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CAPÍTULO 1 A CONSTRUÇÃO DO DISPOSITIVO ANALÍTICO

1.3 DO CORPUS DISCURSIVO E DOS PROCEDIMENTOS ANALÍTICOS

Diferentemente de outros campos de saber das ciências humanas, em AD o

corpus é mais um processo e menos um produto. Isso quer dizer que sua constituição

Ele nunca está acabado e é sempre, nas palavras de Orlandi (2003), “provisório e instável”. Na verdade, o corpus adquire seus contornos a partir do modo como o pesquisador procede aos recortes, levando-se em consideração as determinações sócio-históricas que implicam processos discursivos nas materialidades recortadas.

Naquilo que se refere especificamente à natureza dos materiais analisados nessa pesquisa, tivemos que operar com um conjunto de materialidades discursivas bastante diversificado, quando levamos em consideração a materialidade simbólica (textos verbais e não-verbais), seu registro institucional (textos produzidos por instâncias governamentais, setores do privado, setores da mídia, organizações não- governamentais, movimento social) e sua forma de circulação (meio impresso ou meio virtual). Em razão dessa condição heterogênea, buscamos em Pêcheux ([1982]/2010b, p. 58) um conceito operatório,qual seja, o de arquivo, entendido pelo filósofo “no sentido amplo de campo de documentos pertencentes e disponíveis sobre uma questão”. Esta noção encampa aquilo que permite enxergar o modo como se processam as práticas discursivas de sujeitos inscritos em uma dada formação social sobre dada temática. Apesar de este conceito não se aproximar da ideia que aponta para enunciados organizados por uma via arquivística, é preciso fazer uma diferenciação entre o arquivo de onde foram extraídos as materialidades discursivas e o arquivo do pesquisador constituído após a coleta e reunião dos dados empíricos. Em nosso caso, construímos um arquivo pessoal a partir da coleta de materiais disponíveis em diferentes lugares institucionais. Por exemplo, coletamos um conjunto de reportagens sobre o I Encontro dos povos indígenas de 1989, fazendo uma pesquisa no site da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional9, que disponibiliza um

banco de periódicos nacionais catalogados por nome, período e local. Foi com essa ferramenta que identificamos e coletamos reportagens sobre o I Encontro publicadas nos jornais de maior visibilidade e circulação no país. Na internet, identificamos, via ferramentas de busca, documentos oficiais hospedados em sítios de instituições governamentais como o IBAMA, o Ministério de Minas e Energia, além de outros ministérios. Identificamos e baixamos reportagens concedidas por lideranças de movimentos sociais ou por indivíduos impactados pelas obras de Belo Monte em sites de veículos de mídia alternativa ou veículos das grandes empresas de mídia nacionais. Também transcrevemos algumas entrevistas concedidas por lideranças do

MXVPS a blogs alternativos, que foram disponibilizadas no youtube.com. Por fim, tivemos autorização das lideranças do MXVPS para retirarmos in loco do arquivo da organização materiais que foram utilizados para divulgação das ideias do movimento, materiais de registro audiovisual dos eventos promovidos pelo movimento e materiais institucionais que dizem respeito à gestão do movimento (em relação a estes últimos, nos foi permitido fotografá-los).

Como é possível notar, o conjunto das diferentes materialidades selecionadas para nosso arquivo denota sua inscrição em diferentes lugares institucionais. Mas essa condição é importante porque, apesar de estarmos focados no processo de fundação e consolidação do discurso de recusa radical ao CHBM, que é assumido pelo MXVPS, não perdemos de vista o fato de ele nascer como resultado do litígio entre sujeitos inscritos em distintas FD. Portanto, precisamos identificar, em nossas análises, processos discursivos que apontam para rejeição do estranho, do impossível que vem de outras regiões do interdiscurso, e isso só é tangível a partir da análise de materialidades produzidas e assumidas por sujeitos inscritos em FD antagônicas.

Um outro aspecto importante para ser destacado diz respeito ao modo como tivemos acesso à voz de sujeitos enunciadores identificados com a posição de sujeito contrária à instalação de barragens no rio Xingu. Este é o caso, por exemplo, dos índios que à época do I Encontro de 1989 concederam entrevistas aos principais veículos de mídia impressa do país e também de outros grupos impactados pelo empreendimento Belo Monte que concederam entrevista ao portal de notícias G1. Julgamos, com base nos trabalhos de Indursky (2000a), que o espaço concedido pela imprensa à voz de minorias, mesmo que sob a forma do discurso relatado direto, não significa o ter acesso direto à posição de sujeito desses enunciadores, pois a fala dos indivíduos entrevistados, mediada pelo jornal, é passível de distorções e/ou apagamentos. Trata-se, como veremos mais adiante, de considerar que a via de acesso ao enunciado político de sujeitos enunciadores dado a circular pela grande imprensa de referência brasileira é pelo viés do “discurso sobre”.

