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1.4 “Desenhos dobrados”

3. DIGRESSÕES VISUAIS

3.1 Do desenho à imagem digital

Prosseguindo minha investigação, utilizando a gravura – xilogravura, serigrafia, monotipia, gravura em metal – passei a produzir uma série de impressões a partir dos meios eletrônicos; os desenhos são transformados em imagens gráficas, palavras são inseridas na composição e, finalmente, o conjunto é gerado através da impressão digital.

A utilização da infografia17 exigiu encontros com conceitos sobre os paradigmas da imagem.

As imagens criadas pelo ser humano estão diretamente relacionadas aos seus meios de produção que, ao longo da história, resultam em mudança dos seus

paradigmas. De acordo com Noth e Santaella (1998, p.157), são três18 os

paradigmas19 da imagem: pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico.

No paradigma pré-fotográfico, a característica principal das imagens é a fisicalidade dos meios produtivos. No desenho, na gravura e na pintura, o agente produtor utilizava-se de ferramentas e suportes para marcar o seu gesto. A imagem gerada, portanto, adquiria característica de objeto único e, conseqüentemente, tornava-se através dessa unicidade, original e irrepetível. “Nessa imagem instauradora, fundem-se, num gesto indissociável, o sujeito que a cria, o objeto criado e a fonte de criação”. (NOTH; SANTAELLA, 1998, p. 164).

O aperfeiçoamento da câmara obscura, bastante utilizada no Quattrocento

culminou com o aparecimento da fotografia no século XIX, resultando numa grande mudança. “Nesse paradigma, a imagem é o resultado do registro sobre um suporte

17 Técnicas de tratamento e de criação de imagens.

18 Noth e Santaella admitem que limitar o universo da imagem, desde suas origens até os nossos dias a apenas

três paradigmas, só pode ser fruto de um corte reducionista, entretanto este foi praticado deliberadamente, visto que, fiel ao espírito do termo paradigma, o objetivo é demarcar traços mais absolutamente gerais caracterizadores do processo evolutivo nos modos como a imagem é produzida, quer dizer, das transformações, ou melhor, rupturas fundamentais que foram se operando, através dos séculos, nos recursos, técnicas ou tipos de instrumentação para a produção de imagens.

19 Não se trata aqui dos dois sentidos para paradigma, definidos por Thomas S. Kunh. Noth e Santaella, utilizam

esse termo no sentido mais metafórico da palavra que também é operacional quando estão em jogo áreas de produção de conhecimento, disciplinas, práticas ou técnicas que são tidas como não propriamente científicas.

químico ou eletromagnético (cristais de prata da foto ou modulação eletrônica do vídeo) do impacto dos raios luminosos emitidos pelo objeto ao passar pela objetiva.” (NOTH; SANTAELLA,1998, p.165). No paradigma pré-fotográfico, as imagens eram produzidas através de instrumentos, como extensões da mão; no suporte matérico fundiam-se sujeito, objeto e fonte. No paradigma fotográfico, as imagens são frutos da autonomia da visão, via próteses óticas, através de processos automáticos de captação da imagem. Com a utilização de suporte químico ou eletromagnético essa imagem era fixada para sempre. O paradigma pós-fotográfico caracteriza-se pela mudança radical nos modos de produção de imagem provocada pela infografia. As imagens digitais resultam da união entre o computador e uma tela de vídeo, através de uma série de operações abstratas, modelos, programas, cálculos.

Virtualidade, simulação, funcionalidade e eficácia, o paradigma pós- fotográfico funciona sob o signo das metamorfoses, porta de entrada para um mundo virtual. Seu ideal de autonomia indica o modelo simbólico do qual partiu. É uma imagem funcional, experimental, eficaz, ascética, dentro da qual circula apenas um real refinado, purificado, filtrado pelo cálculo, inteligível através das mediações abstratas. (NOTH; SANTAELLA, 1998, p.172).

A evolução dos meios de produção proporcionou conseqüências nos meios de transmissão e na recepção. As imagens pós-fotográficas estão facilmente disponíveis e são transmitidas por redes individuais e planetárias. Possuem como característica principal a rapidez de respostas aos comandos e instruções dos meios eletrônicos. O paradigma “pós-fotogáfico é o universo evanescente, em devir, universo do tempo puro, manipulável, reversível, reiniciável em qualquer tempo”. (NOTH; SANTAELLA, 1998, p.175).

