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Do centro à periferia: deslocamentos territoriais nos séculos XIX e

SUSTENTABILIDADE, A EDUCAÇÃO AMBIENTAL E AS RELAÇÕES BRASIL-FRANÇA

2.4 História das relações Brasil-França: primórdios das questões ambientais e bilaterais

2.4.4 Do centro à periferia: deslocamentos territoriais nos séculos XIX e

A disputa territorial de Brasil e França ao longo da história teve como protagonistas os Estados nacionais, e como objetivo conquistas ligadas diretamente ao poder destes Estados e às territorialidades de suas metrópoles. Todavia, um episódio que durou mais de um século, denominado de Contestado Franco-Brasileiro, marcou profundamente as relações bilaterais numa nova perspectiva, pois deslocava a disputa territorial dos centros nacionais para uma região fronteiriça de interesse periférico, localizada no platô das guianas, na região setentrional da Amazônia (AB’SABER, 1996).

Também conhecido como A Questão do Amapá ou A disputa da região Oiapoque-Araguary, o Contestado Franco-Brasileiro refere-se à disputa pela definição dos limites territoriais entre a Guiana Francesa e o atual estado do Amapá (Brasil), problematizada desde o século XVIII e agravada a partir da segunda metade do século XIX (MARTINS, 2005).

Em 1713, preocupados com o avanço francês na porção setentrional da Amazônia, os portugueses retornam à proposição de estabelecer um tratado de definição de limites, confome já havia sido decorrente da guerra de secessão da Espanha. A grande preocupação lusitana era que os franceses chegassem até à margem esquerda do Amazonas e, desta forma, tivessem acesso à navegação do rio, o que consequentemente oportunizaria a ocupação de outros territórios. A França, por sua vez, após o insucesso das tentativas anteriores de fixação na Amazônia e, fragilizada pela agitação política da época, também demonstrava interesse em estabelecer um limite territorial, garantindo assim o reconhecimento de sua presença na região pelas outras nações.

93 Desta forma, foi assinado em 1713 o tratado de Utrech pelos reis da França e de Portugal, estabelecendo o rio Oiapoque (na época Japoc ou Vincente Pinzon) como fronteira natural entre os dois reinos na América do Sul (França/Portugal, 1713). Naquela época a cartografia da região do Platô das Guianas ainda era extremamente imprecisa e havia certas discordâncias sobre a localização do Oiapoque cujas informações mais exatas eram as de que se tratava de um rio que fluía na direção sul- norte, partindo do interior amazônico ao litoral, cercado de florestas de ambos os lados da divisa (LE TOURNEAU, 2013).

Foi no início do século XIX, mais precisamente em 1808, que iniciaram os incidentes diplomáticos entre portugueses e franceses no território da Guiana. Quando Napoleão Bonaparte invadiu o Reino de Portugal, em Lisboa, a corte portuguesa fugiu para o Brasil. Como resposta militar, a corte ordenou que a guarda portuguesa instalada no Brasil invadisse a cidade de Caiena e tomou o controle da capital da Guiana Francesa (THÉRY, 1987).

As forças armadas portuguesas permaneceram na Guiana por quase uma década, período em que as relações entre os luso-brasileiros e os franceses eram instáveis devido a invasão napoleônica em Portugal. Apenas em 1815 Portugal e França assinam um acordo de paz, e em 1817 as últimas tropas portuguesas deixaram a Guiana Francesa.

A partir de então, fortaleceu-se ao longo de todo o século XIX a ideia de que a soberania dos territórios de Brasil e França no Platô das Guianas estava ameaçada, uma vez que os limites territoriais não estavam claros e poderiam ser questionados por quaisquer das partes interessadas.

Em 1822, com a independência do Brasil e sua transformação em Império, o país reivindicou enquanto herdeiro de Portugal o reconhecimento do Tratado de Utrecht, com consequente posse do território do Amapá. A França, por sua vez, alega que a localização do rio Oiapoque, marco natural da fronteira, não é aquela pleiteada pelo Brasil, tomando o atual rio Araguary como base de referência para definição da fronteira (LE TOURNEAU, 2013).

Ao assumir o Império, D. Pedro II descobriu, a partir de seus observadores, que no tempo da Cabanagem, os franceses construíram uma fortificação nas imediações do Amapá, mais precisamente numa localidade às margens do lago Ramudo, e resolveu em

94 negociação junto ao imperador da França Napoleão III, neutralizar a região disputada pelos dois países, situada entre os rios Oiapoque e Araguary (ESTADO DO AMAPÁ, 2012). É a partir da disputa por tal região que a questão Amapá/Guiana se transformou oficialmente no Contestado Franco-Brasileiro cuja reivindicação central é francesa, alegando que a maior parte da região do Amapá e boa parte da porção ao norte da margem esquerda do Rio Amazonas estaria dentro de sua delimitação fronteiriça, conforme podemos observar no mapa a seguir.

Mapa 04 – Linhas do contestado franco-brasileiro

95 No mapa 4, Le Tourneau (2013) analisa a reivindicação francesa em três momentos: 1) Na proposta inicial que situava a linha estimada pela foz do rio Araguary e seu prolongamento paralelo ao Rio Amazonas até o encontro do Rio Negro; 2) Na proposta baseada na fonte real do Araguary e 3) Na linha proposta pelo Brasil, excluindo a Guiana Francesa do litoral amapaense e dos montes Tumucumaque.