Em se tratando de entrevistas concedidas por indivíduos atingidos pelas barragens a produtores de documentários, julgamos que os enunciados que saem das bocas dos atingidos nos chegam de forma parcialmente direta10, pois ainda que

10 Estamos nos referindo ao fato de que, nos vídeos investigados, os enunciadores puderam falar sobre as questões que lhes afligiam, ainda que não tenhamos acesso a todos os enunciados, especialmente os que ficaram de fora no processo da edição.

tenhamos um enunciador falando no vídeo, não podemos desconsiderar o trabalho de edição dos documentaristas que promovem recortes e seleções daquilo que julgam pertinente permanecer no produto final. Não se trata aí de um trabalho de mediação cuja figura do mediador, nos termos de Indursky (2000a), assume a função enunciativa de colocar o sujeito enunciador como intermediário entre determinado grupo de indivíduos, que não tem acesso direto à palavra, e a sociedade, ou seja, determinado grupo não fala, mas sim é falado por outro enunciador.

Cumpre ressaltar que nossa filiação aos pressupostos teórico-metodológicos da AD peucheutiana nos obriga a fazer uma diferenciação contumaz entre o corpus empírico e o corpus discursivo. O primeiro tipo diz respeito a todo o conjunto de materialidades discursivas (verbais ou não) sobre o qual o analista se debruça para extrair os objetos discursivos de que irá se ocupar em sua pesquisa. Em nosso caso, reunimos uma gama de textos variados cuja materialidade simbólica, como já destacamos, aponta para um corpus de caráter heterogêneo. Para dar conta de responder aos questionamentos norteadores da presente pesquisa, selecionamos materialidades simbólicas produzidas num período que vai de 1989 a 2011, capturando nesse enquadramento cronológico dois momentos distintos: 1) a emergência e consolidação do discurso de recusa radical ao CHBM; 2) as prováveis transformações operadas nesse discurso quando da instituição do MXVPS. Encontram-se, portanto, em nosso corpus empírico matérias de jornais de circulação nacional e regional, tais como Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, O Liberal e Diário do Pará. Agregamos a ele entrevistas concedidas por segmentos das populações impactadas a portais de notícias. Também se encontram cartilhas, editoriais, infográficos produzidos pela Norte Energia SA, bem como volantes, folders, panfletos, cartazes, cartilhas produzidas pelo MXVPS. Deste último também capturamos o banco de fotos e vídeos11 que registram os eventos que organizou e ainda entrevistas

concedidas por sua principal liderança, Antônia Melo, que estão divulgadas em sites de streaming de vídeos. Em razão de natureza dispersa própria do arquivo, propomos uma subdivisão de nossos dados empíricos, adotando como critério distintivo a fonte institucional que produz e faz circular tais textos: a) materialidades simbólicas produzidas por instituições midiáticas; b) materialidades simbólicas produzidas pelo governo e pelo empreendedor; c) materialidades simbólicas produzidas pela frente de

11 Temos um banco de fotos e vídeos que, majoritariamente, constitui o registo do EXVPS ocorrido em 2008.

resistência ao CHBM, o MXVPS. Este é o modo como se organiza nosso arquivo empírico.

O corpus discursivo não é dado a priori, visto que sua constituição é paulatina e intimamente relacionada ao problema formulado pelo pesquisador e o método de pesquisa por ele desenhado, à luz dos pressupostos teóricos que adota. Somos, portanto, caudatários de uma concepção dinâmica do corpus discursivo12, pois este

irá se compondo à medida que a análise vai avançando, num processo de retorno contínuo ao corpus empírico, seja para ampliar o corpus discursivo, seja para complementá-lo. Com vistas à operacionalização dos dados extraídos do corpus empírico, adotamos o procedimento triangular de abordagem analítica proposto por Lagazzi (2005), em que o analista, ao confrontar-se com a materialidade discursiva, formula um objetivo, delimita o corpus e o remete às condições de produção. Adotamos também o conceito operacional de recorte discursivo que, segundo Orlandi (1984), diz respeito a uma unidade discursiva, isto é, “um fragmento da situação discursiva (em que) não há uma passagem automática entre as unidades (os recortes) e o todo que elas constituem”. Esta noção se nos apresenta interessante por ser aplicável a qualquer tipo de materialidade discursiva, a exemplo de fotos e vídeos que compõem nosso corpus empírico.

Inspirados no trabalho de Indursky (1997), trataremos essa noção operacional de recorte como um eixo organizador das sequências discursivas extraídas do corpus empírico. Entendemos, baseados em Courtine ([1981]/2014), que essas sequências são como que porções textuais de dimensão variável, orais ou escritas, que não se confundem com a noção de frase gramatical. De maneira a sistematizar os recortes, buscamos identificar cada sequência pela indicação da fonte produtora e disseminadora da materialidade simbólica, o ano de divulgação da mesma e ainda um breve resumo das condições de sua produção. As sequências serão ainda numeradas em função da ordem em que vão aparecendo no corpo da tese.

Este capítulo funcionou, neste trabalho, como uma espécie de bússola que nos guiou ao longo da construção dos demais capítulos, especialmente no que tange às análises. O tempo todo retornávamos a ele para observar se nossas análises

12 Zoppi-Fontana (2003 p. 248) cunha esta noção para tratar um corpus que se apresenta em constante construção à medida em que o analista avança em suas análises e vai adicionando a ela novos elementos capazes de evidenciar “regimes de enunciabilidade na sua dispersão, tanto nas regularidades de funcionamento quanto nas rupturas provocadas pelo acontecimento”.

estavam em consonância com os objetivos de pesquisa que havíamos definido. Portanto, os próximos capítulos apontam para a expansão desses objetivos e marcam justamente nosso compasso com o campo materialista de análise do discurso.

CAPÍTULO 2