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Do fato ao texto literário: as saborosas crônicas de Moacyr Scliar

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LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES

DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:

(2)

LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES

DO FATO AO TEXTO

LITERÁRIO:

As saborosas crônicas de

Moacyr Scliar

Dissertação apresentada para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de concentração: Teoria Literária e Literatura Comparada), do programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Assis.

Orientadora: Profa. Dra. Heloisa Costa Milton

(3)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis - UNESP

Guimarães, Lealis Conceição G963d

Do fato ao texto literário: as saborosas crônicas de Moacyr Scliar. Lealis Conceição Guimarães. Assis, 1999.

178p.

Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista.

1. Scliar, Moacyr, 1937- 2. Crônicas brasileiras 3. Humorismo brasileiro 4. Paródia.

(4)

LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES

DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:

As saborosas crônicas de Moacyr Scliar

COMISSÃO JULGADORA

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

Presidente e Orientador: Profª. Drª. Heloisa Costa Milton (UNESP) 2º Examinador: Profª. Drª. Adelaide Caramuru Cezar (UEL)

3º Examinador: Profª. Drª. Raul Henriques Maimone (UNESP)

(5)

DADOS CURRICULARES LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES

NASCIMENTO 20. 11. 1946 - JOAQUIM TÁVORA/PR FILIAÇÃO Enéas Costa Guimarães

Lina Conceição Guimarães

1965/1968 Curso de Graduação em Letras

Universidade Federal do Paraná - Curitiba/PR

1967/1992 Professora concursada da rede estadual de ensino (1º e 2º graus) – Curitiba e Londrina/PR

1993/1994 Coordenadora Geral de 2º grau e Curso pré-vestibular Curso e Colégio Metropolitano de Londrina /PR

1995/1999 Docente no Centro de Estudos Superiores de Londrina – CESULON 1999 Docente na Universidade Norte do Paraná - UNOPAR

1995/1998 Participante da Comissão de Elaboração, Aplicação e Correção de Provas do Concurso Vestibular - CESULON

1996/1999 Publicações: Noções da Semiótica Peirceana, Concepções de Crítica Literária em Northrop Frye, T. S. Eliot e Roland Barthes; Estudo Intertextual: Drummond X Drummond; A Crônica e o Olhar Crítico do Século XX; Machado de Assis: A Identidade Nacional. (Revista Terra e Cultura – CESULON)

1996-1999 Apresentação de trabalhos em congressos: A crônica no Brasil do século XIX (X CELLIP – Londrina); Moacyr Scliar: algumas leituras (VI S.E.L. – Assis); Rafael Mendes: perplexo na sua estranha nação (XI LELLIP – Cascavel); Drummond no palco da vida (VII S.E.L. – Assis); As sobras da morte (V EPLLE – Assis); O poeta-viajante-observador (XII CELLIP – Foz do Iguaçu); Oficina de leitura: Cotidiano – um olhar poético (XII CELLIP – Foz do Iguaçu); Do fato ao texto literário: a subversão de valores estéticos femininos (6º Congresso da AIL – Rio de Janeiro).

(6)
(7)

Para

Euphrásia e Manoel, Lina e Enéas,

Marcelo, Renata, Romano,

(8)

AGRADECIMENTOS:

Ao escritor e “co-autor” Moacyr Scliar;

À Heloisa Costa Milton, orientadora deste trabalho ;

Aos professores participantes da banca do Exame de Qualificação, Léa

Mara Valezi Staut e Raul Henriques Maimone, da UNESP de Assis;

Aos outros competentes professores dos Departamentos de Letras Modernas e de Literatura da UNESP de Assis;

Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, da Biblioteca e do Departamento de Letras Modernas da UNESP;

Ao Centro de Estudos Superiores de Londrina (CESULON);

Ao Instituto Estadual do Livro, de Porto Alegre;

Aos meus irmãos Enéas Filho e Sônia Maria e aos outros familiares e amigos: Paulo Henrique, Judith, João José, Daniel, Mariam, Botelho,

Mariza, Fernanda, Ivone, D. Ercina (in memoriam), Pedro, Godoy, Maria Cristina, Bella, Regina Maria;

(9)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

1 A CRÔNICA: O gênero e sua história no Brasil ... 16

1. 1 O gênero ... 17

1. 2 A crônica no Brasil ... 25

2 O HUMOR COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ... 38

3 DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO: As saborosas crônicas de Moacyr Scliar... 52

3. 1 SOBRE A CRIANÇA... 62

3. 1. 1 Latindo pela vida ... 63

3. 1. 2 A escola das ruas ... 76

3. 2 SOBRE A MULHER... 88

3. 2. 1 Patroas do mundo inteiro, uni-vos ... 89

3. 2. 2 Feiúra não é desgraça. Beleza é. ...103

3. 3 SOBRE O POVO BRASILEIRO...116

3. 3. 1 Consultando no posto de saúde fantasma ... 117

3. 3. 2 Aluga-se ... 132

(10)

3. 4. 1 A pausa que refresca ... 145

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 159

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 164

Anexos: Anexo A - ENTREVISTA COM MOACYR SCLIAR ...170

Anexo B – OBRAS DE MOACYR SCLIAR... 173

Resumo...….. 177

(11)

INTRODUÇÃO

Escrever é, antes de tudo, contar história. É uma relação que se faz via literatura.

