos son tipos que no dejan reventar en la ignorancia y el fetichismo al buen pueblo! ¡Le muestran los caminos de la libertad! ¡Lo enmancipan! En primer lugar, ¡que todo el mundo sepa leer los periódicos! ¡No más analfabetos! ¡Que voten! ¡Que lean!>>”.

42 É importante comentar que tanto Voltaire como Diderot acreditavam na idéia de que o povo poderia conquistar sua liberdade por meio da leitura, e, devido a isto, defendiam veemente as propostas de escolarização da nação, o que muito contribuiu para o fim da ignorância e da alienação do povo, manipulado pelo regime monárquico. A partir daí, o proletariado, principalmente, passou a ver a instrução como um caminho de emancipação, ou seja, passou a vê-la como instrumento de luta ideológica contra a política e o sistema vigentes.

2001. p. 28. Tradução nossa)43. Posteriormente à consolidação do capitalismo e às diversas transformações ocasionadas pelo sistema, nasce na Europa uma importante expressão popular, antes reprimida pela arbitrariedade dos governos conservadores. Neste período, muitas vozes ocultas, através de jornais, revistas e folhetins, começam a se manifestar, todas a favor de uma sociedade mais livre, a qual os indivíduos pudessem ter, de fato, todos os seus direitos reconhecidos e não oprimidos.

A literatura, que até então pouco se preocupava com as expressões políticas e sociais, passa a ser, sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII, um importante veículo de transmissão e discussão de idéias, uma vez que questões relacionadas à atualidade são incluídas nos textos literários. Sendo assim, desde a Revolução Francesa, principal acontecimento do século XVIII, o homem passa a conquistar, a partir do texto impresso, uma forte presença no espaço político e social, ultrapassando os limites de suas capacidades individuais, e é nesse contexto burguês que vamos verificar um dos maiores acontecimentos do século XIX: o crescimento do público leitor.

No século XIX, a rápida expansão da imprensa popular, acompanhada da extraordinária proliferação de todos os gêneros, é “o fenômeno mais importante do movimento editorial do século XIX” (CHARTIER, Anne-Marie & HÉBRARD, Jean, 1995. p.30). Nesta época, jornais como Le Figaro, The

Times e La Gaceta se fortalecem na Europa e no mundo inteiro, estimulando

43 “En las adhesiones a la revolución, en el interés por la política, en las diversas expresiones de rebeldía, y hasta en la invasión, por parte de las mujeres o de los burgueses y trabajadores, de órdenes de la vida social antes vedados”.

o crescimento do público leitor cada vez mais interessado na aquisição da informação e do conhecimento. Outro excelente exemplo, que marca a importância dos meios de comunicação no processo de democratização do texto e do surgimento de um novo público leitor, é o jornal cubano La Aurora, publicado em 22 de outubro de 1865 por Saturnino Martínez. Charuteiro e poeta, Martínez teve a idéia de publicar um jornal para os trabalhadores da indústria de charuto El Fígaro, abordando questões relacionadas à política e à cultura; publicava artigos sobre ciência e literatura (poemas e contos). No jornal, foram publicados também trabalhos dos principais escritores e intelectuais cubanos da época, além de traduções de autores europeus como Chateaubriand, críticas de livros, peças teatrais e denúncias sobre as péssimas condições de trabalho. Os trabalhadores das fábricas de charutos pagavam um leitor, que se sentava junto às bancadas de trabalho e lia alto enquanto eles manuseavam o fumo. O material dessas leituras, escolhido de antemão pelos operários, variava, segundo Manguel, “(...) de histórias e tratados políticos a romances e coleções de poesias clássica e moderna” (MANGUEL, 2002, p.135), e o sucesso das leituras públicas, realizadas nos próprios locais de trabalho, foi tão surpreendente que outras fábricas começaram a seguir o exemplo da El Fígaro, fato que corroborou a grande capacidade de organização e entrosamento das classes operárias no século XIX, período determinado pelo crescimento das idéias socialistas e pela expansão dos movimentos trabalhistas.

Marcado, portanto, pelo fortalecimento da imprensa, pela urbanização das novas cidades, pela industrialização e pela organização da vida pelos

parâmetros da burguesia, o século XIX assume, indiscutivelmente, um importante papel na história da leitura no mundo ocidental, contribuindo, assim, com o notável ingresso de um novo público no mundo das letras, dentre os quais podemos destacar o feminino.

