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CAPÍTULO 2 CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS PARA EMERGÊNCIA DO DISCURSO

2.1 A HIDROELETRICIDADE E SEU PAPEL DE DESTAQUE NA HISTÓRIA DA MATRIZ

A hidroeletricidade tem papel estratégico no desenvolvimento econômico do Brasil. Ela é a segunda fonte de energia da matriz brasileira e corresponde a 19% da demanda atual, perdendo apenas para o petróleo, que ocupa a primeira posição no ranking, correspondendo a 41% dessa demanda. Esse cenário é bem diferente daquele observado na história do Brasil, particularmente no que se refere à história da demanda brasileira por energia.

Podemos pensar a história do setor energético brasileiro, tomando como parâmetro de divisão as quatro fases propostas por Benincá (2011, p. 29), a saber:

(I) Da Proclamação da república (1889) à revolução de 1930 – quando a economia brasileira se caracterizava pela produção primário-exportadora e a energia estava baseada em fontes vegetais;

(II) De 1930 a 1945 – quando o país deu seus primeiros passos rumo à estruturação de uma política energética, o que ocorreu em função do início do processo de industrialização (...);

(III) De 1945 ao final de 1980 – fase marcada pela intervenção direta do Estado sobre o setor energético (...) optou-se por embasar o desenvolvimento industrial do país na megaeletricidade, aproveitando o potencial da grande quantidade de rios existentes para construção de barragens;

(IV) Da década de 1990 até nossos dias – quando se consubstancia o Plano Nacional de Energia Elétrica baseado na implantação de grandes

hidrelétricas e se aprofunda o modelo neoliberal associado ao processo de privatização do setor elétrico.

Consideramos crucial para o entendimento do papel do CHBM discutirmos certos fatos históricos compreendidos pelas duas últimas fases dessa proposta de divisão.

Na terceira fase da história do setor energético, mais particularmente a partir de 1974, quando o general Ernesto Geisel assume a presidência do Brasil, há um exponencial investimento direcionado à indústria com objetivo de diminuir a dependência brasileira de fontes externas. Isso acontece, mesmo com o crescente endividamento externo do Brasil, mesmo com o regime militar desgastado pelo fim do “milagre econômico”13. A crise do petróleo de 1973 teve um papel preponderante,

forçando o Estado a tomar medidas para solucionar o problema energético. A meta era atingir um crescimento industrial14 de 12% ao ano até 1979. Para atingir essa

meta, considerando a necessidade de diminuição da dependência do petróleo externo (principal fonte energética utilizada pela indústria brasileira), o governo intensificou os investimentos na extração subaquática de petróleo em território nacional e na construção de hidrelétricas, implementou parcerias com a Alemanha no repasse de tecnologia nuclear para construção de Angra 1, Angra 2 e Angra 3 e instituiu, em 1975, o Programa Nacional do Álcool (Proalcool), cuja meta era construir destilarias para produção de etanol.

Pode-se dizer que esta terceira fase histórica desenha os contornos da política energética brasileira para o desenvolvimento econômico alicerçado em quatro programas-pilares: o programa de geração de hidroeletricidade, o programa de geração de eletricidade nuclear, o programa de produção de etanol e o programa de extração petróleo em território nacional.

No tocante à crescente demanda por energia elétrica, demanda essa impulsionada pelo progressivo aumento do parque industrial brasileiro, intensificou- se, no contexto turbulento dos anos 70, a construção de megahidrelétricas em três regiões:

Na região Nordeste, construiu-se a barragem de Sobradinho e depois de Itaparica. Na região Sul, deu andamento à obra de Itaipu, no Rio Paraná,

13 A dívida externa, no final de 1973, contraída para financiar as obras faraônicas do governo, atinge 9,5 bilhões de dólares. A correção dos salários é acentuada em 1974 por conta da inflação que chega a 34,5%.

14 Geisel lança o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), plano este cujo objetivo era o de estimular a produção de insumos básicos, de bens de capital, de alimentos e de energia.

à época em que foi anunciada a construção da usina hidrelétrica de Itá e Machadinho, na bacia do rio Uruguai. Simultanemente, na região Norte, iniciava-se a barragem de Tucuruí (BENINCÁ, 2011, p. 72).