3.2 Infogravuras

A importância da infografia para o meu processo de criação deve-se ao fato de

possuir essa técnica funções numéricas20, propiciadoras de condições para que eu

pudesse atingir os objetivos da pesquisa – a criação de imagens híbridas e recodificadas. A matriz digital, também em razão do seu caráter numérico universal, possui uma capacidade infinita de reprodução, sem perda de qualidade, diferentemente das matrizes industrializadas, que sofrem desgastes mecânicos.

A emergência de imagens é conseguida, portanto, pelos números como signos transdutores e como regras organizativas que, ao mesmo tempo em que impõem uma ordem ao conjunto de pixels, ajudam a definir um repertório, obrigando o operador da imagem a passar de um repertório para um estado de configuração imagética. Desse modo, a noção de número liga-se à noção de imagem, à medida que fornece a possibilidade de configuração inteligível. (PLAZA, 1998, p. 28).

O caráter híbrido dos diversos trabalhos realizados – séries: Fragmentos, Homo

sapiens, Fobias – levaram-me a outros conceitos de híbrido. Monleon (1999, p. 13)

propõe o conceito de híbrido para englobar os fenômenos artísticos que não buscam

20 Transdução: na operação tradutora de números para imagem, os números exercem papel transdutor. Na

passagem da série numérica para a imagem, passamos de uma ordem para a outra, passamos do simbólico para o icônico. Essa informação tende a conservar a carga energética codificada na série numérica, isto é, mantém a invariância na equivalência.

Paramorfismo: o número tem um papel paramórfico. Uma determinada série numérica é reversível; ela comporta tradução na forma de gráfico, de imagem ou função: assim, o número possibilita a sua conversão num outro signo, sendo a ele equivalente.

Otmização: consiste em um método pelo qual se ajusta continuamente um processo para se obter os resultados, e isto se faz analiticamente. O papel otimizador do número nos leva a reconhecer o caráter metalinguístico da tradução de números em imagens e vice-versa. (PLAZA, 1998, p. 27-28).

a especificidade de um gênero nem se demarcam dentro de uma corrente artística concreta, pelo contrário, se algo carateriza esse território, é justamente sua heterogeneidade, a utilização da mistura dos meios, seu caráter múltiplo, a serviço de um programa comum: a ruptura com os gêneros tradicionais. Para Mcluhan (2002, p. 67), o cruzamento ou hibridização dos meios (extensões do homem) oferece uma oportunidade favorável para a observação de seus componentes e propriedades estruturais. Conforme Plaza (1998, p.24), a imagem composta ou híbrida é o “produto do caráter híbrido das tecnologias e dos transdutores. A imagem composta é sempre produto da mistura de elementos das imagens anteriores e também da transdução em imagem de outra informação”.

Uma das características predominantes das imagens que criei nesses trabalhos refere-se ao modo de fazer, que parte, geralmente, de algo já pronto, recodificado. Esse fazer conduziu-me à apreensão dos conceitos da recodificação, ratificando o potencial da infografia e seus recursos de geração e tratamento de imagens, para a criação de trabalhos híbridos e recodificados.

Empregando, no processo criativo, o método heurístico da recodificação, parto dos meus próprios desenhos e da apropriação de palavras e textos científicos, médicos, místicos, holísticos, literários, entre outros, e crio, através da digitalização, imagens, que são ampliadas, impressas em papel e fixadas num suporte de poliestireno. Os desenhos, em pequeno formato, sofrem um zoom digital: a ampliação potencializa a sua visualização. O que era mínimo passa a ser máximo; o que era artesanal transforma-se em numérico, digital. Retiro diferentes tipos de conhecimentos de seus contextos originais e insiro-os na obra, buscando produzir,

no trabalho, ambigüidades e incertezas: desenho? gravura? cópia? As imagens resultantes, portanto, derivam de um processo de recodificação e hibridização.

Tavares (1998, p. 87-89), ao analisar os modos de operar a partir da utilização das Novas Tecnologias da Comunicação, tendo, como sustentação para a sua análise, os livros A criação científica, de A. Moles e Creatividad y métodos de

innovación, de A. Moles e R. Caude, define os métodos heurísticos, envolvidos

nesse tipo de criação, como os percursos, ainda que não fixados de modo deliberado e refletido, que a mente realiza para atingir a invenção, durante o processo de criação. Esses métodos são utilizados como ferramenta para a determinação do insight.