Com a massiva expansão do texto impresso, um dos públicos mais favorecidos no século XIX foi o feminino. Motivadas com a formação de um novo panorama social, cultural e educacional, as mulheres passam a ingressar, com muito prazer, no mundo da leitura, tornando-se, indiscutivelmente, expressivas consumidoras da literatura popular, em especial do romance44. Este, por sua vez, é constantemente lido, relido, decorado, citado e recitado, e sua leitora se identifica plenamente com as personagens, decifrando “sua própria vida através das ficções” (CAVALLO & CHARTIER, 2002, p.29).

Por serem consideradas criaturas de capacidade intelectual limitada, imaginativa, frívola e emotiva, os romances eram, em sua maioria, produzidos para o público feminino, e estes, dado o tratamento da vida íntima, faziam parte da esfera privada a qual estavam submetidas as mulheres burguesas naquele período. Já as leituras práticas e instrutivas, que se distanciavam desse universo mágico presente nos romances, eram destinadas aos homens, principalmente por se referirem aos assuntos públicos, que geralmente se relacionavam à política.

44 Segundo Watt, em Realismo e forma romanesca (1984, p.45-46), o romance pode ser definido como relatório completo e autêntico da experiência humana, uma vez que proporciona a seus leitores pormenores da história, tais como a individualidade dos personagens e as particularidades do tempo e dos espaços, ambos altamente determinados pelo narrador.

Imbuídas por um espírito leitor, muitas mulheres passam a dedicar o seu tempo para ler, desejar e sonhar com os mundos imaginários ou concretos que lhes chegavam por meio da leitura, compensando-as das frustrações e das sensações de isolamento que sentiam devido ao grande tempo de permanência nos espaços privados. Com isso, é válido comentar que a expansão do número de leitores de romances no século XIX deve ser atribuída não só à crescente escolarização das classes médias, mas principalmente à necessidade de ocupar o tempo com lazer (entretenimento), compensando, assim, o tempo vivido na privacidade doméstica.

Por outro lado, se analisarmos a história da leitura no século XIX, veremos, segundo as idéias de Chartier e Cavallo (2002), que o ingresso do público feminino no mundo das letras como leitoras e, principalmente, como escritoras não foi um acontecimento pacífico. Embora o próprio Platão tivesse defendido a idéia de que a educação seria um direito igual para ambos os sexos na tão idealizada república, um de seus discípulos, Teofrasto, argumentava que se deveria ensinar às mulheres apenas o suficiente para administrar um lar, porque a educação avançada “transforma a mulher numa comadre preguiçosa e briguenta”45. A partir desta visão, partilhada por alguns autores, vimos que, para muitos homens, seria melhor que uma mulher não compreendesse muito do que lesse nos livros, já que nada seria mais insuportável do que a instrução feminina. E combater essa lamentável visão foi, sem dúvida, uma das principais dificuldades

45 Ver Platão. “Laws”. ed. Rev. R.G. Bury (Cambrigde, Mass., Londres, 1994), VII, 804 c-e. In: MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.256

enfrentadas pelas mulheres oitocentistas, principalmente para aquelas que se dedicavam a produzir uma literatura voltada para o universo feminino.

Ao longo do século XIX e até bem entrado o XX, a Igreja católica não deixa de estigmatizar o perigo de determinados gêneros literários como o romance e, mais particularmente o romance naturalista. A abundância de obras, folhetos e sermões, muitos deles publicados na tipografia católica, é reveladora das preocupações da Igreja frente ao que considera como uma conseqüência <<perversa>> do racionalismo e do determinismo. (HIBBS-LISSORGUES, 1989, p. 12. Tradução nossa)46.

Durante muitos séculos, a leitura feminina foi submetida a um severo controle que justificava a mediação necessária do clero e de poderes absolutos, por temor às interpretações selvagens e grotescas que podiam levá-las ao caminho da perdição. Satirizando essa intervenção, Voltaire no panfleto satírico “Sobre o terrível perigo da leitura” escreve ironicamente que os livros “dissipam a ignorância, a custódia e a salva-guarda dos estados bem policiados”47, com o intuito de evidenciar a existência da censura como uma forma, ou melhor, como uma prática bastante utilizada pelas autoridades para assegurar o poder público. E, com o objetivo de ilustrar um pouco mais a censura ao conteúdo improper, citamos o fato de a junta militar liderada pelo general Augusto Pinochet ter proibido, em 1981, a leitura de

Don Quijote de la Mancha no Chile, alegando que o livro continha “um apelo

pela liberdade individual e um ataque à autoridade instituída” (MANGUEL,

46 “A lo largo del siglo XIX y hasta bien entrado el XX, la Iglesia católica no deja de estigmatizar el peligro de determinados géneros literarios como la novela y, más particularmente la novela naturalista. La abundancia de obras, folletos y sermones, muchos de ellos publicados en la prensa católica, es reveladora de las preocupaciones de la Iglesia frente a lo que considera como una consecuencia <<perversa>> del racionalismo y del determinismo”.