Convém destacar que a Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobrás), criada em 1962 como holding de um sistema de empresas controladoras do setor elétrico no país, tinha, nesta fase que ora discutimos, a “atribuição de promover estudos, projetos de construção e operação de usinas geradoras, linhas de transmissão e subestações destinadas ao suprimento de energia elétrica do país. A nova empresa passou a contribuir decisivamente para a expansão da oferta de energia elétrica e o desenvolvimento do país” (ELETROBRÁS, 2015).

Em suma, a estatal opera como empresa holding, por meio de três subsidiárias atuantes nas principais regiões do país: a Eletronorte (Centrais Elétricas do Norte S.A.) na região Norte; Chesf (Companhias Hidrelétricas do São Francisco S.A.) na região Nordeste; Furnas (Furnas Centrais Elétricas S.A.) na região Sul.

Como parte do II PND lançado pelo governo Geisel, Itaipu, inaugurada em 1984, faz parte dos 26% (cerca de 33 mil MW) do potencial hidrelétrico disponível no país fora da região amazônica. A polêmica em torno desse mega empreendimento aparece relacionada muito mais ao tratado15 estabelecido entre os governos

paraguaio e brasileiro, já que se trata de uma hidrelétrica binacional, e menos ligada aos impactos por ele causados16. Este não foi o caso das usinas de Tucuruí e de

Balbina, cujos impactos socioambientais repercutiram muito fortemente na sociedade. Uma das prováveis razões para esse silenciamento de grupos ambientalistas e de outros setores da sociedade foi o famigerado tratamento do regime militar para com opositores.

Um dos piores pesadelos (para o Estado) da história do aproveitamento hidrelétrico de rios brasileiros é sem dúvida a UHE de Balbina. Construída para atender a demanda energética da recém-criada zona franca de Manaus (início em

15 No Tratado de Itaipu ficou definido que toda a energia gerada deveria ser dividida em duas partes iguais e, caso uma das partes não utilizasse toda a parte de direito, deveria de preferência ser comercializada com o sócio a preço de custo. Desse modo, o Paraguai, que usa somente 5% do total de 50% que lhe cabe, comercializa com o Brasil os 45% restantes, que paga por essa energia algo em torno de 300 milhões de dólares.

16 Segundo Benincá (2011), os agricultores expropriados pela criação da Usina de Itaipu deram os primeiros passos para a criação do Movimento dos Atingidos por Barragens. Os mesmos, ainda organizados sob a égide do Movimento Justiça e Terra, reivindicavam justa indenização por suas terras alagadas.

1973 e término em 1989), possui uma péssima relação potência instalada e área de reservatório. Isso porque, segundo Moretto et al (2012, p. 149),

a capacidade de geração de energia elétrica da hidrelétrica de Balbina é ínfima em função do relevo de planície da região que não favoreceu a existência de uma diferença de cota altimétrica favorável. O resultado é uma potência instalada de 250 MW com uma geração média de cerca de 112 MW ao ano (FEARNSIDE, 1988), resultando na pior relação entre potência instalada (ou geração efetiva) e área do reservatório existente no Brasil.

Planejada num dos governos militares mais autoritários do regime militar, o de Médici, sob responsabilidade da Eletronorte, a UHE de Tucuruí merece um pouco mais de atenção nesta concisa descrição da história da política energética brasileira. Isso porque Tucuruí é uma questão sempre retomada, quando do debate sobre a viabilidade do CHBM. Do lado dos que defendem um modelo de desenvolvimento calcado na expansão do potencial energético oriundo do aproveitamento hidráulico dos rios brasileiros, Tucuruí é um exemplo de projeto bem-sucedido que permitiu a implantação e consolidação dos grandes projetos de exploração mineral no norte do país. Do lado dos que defendem um modelo de desenvolvimento em que a produção de energia deve estar em compasso com as necessidades reais de consumo da sociedade brasileira, dentro do paradigma do desenvolvimento sustentável, Tucuruí representa a encarnação de um projeto de destruição e promoção de injustiças sociais.

Um aspecto central saliente na história da supramencionada hidrelétrica foi a justificativa para sua implantação. Ainda no contexto da crise mundial do petróleo na década de setenta, o governo japonês, em acordo com o brasileiro, inicia um estudo da viabilidade da transferência de seu parque industrial de produção de alumina- alumínio para o Brasil, considerando a oportunidade ímpar do fornecimento de energia barata para o beneficiamento das commodities17. A grande “sacada” era substituir o

uso do petróleo para atender a demanda da produção de alumínio (produto extremamente eletrointensivo) pela energia hidrelétrica. Mas onde estaria a energia elétrica para esta nova demanda? Segundo Pinto (2005), a fonte de energia abundante e barata estava situada a 20 mil km do Japão, no Pará, pelo aproveitamento do potencial hidrelétrico do rio Tocantins.