Os métodos heurísticos, portanto, diferenciam-se dos procedimentos metodológicos, que definem a abordagem do problema e os tipos de pesquisa que serão adotados para atingir os objetivos requeridos.

Recodificar significa criar, partindo de um fenômeno já codificado. Através da metacriação (criação a partir de) e da metalinguagem, é possível criar uma infinidade de imagens recodificadas. O método de recodificação efetua-se com a utilização de símbolos ou signos convencionais, transformados em novas significações através de novos códigos, estabelecendo um novo fenômeno.

Várias são as formas de recodificação. A transferência de um sistema de pensamento para outro, de um campo de saber para outro, é um dos mais importantes, instigantes e frutíferos métodos heurísticos. Na recodificação, parte-se de algo já codificado; o método consiste em recodificar algo já criado e comporta, por isso mesmo, a noção de metacriação (criação a partir de) ou representação da representação; equivale à linguagem e suas

mudanças com a decorrente transformação. (PLAZA; TAVARES,

1998, p. 195).

Aparelhos como o scanner ou a câmara de vídeo podem ser utilizados para a aquisição e operações de transformação e criação de imagens, como: representação

da representação21, montagem, colagem, bricolagem22, interação23.

O fenômeno da hibridização intensifica-se na pós-modernidade. “Tudo já havia

sido feito; o que nos restava era juntar fragmentos, combiná-los e recombiná-los de maneiras significativas. Portanto, a cultura pós-moderna era de citações, vendo o mundo como um simulacro.” (ARCHER, 2001, p. 156). Esse fenômeno acentua-se, portanto, a partir do momento em que as fronteiras das diversas manifestações artísticas foram se interpenetrando, tornando seus limites incertos. Um objeto

artístico híbrido pode encerrar duas ou mais linguagens distintas num único suporte.

21 O processo de aquisição de imagens implica digitalização e quantificação dos fenômenos visuais contínuos em

átomos de percepção, (pixels), o que implica atos de esquematização, abstração e recodificação. A imagem introduzida por um scanner no computador pode ser submetida a muitas operações icônicas. A imagem pode ser retocada, solarizada, colorida, ampliada ou reduzida: cria-se uma meta-imagem. (PLAZA; TAVARES, 1998, p. 196).

22 Imagens articuladas no eixo da contigüidade por referência. A articulação de duas representações deslocadas

de seus contextos sintagmáticos em um novo sintagma traz à mente associação desses contextos. Cada elemento denuncia a sua presença. (PLAZA; TAVARES, 1998, p. 125).

23 As imagens não são estáticas, mas dinâmicas, sendo possível atualizá-las e modificá-las. (PLAZA; TAVARES,

Conforme McLuhan (2002, p. 18), “qualquer extensão – seja da pele, da mão, ou do pé – afeta todo o complexo psíquico e social”. A relevância de uma nova tecnologia encontra-se nas mudanças que esta provoca. Segundo o autor, assim como a tecnologia da máquina era fragmentária, centralizadora e superficial; na estrutura das relações humanas, a essência da tecnologia da automação é a integração e a descentralização. O autor cita a luz elétrica como exemplo de informação pura, algo como meio sem mensagem, a menos que seja usada para explicitar algum anúncio verbal ou algum nome, significando que o conteúdo de qualquer meio ou veículo é sempre um outro meio ou veículo.

O conteúdo da escrita é a fala, assim como a palavra escrita é o conteúdo da imprensa e a palavra impressa é o conteúdo do telégrafo. Se alguém perguntar, “Qual é o conteúdo da fala?, necessário se torna dizer: “É um processo de pensamento, real, não verbal, em si mesmo”. Uma pintura abstrata representa uma manifestação direta dos processos do pensamento criativo, tais como poderiam comparecer nos desenhos de um computador. Estamos nos referindo, contudo, às conseqüências psicológicas e sociais dos desenhos e padrões, na medida em que ampliam ou aceleram os processos já existentes. Pois a “mensagem” de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, cadência ou padrão que esse meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas. (MCLUHAN, 2002, p. 22).

A luz e a energia elétrica, assim como o rádio, o telégrafo, o telefone e a televisão, eliminam os fatores de tempo e espaço da associação humana, criando a participação em profundidade. Esses meios distinguem-se pelas relações estabelecidas com os nossos sentidos, podendo ser “quentes” ou “frios”.