47 Ver Voltaire, “De l’horrible danger de la lecture”, em Mémoires, suivis de mélanges divers et precédés de “Voltaire Démiurge” par Paul Souday (Paris, 1927).

2002, p. 320), ou seja, conteúdos ameaçadores para a manutenção do regime ditatorial.

O controle ao conteúdo impróprio também está presente no universo literário de várias obras. Emma Bovary, personagem do romance Madame

Bovary, desde sua adolescência, foi uma grande amante da leitura, e,

percebendo a frenética compulsão da nora pela atividade (a “fúria de ler”), a sogra de Emma argumentava que os romances lidos por ela deveriam ser proibidos, pois contaminavam sua alma. Consciente, então, do perigo que estes poderiam lhe causar, a mãe tenta convencer o filho, Charles Bovary, a cancelar a assinatura de livros e revistas que Emma mantinha junto a uma biblioteca, fato que nos evidencia uma constante preocupação em controlar o conteúdo lido pelas mulheres e o acesso público a eles por empréstimos.

O conhecimento em demasia, para muitas autoridades religiosas, poderia representar o desestruturamento do juízo, a contaminação da alma, podendo levar não só mulheres como também muitos homens ao caminho da perdição. Sendo assim, o conteúdo destinado ao público feminino deveria ser cuidadosamente selecionado para que esse não pudesse ocasionar danos à natureza feminina. E, dentro desse contexto de contenção e, muitas vezes, de censura do texto impresso, nos pareceu interessante também destacar um episódio do romance O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, em que as fervorosas beatas, D. Josefa Dias, D. Maria de Assunção e D. Joaquina Gansoso, decidem queimar, na casa da S. Joaneira, com total autorização dos três padres, Natário, Amaro e o Cônego Dias, um volume da

revista portuguesa Panorama, além de um lenço, uma luva e uma cigarreira, pertencentes ao “ímpio”, o ex-noivo de Amélia.

João Eduardo, autor do polêmico artigo publicado no jornal Voz do

Distrito, que criticava a tirânica atuação do clero na sociedade portuguesa,

em especial em Leiria, fora excomungado pela Igreja Católica, após ter agredido fisicamente o padre Amaro. Toda a cidade levantou-se contra o jovem que, movido por um desgostoso sentimento de perda e por ciúmes incontroláveis, teve sua vida marcada pela fanática perseguição de seus inimigos. Rotulado como “o excomungado” por denegrir a moral e conduta dos padres, a presença de João Eduardo passa a se tornar indesejável, e igual a sua existência, todos os seus objetos passam a ser veemente condenados, fato que explica a grande aversão de Natário e a exaltação das beatas ao encontrarem, na casa de S. Joaneira, um exemplar da revista lida por ele:

Todos se voltaram, na surpresa que dava aquela indignação, a olhar o largo volume encadernado que Natário indicava com a ponta do guarda-chuva, como um objeto abominável. D. Maria da Assunção aproximou-se logo de olho reluzente, imaginando que seria alguma dessas novelas, tão famosas, em que se passam coisas imorais. E Amélia chegando-se também, disse, admirada de tal reprovação:

- Mas é o Panorama... É um volume do Panorama...

- Que é o Panorama vejo eu, disse Natário com secura (...). Parece incrível que as senhoras não saibam que esse homem, desde que pôs as mãos num sacerdote, está ipso facto excomungado, e excomungado todos os objetos que lhe pertencem!. (QUEIRÓS, 2004, p.209).

Aqueles objetos, em especial o volume do Panorama, estavam em plena desarmonia com a casa (espaço privado), lugar onde deveria haver tranqüilidade e paz, e com os personagens (não-leitores da revista) que

compunham esse espaço. Tais pertences não faziam parte daquele ambiente, logo, deveriam ser todos efetivamente destruídos. Desta forma, tomadas por um “furor santo”, as mulheres decidem, num auto-de-fé, dar fim a todos os vestígios deixados pelo apaixonado João Eduardo:

D. Josefa Dias acudiu logo:

- Mas nós é que não podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por cima das mesas coisas excomungadas.

