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DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO: As saborosas crônicas de Moacyr

As saborosas crônicas de Moacyr Scliar

Para escolher as notícias, eu vou lendo o jornal todos os dias. De repente, lá está: algo que, por ser patético, ou grotesco, ou inusitado pega a condição humana, por assim dizer, desprevenida. Não é realismo mágico, mas é a realidade em seu limite, a realidade que às vezes parece ficção.

Moacyr Scliar

Desde seu primeiro livro de contos, publicado em 1968, intitulado Carnaval dos animais, ao criticar a violência, Scliar já entremostra, em narrativas sucintas, com a linguagem cortante do seu humor, um mundo invertido, em que animais têm características sinistramente humanas, como se a vida fosse um palco festivo onde todos usam máscaras para melhor encenarem a desumanização do homem.

A propósito, evidencia-se que, independentemente da temática abordada, sobressaem o humor e a ironia, pelos quais o escritor mostra criticamente os disparates da realidade no contexto do passado histórico ou da atualidade.

No caso específico das crônicas de Moacyr Scliar aqui analisadas, a palavra da notícia se deixa transfigurar pela interferência da palavra literária, que passa então a constituir um universo discursivo autônomo, com toda a sua carga de invenção ficcional.

Os acontecimentos da vida, que retratam uma sociedade moderna desorientada e fragmentada, são os materiais interpretados pelo artista e, no caso, pelo cronista, pois tudo pode funcionar como argila, isto é, como material que deve ser aproveitado para esculpir sua arte. Assim, no processo de criação das crônicas, a argila é a notícia moldada artisticamente pelo escritor e transfigurada em literarura, o espetáculo de situações grotescas do cotidiano é transformado em ficção por Scliar.

Em vista disso, pode-se afirmar que a criação artística de Scliar se processa como um jogo de espelhos, em que um ou vários textos se projetam num outro, formando a crônica. No entanto, essa projeção adquire outra imagem porque são descobertos novos significados, especialmente os que chegam ao limite da lógica convencional, voltados para as necessidades cotidianas das pessoas. Passa-se ao mundo da imaginação e esse transporte do real para o fictício realiza-se pela criação literária carnavalizada, uma inversão que produz a crítica às ordens e aos valores predeterminados, como já se enfatizou.

Merece destaque a ironia do texto, que é a tônica desse jogo artístico-literário e manifesta-se implicitamente, sendo necessária sua inserção no contexto da época, o que depende, para a projeção de sentidos, de um conhecimento comum entre escritor e leitor. Diante disso, o leitor é despertado por uma espécie de humor que não perde de vista as fraquezas humanas, principalmente as aflições das classes média e baixa da sociedade. Tais aflições podem gerar conflitos psicológicos que, muitas vezes, são transformados em neurose, doença do século XX, segundo Scliar1 .

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As narrativas, escritas em tom irônico, levam o leitor a rir e, ao mesmo tempo, a refletir sobre a temática proposta, pois, com humor crítico e misturando realidade e imaginação, Scliar questiona um dos grandes problemas da modernidade: como o ser humano pode encontrar a si mesmo e entender-se no conturbado mundo de hoje. Em função disso, a força da palavra da ficção, mesmo em textos curtos como o da crônica, permeia desde o conflito interpessoal até a conjuntura social.

Assim, Moacyr Scliar perscruta a vida humana e a desvela ao público, apresentando uma importante criação literária que analisa a realidade vivente e se contrapõe a convencionalismos sociais cristalizados. Como cronista em busca de situações insólitas, revela profunda preocupação com os acontecimentos relacionados ao ser humano, fazendo- o de forma a estimular no leitor o riso, mas um riso contido, reduzido, que não se manifesta na gargalhada escancarada, e sim no meio-riso, aquele que enlaça comicidade e amargura.

Em verdade, não há como se definir esse tipo de humor praticado por Scliar. Pode-se dizer apenas que é um humor sutil que busca humanizar o sofrimento e os sentimentos, sem distinção, como contributo para um mundo mais justo e igualitário. O escritor ataca a hipocrisia que estrutura determinadas relações sociais, abarcando temas relacionados à família, à saúde, à alimentação e à oposição riqueza e pobreza, entre outros.