Quando ficou claro que o Tocantins poderia desempenhar esse papel, a uma distância econômica da futura indústria de alumínio, num ponto do estuário amazônico acessível por navios de grande porte, os japoneses, em negociações intensivas mantidas entre Brasília e Tóquio, fecharam um pacote completo: participaram tanto da fábrica (de alumínio no Pará) quanto da hidrelétrica (PINTO, 2005, p. 97)

Os grandes consumidores eletrointensivos, cuja demanda de energia passou a ser suprida pela UHE de Tucuruí, foram o Projeto Ferro-Carajás, a ALBRAS (produtora de alumínio metálico em Barcarena-PA) e a ALCOA (produtora de alumina no estado do Maranhão).

Pelo que foi exposto, a construção da UHE de Tucuruí se justificou como necessária à geração de energia para os grandes projetos de extração e beneficiamento de alumínio. Um fantasma histórico que paira sobre essa usina tem a ver com o fato de ter sido esse empreendimento um negócio de alto custo para o Estado brasileiro, e um negócio de extrema lucratividade para o Estado nipônico. A conta é salgada para o lado de cá, segundo estimativas, algo em torno de 10 bilhões de dólares.

Soma-se a essa história o modo como se deu o processo de desapropriação e realocação dos atingidos pela barragem de Tucuruí. Encarada por muitos estudiosos como uma política desastrosa levada a termo pela Eletronorte, muitas famílias permaneceram desabrigadas um ano após o enchimento do reservatório da usina. Essa situação resultou, segundo Magalhães (1988, p.113),

por um lado ‘da falta de uma política de realocações’ e, por outro, da não delimitação topográfica da cota de operação do reservatório, o que implicou no alagamento parcial ou total de 630 lotes rurais que abrigavam a 3.700 pessoas já relocadas pela Eletronorte.

Os estudos dos impactos sócio-ambientais feitos pela Eletronorte se deram em 1977, dois anos após o início das obras da usina, pelo ecólogo, contratado pela empresa estatal, Robert Goodland. Segundo Pinto (2005, p.113), o mesmo elaborou um diagnóstico a posteriori que “não previa nenhuma discussão sobre os efeitos ambientais e sociais (tratando-se) apenas da proposição de medidas de proteção ambiental para um fato já consumado”.

No que se refere à quarta fase da história do setor energético brasileiro, dá- se, de acordo com Benincá (2011), o processo de desestatização (Programa Nacional de Desestatização, criado em 1990, no governo FHC) em que se observa a concessão

de serviços que outrora eram da incumbência de empresas públicas, para empresas privadas.

Em relação ao setor elétrico, o Estado cria a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), autarquia essa ligada ao Ministério das Minas e Energia, cuja incumbência é a de regular e fiscalizar a produção, transmissão e comercialização da energia elétrica. Neste panorama de privatizações, o Estado passa a

operar como um agente financiador na construção de hidrelétricas, apoiando e subsidiando grandes empresas através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Entre as maiores empresas privadas que atuam no setor elétrico brasileiro, encontram-se: Tractebel-Suez (Belga/Francesa), Alcoa (EUA), AES (EUA), American Eletrical Power (EUA), Eletricidadede Portugal (Portugal), Southern Company (EUA), Electricité de France (França), DukeEnergy (EUA), Endesa (Espanha), El Paso (EUA), Banco Santander (Espanha), Banco Bradesco S.A, Companhia Brasileira de Alumínio e Cimentos Votorantin S.A (Brasil) (BENINCÀ, 2011, p. 31-2).

Como se vê, a partir do programa de desestatização, o setor de produção e transmissão de energia elétrica brasileiro passa a ser explorado por empresas privadas a partir de processos licitatórios. Essas empresas, ainda segundo Benincá (2011), têm preferência por se instalar em locais onde “as bases naturais são mais vantajosas”. No Brasil, obviamente, essas bases se encontram na Amazônia, que representa 40,5 % do potencial hidrelétrico nacional e cuja estimativa é de cerca de 260 GW. Convém ressaltar o novo papel que assume a Eletrobrás nesse contexto. Essa autarquia federal passa a atuar como planejadora das ações de exploração da energia brasileira.