É possível observar no mapa que o traçado proposto pela França oferecia possibilidade de acesso à navegação no Rio Amazonas, além de controle de grande parte do litoral norte do Platô das Guianas

La France souhaite véritablement prendre possession de la plus grande partie du bouclier des Guyanes, en s'assurant un débouché sur le Rio Negro. On sait que l'une des revendications françaises au XVIIIe siècle avait été la libre navigation de ses navires sur l'Amazone (LE TOURNEAU, 2013)34.

A proposta brasileira, por sua vez, também era dotada de interesses territoriais, uma vez que excluía a França de qualquer acesso direto ao Amazonas e reduzia significativamente a dimensão territorial pretendida pela colônia francesa, retirando-a do Amapá e dos montes Tumucumaque.

Logo, percebemos que as pautas em questão continuam centradas na mesma disputa de forças travadas por Portugal e França desde o século XVII na qual os franceses tentam se instalar na Amazônia, enquanto os lusófonos tentam garantir exclusividade sobre a navegação na região e, consequentemente, na exploração de seus recursos naturais.

Outra questão territorial que marcou fortemente o período do contestado, perdurando até os dias atuais, foi o claro desinteresse de Brasil e França pelo desenvolvimento local da região. Ambas as nações disputavam a fronteira do Oiapoque motivados pelas vantagens de exploração dos recursos naturais, e pelo posicionamento territorial estratégico para suas soberanias e expansão na Amazônia. Desta forma, o contestado tratava efetivamente de uma disputa pela periferia cujos benefícios serviriam aos investimentos centrais tanto na França como no Brasil.

34 Tradução livre do original em francês: A França desejava verdadeiramente tomar posse da maior parte

do escudo guianense, assegurando uma entrada no Rio Negro. Sabe-se que uma das reivindicações francesas du século XVIII era a livre navegação de seus navios sobre o Amazonas.

96 Como estratégia de pressão sobre a posse do território, o governo de Caiena favorece a proclamação pelos povos de Counani, da República Cunani em 1882, que compreendia parte do território em litígio. A este respeito, Kohler (2009, p. 271) analisou:

This period culminated with the proclamation of the short-lived “Republic of Cunani” (1882 – 1885), supported by the French, and ended in 1900 with the resolution of the Dispute in favor of Brazil. Then began a neo-Brazilian migration of people originally from the “islands” (south from Amapá and north-east from Pará)35

.

O contestado possuía um representante francês situado em Caiena e outro brasileiro, em Belém que teriam o objetivo de buscar uma solução diplomática para o impasse, sua sede seria a pequena vila de Espírito Santo do Amapá, às margens do Araguary. Todavia, a disputa ganhou ares de conflito militar armado iniciado em 01 de maio de 1895, quando cerca de trinta membros da tropa francesa invadem o território em disputa até o Rio Araguari, tendo em vista que os brasileiros haviam feito prisioneiros autoridades reconhecidas pela França. Esta invasão foi combatida pelo lider militar brasileiro na região, Francisco Xavier da Veiga Cabral - o Cabralzinho. Os franceses comandados pelo comandante Lunier chegaram para obedecer às ordens do governador de Caiena, Mr. Charvein. Cabralzinho e seus comandados impediram que os franceses se apoderassem da pequena vila de Amapá, apesar da morte de muitos habitantes do vilarejo durante o confronto. Por este feito, Cabralzinho recebeu o título de General Honorário do Exército Brasileiro pelas forcas armadas (ESTADO DO AMAPÁ, 2012).

A tensão das relações entre os dois países levou-os a demandar uma arbitragem internacional sobre o assunto, sendo esta medida a última alternativa diplomática encontrada. Tal arbitragem foi realizada em 1900 pelo presidente suíço Walter Hauser

que emitiu um laudo favorável ao Brasil. Assim, as terras do Amapá passaram oficialmente a compor o território brasileiro. A exceção ficou para a região do Tumucumaque pleiteada pelo Brasil no paralelo de 24º e que permaneceu em território francês, respeitando-se o traçado do Oiapoque até sua fonte. Entretanto, os

35Tradução livre do original em inglês: Este período culminou com a proclamação da breve “República

de Cunani” (1882-1885), apoiada pelos franceses e encerrada em 1900 com a resolução do Contestado em favor do Brasil. Iniciou-se então uma migração neo-brasileira de pessoas originárias das “ilhas” *(sul do Amapá e nordeste do Pará).

97 questionamentos acerca das nuances dessa fronteira, bem como seu reconhecimento em comum acordo entre Brasil e França se prolongaram por quase todo o século XX (MARTINS, 2005).

Quase uma década após a arbitragem, em 1909, Brasil e França assinaram a convenção de arbitramento da fronteira (Brasil/França, 1909), com vias a aplicar os limites determinados na arbitragem de Hauser. Apesar deste documento, Martins (2005) destaca que houve resistências acerca das nuances exatas sobre esta fronteira, que ainda perduraram por mais de meio século, sendo finalmente sacramentada na década de 1970.

A partir da década de 1970, no auge do regime de ditadura militar, o Brasil encerrou seu processo de demarcação de limites fronteiriços e se concentrou nos desafios internos em relação às suas territorialidades e em suas relações internacionais para além das fronteiras físicas. A partir deste período, é a fronteira do Oiapoque que melhor marca a presença dos contatos ambientais entre França e Brasil, revelando desafios e oportunidades para discutir a sustentabilidade em contexto amazônico, transfronteiriço e inter-continental.