Nas crônicas, tal humor, qualificado pelo próprio escritor como “humor judaico”, situa-se no intervalo flutuante entre o lúdico e o crítico, desvelando tudo o que fere o valor e a dignidade do ser humano, com uma linguagem de sentido essencialmente ambíguo.

Entretanto, nem todo humor feito por judeus é considerado como característicamente judaico, segundo explicam Scliar, Finzi & Toker na obra Do Éden ao divã: Humor judaico (1991),uma antologia repleta de pequenos ensaios, historietas, provérbios e anedotas. Eles ressaltam que o “humor judaico”, como forma de comentário social ou religioso, pode ser

sarcástico, queixoso, resignado, provocando, não uma gargalhada, mas um sorriso melancólico, um aceno de cabeça, um suspiro2. Os autores notam que o riso reflexivo diante da vida, incitado por esse tipo de humor, é uma reação diferenciada daquela oriunda da maioria das cenas cômicas, porque não provém do infortúnio das pessoas, mas de uma análise crítica dos fatos.

Na contracapa desse livro, o também cronista gaúcho Luís Fernando Veríssimo, ao tecer considerações sobre este tipo de humor, assevera que o humor judeu é, de certa forma, a contrapartida do

misticismo judeu3. O referido escritor explica que o misticismo, arraigado

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SCLIAR, Moacyr, FINZI, Patrícia & TOKER, Eliaher. Op. cit., p.1.

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em um povo marcado por amarguras, transforma-se na arma crítica do humor.

O que estabelece a coesão na obra de Scliar, especialmente nas crônicas, é esse humor irônico, agridoce (como destaca o próprio autor), às vezes corrosivo, que faz o leitor pensar antes de rir. Seus textos apresentam uma cosmovisão carnavalesca que reúne tudo o que foge à lógica, produzindo no leitor uma espécie de surpresa diante das situações incomuns vivenciadas pelas personagens fictícias.

Resulta daí a paródia, que pode ser considerada, como diz Hutcheon, uma forma pós-moderna perfeita, pois, paradoxalmente,

incorpora e desafia aquilo a que parodia4. Diante dessa assertiva, faz-se necessário reafirmar que a transposição citada instaura o jogo paródico entre a crônica scliariana e a notícia através de um processo multívoco, em que diferentes discursos se cruzam, completando-se ou desafiando-se. É um recurso usado pelo autor para revelar, com humor, as variadas e complexas facetas da existência humana e oferecer ao leitor oportunidade para a reflexão. Para tanto, o cronista apresenta sua cosmovisão no faz-de-conta do mundo ficcional, dando margem a novas possibilidades de interpretação, de acordo com as novas dimensões que ele propõe ao leitor.

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Com efeito, o escritor consegue que um assunto muito sério converta-se em exercício estético do riso crítico, em que a sutileza da ironia é resultado do jogo dialógico entre a narrativa, em tom "irônico-paródico- ambivalente", e a realidade noticiada. Diante disso, pode-se não só ver e analisar o mundo por um foco inusitado, como também transportar-se, por algum tempo, para um universo de fantasia.

O cronista penetra profundamente nos acontecimentos e expõe aspectos relevantes destes que, às vezes, parecem irreais e, através do labor literário, mostra-os ao mundo, uma vez que seu intuito é estimular as pessoas a enxergarem melhor o que está acontecendo à sua volta e a reagirem conscientemente. Além disso, Moacyr Scliar, cronista, ao escrever a paródia, faz com que se reconsiderem certos pressupostos literários como a originalidade artística e sua relação de proximidade ou não com o real.

No exame da relação entre notícia e crônica, há ainda outra questão a considerar. É interessante salientar como o jornal apresenta a constituição visual do espaço em que estão essas crônicas, já que o título e um ou dois parágrafos da notícia de base aparecem num quadro inserido no meio ou à direita do texto, como se intencionalmente se deixasse aberta uma janela de onde se pudesse desvendar a paisagem do mundo real, criticado humoristicamente. Ou, talvez, para ratificar o absurdo da realidade transportada para a ficção paródica pelo olhar do cronista, que espia o

mundo e envolve o leitor numa visão perturbadora do cotidiano, em que o real e o imaginário se fundem, evidenciando vínculos possíveis entre o estético e o social.