Um meio quente é aquele que prolonga um dos nossos sentidos e em “alta definição”. Alta definição se refere a um estado de alta saturação de dados. Visualmente, uma fotografia se distingue pela “alta definição”. Já uma caricatura ou um desenho animado são de “baixa definição”, pois fornecem pouca informação visual. O telefone é um meio frio, ou de baixa definição, porque ao ouvido é fornecida uma magra quantidade de informação. A fala é um meio frio de baixa definição, porque muito pouco é fornecido e muita coisa deve ser preenchida pelo ouvinte. De outro lado, os meios quentes não deixam muita coisa a ser preenchida ou completada pela audiência. Segue-se naturalmente que um meio quente, como o rádio, e um meio frio, como o telefone, têm efeitos bem diferentes sobre seus usuários. (MCLUHAN, 2002, p. 38).

A alta saturação dos dados produzida pelos meios quentes cria uma extensão demasiada de um de nossos sentidos, tendo como conseqüência uma especialização deste sentido. Já os meios frios, ou de baixa definição, permitem-nos uma participação maior dos diferentes sentidos. As novas tecnologias (meios) interferem diretamente na interação entre estes e estão diretamente relacionadas à recepção.

Para McLuhan (2002, p. 67-75), a inter-relação entre os meios, por ser conduzida por forças que são extensões e amplificações dos nossos próprios sentidos, afeta profundamente nossas mentes e a sociedade em que vivemos. Enquanto a especialização ou a predominância de um sentido leva o receptor a um embotamento ou fechamento de outros sentidos, o encontro de meios diferentes possibilita a observação de seus componentes e de suas propriedades estruturais.

O híbrido, ou o encontro de dois meios, constitui um momento de verdade e revelação, do qual nasce uma forma nova. Isto porque o paralelo de dois meios nos mantém nas fronteiras entre formas que nos despertam da narcose narcísica. O momento do encontro dos meios é um momento de liberdade e libertação do entorpecimento e do transe que eles impõem aos nossos sentidos. (MCLUHAN, 2002, p. 75).

O híbrido transgride valores pré-estabelecidos. Tem como característica a simultaneidade, a baixa definição, o encontro de meios e a abertura para percepções diferenciadas. O processo de digitalização potencializa a produção de imagens híbridas, já que a possibilidade de transformação de informações visuais em códigos numéricos facilita a aquisição, transformação, fusão de imagens de diversas origens.

Conforme Plaza (1998, p. 24-25), no processo de superposição de tecnologias sobre tecnologias, há mais deslocamento e incorporações que substituições. Convivem no espaço da contemporaneidade diferentes gerações ou paradigmas de imagens e “a imagem de cunho digital apresenta-se como reviravolta na história da imagem porque inaugura um novo paradigma”. Assim como a fotografia, que deslocou a pintura, obrigando-a a seus “limites de linguagem”, a era pós-fotográfica já está reformulando as imagens da arte, cinema, fotografia e televisão.

3.3 “Coceira”

Sentiu uma leve coceira na parte de cima do ventre; deslocou-se devagar sobre as costas até mais perto da guarda da cama para poder levantar melhor a cabeça; encontrou o lugar onde estava coçando, ocupado por uma porção de pontinhos brancos que não soube avaliar; quis apalpá-lo com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois ao contato acometeram-no calafrios.

Kafka, A metamorfose

“Coceira” foi o título que dei à série de infogravuras, exposta juntamente com uma série de desenhos, parte do processo criativo, na Galeria da Aliança Francesa da Bahia, em outubro de 2003. A escolha desse nome deve-se à relação dos seus significados com o corpo, temática da minha pesquisa, e às inquietações desencadeadoras do meu fazer artístico.

A coceira é um sinal de que o corpo entrou em contato com algo agressivo como substâncias, insetos, poeira ou plantas. Apesar do incômodo causado, a coceira é uma defesa do nosso corpo para combater elementos estranhos.

No sentido metafórico, coceira pode ser entendida como: tentação, impaciência, inquietação, manifestação, sintoma, preocupação. Tais significados traduzem o motivo propulsor do meu fazer artístico. Essa coceira existencial; esse mal-estar, esse desassossego diante do cotidiano e desse corpo frágil e efêmero que vaga entre a tecnologia e a degradação social. Entretanto, coçar-se é também estar

atento, é não perder a capacidade de indignação, é tomar consciência daquilo que faz mal, é criar defesas.