- É destruir! Exclamou D. Maria da Assunção. É queimar, é queimar!

D. Joaquina Gansoso arrastara Amélia para o vão da janela, perguntando-lhe se tinha outros objetos pertencentes ao homem. Amélia, atarantada, confessou que tinhas algures, não sabia aonde, um lenço, uma luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha.

- É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada. A sala vibrava com a gralhada das senhoras, arrebatadas num furor santo. D. Josefa Dias, D. Maria da Assunção falavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, numa delícia inquisitorial de exterminação devota. (Ibidem, p. 210).

Na segunda metade do século XIX, notamos que essas intervenções e censuras, geralmente feitas pela Igreja, pelo Estado e, muitas vezes, pela própria família, ainda prevaleciam. Muitos romances lidos principalmente pelas mulheres burguesas foram veemente criticados pelas autoridades e ordens religiosas por distorcerem a imagem da mulher no século XIX, ao pintá-la, por meio de uma linguagem erótica, como “a adúltera com as cores mais atraentes” (CHARTIER & HÉBRARD, 1995, p.68) e também por conduzi-las a buscar sua realização individual, ainda que para isso fosse necessário seguir uma conduta contrária aos princípios cristãos, e, dentro dessa atmosfera, iluminada pelas chamas das inúmeras fogueiras inquisitoriais, muitas mulheres, tanto na Europa como na América Latina, através do texto literário, passam a desempenhar um novo papel na

sociedade, além daquele destinado à família e ao casamento: o de sujeito criador. Estas passam a produzir literatura.

Neste processo de produção, notamos que certos tipos de textos, os pessoais (as correspondências e os bilhetes) são extremamente pertinentes para o estudo do desenvolvimento da escrita feminina, sendo considerados uma das primeiras e mais importantes formas de auto-representação do “eu” feminino.

Nesses textos, geralmente escritos por e para mulheres, as escritoras nos revelam seus interesses individuais, familiares e políticos, ao mesmo tempo em que dão testemunho das opiniões e dos costumes presentes na sociedade. É válido ressaltar que é através desta modalidade de texto que as mulheres do século XIX se sentem habilitadas a expressar diretamente a visão que têm de si mesmas e de seu lugar na sociedade, transmitindo uma idéia muito pessoal da época e do ambiente em que viveram.

A escrita consolidou uma das maiores preocupações femininas daquela época: o direito de a mulher escrever e publicar seus textos literários, e a partir deste princípio, grande parte das escritoras passa a expressar sua visão crítica conforme os seus ideais, caracterizando, assim, a presença de uma pluralidade de pontos de vistas, de opiniões.

Submetidas ao rigor vigilante de uma sociedade que, de forma bem lenta e gradativa, se atreve ao questionamento próprio, as mulheres recorrem à escritura pessoal para dar asas às imaginações proibidas, posicionando-se, muitas vezes, contra o casamento sem amor e à autoridade masculina, uma vez que esta feria o direito de a mulher se separar.

Contrariando todo um código de valores morais estabelecido, sobretudo, pela Igreja Católica, grande parte das escritoras do século XIX foi submetida à censura por promover a distorção da imagem exemplar da mulher e também por conduzi-la a buscar uma realização individual, ainda que para isso fosse necessário seguir uma conduta contrária aos princípios cristãos.

Sendo assim, vimos que a crítica e combate a esse tipo de produção literária se devem, portanto, ao fato de muitas dessas obras estarem vinculando a imagem da mulher a aspectos negativos, vulgares, contrariando, assim, o predomínio do modelo de feminilidade, baseado no recato, na disciplina e no pudor, e a concepção de que “o maior encanto da mulher é a ignorância”48.

Expostos, portanto, os principais temas relacionados à leitura e à formação do público leitor, em especial do feminino, adentraremos, no próximo capítulo, no plano literário de La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín”. Com base nas teorias críticas de Genette e Piglia, seguiremos em direção a uma de nossas grandes propostas: apresentar as mais ilustres figuras da leitura e do leitor no romance clariniano, analisando, evidentemente, os possíveis efeitos acarretados pelas leituras realizadas pelos personagens leitores de uma das maiores obras da literatura espanhola.

48 Ver La Desheredada, em O.C, cit. t.IV, p.990. In: MAYORAL, Marina. “La mujer ideal de Galdós”. Revista Ínsula, n°. 561, Septiembre. Madrid: 1993, p.7. “el mayor encanto de la

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