Na transfiguração da notícia há sempre uma palavra em torno da qual gira toda a força da temática, pois, ela está carregada de um conteúdo ou de um sentido essencial para o estabelecimento da coerência narrativa. Assim, cada crônica aqui analisada problematiza relações sociais centralizadas em determinados vocábulos, quais sejam: “alimento”, “escola”, “patroa”, “feiúra”, “saúde”, “moradia” e "kasher".

Observe-se, a propósito, que as crônicas, apresentadas neste trabalho, abordam o desinteresse da sociedade pelas necessidades básicas da criança, como alimentação e educação; a perda do poder aquisitivo real do brasileiro; a subversão dos valores estéticos; a ineficácia dos sistemas de saúde pública e de habitação, e a passagem bíblica da travessia do deserto pelos judeus.

Vale ressaltar que há sempre um estado de perturbação, no universo ficcional scliariano, que ajuda a instaurar a ironia no texto e se manifesta implicitamente. Para se entender o teor crítico contido nas entrelinhas da crônica, é necessária a inserção do leitor no contexto da narrativa, pois tal compreensão depende de um conhecimento comum entre

escritor e leitor, um saber compartilhado, que relaciona notícia e crônica e, ainda, outras referências textuais literárias ou não.

A intertextualidade se processa, portanto, com a absorção e transformação de outros textos que se refletem na superfície de um texto literário especial. Em decorrência, as crônicas de Scliar implicam não só a relação entre escritor e leitor, mas também entre o texto e as condições sócio-culturais em que ele é produzido.

Assim, conforme já foi explicitado, as crônicas estudadas a seguir são apresentadas em quatro grupos, classificados de acordo com as personagens mais em evidência em cada uma delas. Ei-las:

1. SOBRE A CRIANÇA: pertencem a este grupo duas crônicas, Latindo pela vida e A escola das ruas, que mostram, com tom crítico, a vida de duas crianças, privadas de alimento e educação adequados; 2. SOBRE A MULHER: este grupo, composto pelas crônicas Patroas do mundo inteiro, uni-vos e Feiúra não é desgraça. Beleza é., caracteriza-se por apresentar, como protagonistas, duas mulheres de categorias sociais diferentes, sendo uma patroa da classe média, revoltada porque ficara sem dinheiro para manter sua posição social, e uma dona-de-casa da classe baixa que subverte conceitos de beleza, uma vez que se considera satisfeita por ter vencido um concurso de feiúra;

3. SOBRE O POVO BRASILEIRO: as duas crônicas desta parte, Consultando no posto de saúde fantasma e Aluga-se, reproduzem ironicamente a luta do povo brasileiro por um bom atendimento nos postos de saúde pública e uma moradia decente;

4. SOBRE O POVO JUDEU: a crônica A pausa que refresca mostra um pouco da mítica tradição judaica, através do olhar crítico do escritor.

Como já foi salientado, consideram-se as crônicas escolhidas como expressivas da obra de M. Scliar, na medida em que são textos que demonstram bem como o escritor faz da preocupação com o social o seu impulso criador, sua forma de engajar-se na busca de uma sociedade mais justa , por meio do trabalho literário.

Na seqüência do presente capítulo, cada crônica será precedida da notícia da qual se origina, para facilitar a compreensão do processo de recriação do fato em texto literário.

3. 1. 1 LATINDO PELA VIDA (crônica)

3. 1. 1 LATINDO PELA VIDA

Baseando-se na notícia jornalística Verba de ração

acabaria com fome infantil, de Mário Cesar Carvalho, publicada na página

10 do caderno “Cotidiano", da Folha de São Paulo de 18 de novembro de 1996, Scliar faz a sua leitura do fato através da crônica Latindo pela vida, datada de 21 de novembro de 1996. Esse texto pode até mesmo ser interpretado como uma caricatura verbal, visto que subverte os dados de realidade presentes na notícia, para acentuar-lhe a crítica social e levar o leitor ao riso oriundo da construção paródica.