Partindo do pressuposto que a palavra pode construir e desconstruir significados, usei o vocábulo coceira como título da exposição, para sugerir um sentido de ambigüidade e expectativa diante das obras apresentadas. Esse fato remete à obra Hotel, de Carmela Gross; porém, enquanto, nesse seu trabalho, o nome desconstruía uma instituição e um evento, em Coceira, a palavra-título, ao circular em diversos órgãos de imprensa e nos espaços institucionais da arte, tendia a criar uma metáfora que remetesse a uma sensação de incômodo, fato pertinente à pesquisa, pois esta lidou também com a força simbólica das palavras.

A série Coceira foi realizada em várias etapas. Selecionei os desenhos24 já

realizados, levando em conta o tema a ser abordado; em seguida, escolhi as palavras de forma que sintetizassem a idéia principal ou me apropriei dessas palavras no contexto em que elas se encontravam; após digitalizar e ampliar os desenhos escolhidos, associei-os às palavras digitadas, criando composições visuais, muitas vezes decididas no próprio momento de elaboração; tratei a imagem sem interferir no desenho, mantendo suas características originais; por último, a impressão digital e fixação em suporte de poliestireno.

Nessas infogravuras persiste a busca de uma tensão entre o simbólico (palavra) e o icônico (desenho), além da procura do essencial na composição e da ausência da cor, manifestadas na série “Fobias”. Ao mesmo tempo em que fiz uso dos meios

eletrônicos para ampliar e manter as mesmas características formais dos desenhos, dispensei o uso das cores e de outros recursos oferecidos pelo computador para obter uma certa economia da imagem: limpa, mínima. Diferentemente de muitos artistas contemporâneos, que buscam a impessoalidade, descartando a marca do gesto na obra, nessa série de infogravuras procurei afirmar a emoção através do gesto, e, paralelamente, busquei velar essa emoção pela impessoalidade da tecnologia. A intenção foi criar um contraste da subjetividade do desenho com a racionalidade e frieza do texto e do suporte, visando a um certo sentido de instabilidade. Buscava unir, no mesmo suporte, imagens diferenciadas: a imagem

icônica do desenho e a imagem simbólica25 das palavras. Intencionava uma imagem

híbrida, decorrente da sua própria transformação pela digitalização (transdução) e do resultado da união com outras imagens – a imagem gráfica das palavras digitadas no computador ou imagens de palavras e números apropriados de outros contextos. A recodificação teve como ponto de partida os meus próprios desenhos e gravuras já prontos e a apropriação de textos, frases, palavras referentes a outros campos de conhecimento.

Coceira tem uma relação direta com a palavra: no título ou inseridas no próprio trabalho; na literatura e nos diversos textos sobre arte e filosofia da arte; nos dicionários, enciclopédias, prospectos, bulas, entre outros; na influência de diversos artistas que utilizaram a palavra como elemento visual ou como discurso crítico na própria obra. Essa relação também estava presente quando procurei uma

25 Conforme Pierce, símbolo é um signo que se refere ao objeto denotado em virtude de uma associação de

idéias produzidas por uma convenção. O signo é marcado pela arbitrariedade. Ex.: qualquer das palavras de uma língua. (NETTO, 1990, p. 58).

aproximação entre o aspecto visual da obra e a estrutura visual da página de um texto, o que sugere ligações entre a leitura da obra e a leitura do texto. Busquei acentuar essa relação, expondo textos de Kafka e depoimentos de Francis Bacon ao lado das obras, para que também fossem vistas como obras visuais.

Através da grande escala do desenho, do contraste do preto (do traço) com o branco (que envolve o desenho), da pequena escala e tonalidade cinza das palavras, busquei criar movimentos em relação às obras: de afastamento, para uma melhor visualização do desenho e de aproximação, para a leitura do texto. Neste trabalho buscava estabelecer oposição entre corpo e tecnologia; dor e promessas de cura; mínimo e máximo; razão e emoção; gesto e controle.

A maioria destas infogravuras possui como tema as diversas solicitações de

interferências no corpo26 que visam modificar os aspectos físicos e psicológicos do

indivíduo. Estas práticas ampliaram-se e tornaram-se comuns. Aumenta, consideravelmente, o número de pessoas que trazem nos seus corpos, diferentes

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