A notícia, que apresenta o aterrorizante quadro da desnutricão infantil no país, indica soluções para o problema, embasando-se em depoimentos de especialistas em nutrição infantil. A proposta da matéria é sensibilizar a população, que teria gasto, em 1996, trezentos e cinqüenta milhões de reais em ração para cães e gatos, a fim de convencê-la a direcionar um valor correspondente, ou parte dele, para programas de alimentação a crianças carentes.

Constam da ilustração da reportagem duas fotos: uma da criança, cujo nome é Henrique, comendo no Centro de Recuperação e Educação Nutricional da Universidade Federal de São Paulo, e outra de dois cachorros dálmatas acompanhados de seu dono. O contraste entre as duas fotos é realçado pelas legendas abaixo das mesmas, que citam o valor

mensal gasto para alimentar cada criança (R$ 23,70) e para cada cão (R$ 110,00). Tal oposição causa um grande impacto pelo teor crítico da montagem fotográfica.

Além disso, há ainda um interessante levantamento financeiro que elucida, para o leitor, o que dá para fazer com os R$ 350 milhões gastos com ração, aspecto que corrobora o tom de censura presente na notícia. Esse gasto pode ser considerado um desvio das prioridades sociais, com relação à questão da desnutrição infantil, problema grave que demandaria, da população, maior atenção. A notícia, cujo título já causa impacto, pela maneira como está organizada apela à sensibilidade e à consciência do leitor.

A crônica de Scliar, que tem como “leitmotiv” o título da notícia, não só referenda tal apelo, mas incrementa o tom crítico ao fabular outros dados do texto jornalístico no universo ficcional, como os exagerados valores gastos, por algumas pessoas, para a alimentação de animais; soluções baratas, e sofisticadas, para a fome e a comprovação de que só alimentar não basta.

Para tanto, o escritor vale-se da ironia já no próprio título da crônica – Latindo pela vida – provocando uma ambigüidade que enlaça a imagem do animal bem alimentado à da criança que necessita de alimento para sobreviver, ou a do protagonista, que passa a vida latindo, diante de uma prateleira de rações, no supermercado. O gerúndio latindo é o verbo

que consuma o vínculo entre a notícia e a crônica, ao ser transportado para o novo contexto textual, em situação de confronto.

Assim, a crônica scliariana, sendo um texto ficcional que trata basicamente de um problema humano, reforça seu caráter crítico ao remeter, pela inversão de valores, à discrepância social que a reportagem jornalística evidencia.

A narrativa ficcional, em terceira pessoa, apresenta um narrador que assume seu papel de atento observador dos acontecimentos. O texto inicia-se com a apresentação do protagonista através do seu nome próprio e do apelido, isto é, Raimundo - Mundoca:

Raimundo - Mundoca era o mais novo de oito irmãos, um menino miudinho, pele e osso. Tão magrinho, tão fraquinho, a mãe, Indalécia, achou que ele não iria sobreviver. Mas aí teve uma idéia, uma idéia só aplicável porque o menino era mesmo muito miudinho.

Como todo apelido, Mundoca implica uma apreciação ambígua advinda do diminutivo, unindo o aspecto positivo da forma afetiva, no que se refere à visão que a mãe tem do filho, e o negativo, atribuído à fraqueza física do menino, causada pela carência alimentar.

Raimundo-Mundoca contém o lexema “mundo”, que sofre

transformação, particulariza-se em “mundo pequeno” através da alcunha

Mundoca e restringe o sentido de vastidão contido em “mundo”. É

diminuição, fragilidade e ainda pequenez, aspectos pejorativos relacionados à condição social do protagonista pobre e faminto.

Na caracterização do personagem Raimundo, o apelido

Mundoca é expressão repleta de significação e remete a Bakhtin5. Para o citado teórico, além do sentido ambivalente, um apelido, ou nome-alcunha, estabelece a renovação do nome adquirindo uma individualidade livre e peculiar, que provoca o destronamento do nome próprio.

O carinho da mãe com o filho e a fragilidade deste, enfatizados ainda pelos qualificativos diminutivos miudinho, magrinho e

fraquinho, levam a mãe, uma papeleira (catadora de papel nos lixos da rua),

sem condições para sustentar adequadamente sua família, a pensar numa solução para o problema da carência alimentar do filho Mundoca.

O enredo dá conta de que a mãe passa então a observar que, perto do viaduto em que se abriga com seus filhos, mora uma viúva cega, cujo nome é Dora, que cria muitos cães de raça. Os bichos são tratados com tanta fartura alimentar que, muitas vezes, recusam a comida.

A boa alimentação, de modo geral, representa a vitória sobre a morte. No entanto, as imagens apresentadas, em que animais são mais bem alimentados que seres humanos, levam o leitor da crônica a um estranho espetáculo de abundância, até que ele se conscientiza do paradoxo

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A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.1993, p.408.

da realidade: Mundoca, a criança vizinha dos animais tão bem nutridos está “mal nutrida” porque não tem o que comer, portanto, está sujeita a morrer de inanição.

A ironia do texto, até o segundo segmento, constrói-se na oposição entre os termos de dois campos semânticos diferenciados: oito

irmãos, menino miudinho, magrinho, fraquinho, sobreviver, viaduto, abrigo, que se referem ao âmbito da fome e da miséria, e viúva, sozinha, imensa casa, uma dúzia de cães de raça, bem nutridos, ração da melhor qualidade, tanto alimento, animais enfarados, que dizem respeito ao

território da abundância e riqueza. Trata-se de dois mundos que, embora próximos geograficamente, estão radicalmente separados pelas discrepâncias sociais.

Evidenciam-se assim os dois grandes eixos temáticos da crônica: o da “carência” em oposição a “excesso”. Indalécia tem “excesso” de filhos e amor, mas carece de alimento e moradia adequados para eles. Já a viúva Dora tem “muitos" animais, “muito" alimento e “muito" espaço para abrigar seus bichos, porém, é uma viúva solitária, "falta-lhe” companhia e carinho.

Toda essa desestruturação social gera a perturbação responsável pelas transgressões que se iniciam. Dessa forma, a solução pensada pela mãe, Indalécia, instaura transformações grotescas no curso da narrativa. A crônica, em sua seqüência, desenrola-se de modo a nivelar

seres humanos e animais, criando-se nela a situação insólita de um mundo às avessas, transportada para o universo grotesco. Como culminação desse universo, Mundoca tem que usar a fantasia de cachorro, encontrada no lixo pela sua mãe, e aprender a latir para ganhar comida, como verifica no seguinte excerto:

0 que eles rejeitam será a sua salvação, disse Indalécia. E explicou a Mundoca o plano: ela tinha achado no lixo uma velha fantasia de cachorro, que alguma criança tinha usado no carnaval. Não enganaria ninguém, obviamente - a não ser uma velha senhora cega. Vestido de cachorro, Mundoca ganharia comida. Muito mais do que a mãe, papeleira, poderia Ihe arranjar.

Ao fabular uma estratégia para conseguir receber ração de uma velha senhora cega, na realidade Indalécia quer apenas salvar o filho da desnutrição. A mãe veste o menino com um disfarce de cão e cria uma imagem invertida da situação, que simboliza a negação da condição humana como forma de sobrevivência no mundo dos homens. A vestimenta de cão, transformada em máscara, salienta, ironicamente, o aspecto animal da condição humana e derruba as barreiras entre o possível e o impossível.

Há, porém, uma condição para que Mundoca possa se misturar aos animais para receber comida da viúva cega: ele tem que aprender a latir para se confundir com os cães. Cria-se, com tal obstáculo, uma situação-limite difícil de ser resolvida, visto que o menino se esforça muito, mas não consegue latir. Transgride-se, então, a lógica e introduz-se

outro mundo, onde se encontra o maior entrave para que tudo transcorra de acordo com a sonhada idéia de Indalécia: Mundoca simplesmente não sabia

latir.

O estilo grotesco, que suscita riso por sua extravagância, extrapola os limites do reconhecidamente possível e acentua os defeitos de forma crítica, transgredindo preconceitos e tabus.

Na crônica, a situação grotesca propriamente dita começa,

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