(12)

O interesse desta pesquisa surgiu da leitura das crônicas do

escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937- )∗, publicadas às quintas-feiras, na

página 2 do caderno "Cotidiano", do jornal Folha de São Paulo.

Foram coligidas as crônicas e garimpadas as reportagens

jornalísticas que deram origem a elas durante o período de 16 de março de

1995 a 28 de agosto de 1997, intervalo de tempo em que a seção em que

tais crônicas eram divulgadas ainda intitulava-se “Boletim de Ocorrência”,

denominação que remete à idéia de assunto policial. No entanto, o que

Scliar apresenta é a recriação do fato noticiado no terreno ficcional.

Ainda com relação à seção, a partir de 4 de setembro de

1997, embora escrita por Scliar, teve o nome alterado para "Cotidiano

Imaginário", título que alia a origem do texto e seu caráter literário, e, de 11

de novembro em diante, ela passou a ser publicada às segundas-feiras,

como se mantém até hoje.

Das crônicas coletadas, extraídas de notícias do cotidiano

jornalístico, nacionais ou internacionais, foram selecionadas sete, como

material expressivo para o presente estudo.

Tivemos um primeiro contato pessoal com o autor ao participarmos do Bate-Papo com o

escritor, no projeto No calor da obra: encontros com a produção cultural contemporânea e na Feira do Livro de Curitiba, ambos os eventos promovidos pela Universidade Federal do Paraná,

(13)

A crônica, essa arte literária resultante de cuidadosa

observação por parte do escritor, tanto se refere ao tecido social, quanto

dele emerge, estabelecendo-se, assim, uma relação de reciprocidade no

que diz respeito à configuração de sua linguagem como manifestação de

um determinado contexto ou época. Evidentemente, o importante é o

tratamento estilístico do assunto escolhido, uma vez que o fato focalizado

é apenas pretexto para as divagações artísticas do cronista.

Neste trabalho, procede-se a uma análise comparativa

visando a estabelecer determinadas características da crônica oriunda da

reportagem jornalística, seus recursos e efeitos estéticos, na medida em

que, como já foi ressaltado, a matéria jornalística interessa apenas como

objeto para uma apreciação ficcional dos acontecimentos com

mordacidade crítica.

Em vista disso, procura-se mostrar como o autor trabalha

literariamente os fatos veiculados no periódico, fazendo-se um confronto

entre a linguagem denotativa jornalística e a linguagem conotativa literária

da crônica, bem como entre esta e outras referências textuais presentes no

corpus literário, como manifesto político, anúncio publicitário, Bíblia

Sagrada, literatura infantil, juvenil e outras. É relevante, portanto, analisar

(14)

literariamente, isto é, verificar de que forma o autor os transforma

esteticamente.

Apresentando uma visão repleta de humor e ironia, típica

de sua condição judaica, como faz questão de ressaltar, esse escritor

gaúcho, nascido em 1937, em Porto Alegre, autor de vários livros

abrangendo contos, romances, ficção juvenil, crônicas e ensaios, começou a

escrever ainda criança. Já em 1951, ganhou o primeiro prêmio por redigir o

melhor conto no Jornal Mural da escola em que estudava, tendo início, a

partir daí, a produção literária scliariana. Premiado inúmeras vezes, com

obras traduzidas em várias línguas, Scliar concilia a literatura com a

profissão de médico sanitarista dedicado à saúde pública. Atualmente, ele

escreve crônicas semanais nos jornais Zero Hora, de Porto Alegre, e Folha

de São Paulo, de São Paulo.

Seus trabalhos literários abordam assuntos da vida política

e social do país e do mundo e, na maioria das vezes, têm fortes marcas do

judaísmo, cuja simbologia manifesta-se especialmente através de desejos ou

sonhos de seus personagens , os quais escapam de determinados parâmetros

sociais para integrar a esfera do absurdo.

Uma grande conhecedora da obra desse escritor, Bella

Jozef, afirma que Scliar,

(15)

presença do sobrenatural como forças misteriosas que condicionam a natureza e a vida do homem. Tudo transcorre no espaço literário, um espaço de fantasmas1.

Explica-se assim como, ao apresentar os grandes temas e as

angústias do tempo atual, o escritor transporta o que considera realidade

perturbadora para o espaço literário, valendo-se de forças sobrenaturais,

quase sempre fundamentadas nos mitos e crenças da tradição judaica, como

elementos extraídos do folclore e do imaginário do povo judeu.

Enfatiza-se a herança judaica de Scliar porque, como ele

mesmo declara na entrevista anexada ao final deste trabalho, essa não é só

uma questão cultural, é um estado de espírito permanente ao qual deve,

principalmente, a sensibilidade da visão crítica do mundo para detectar a

intolerância e a opressão que cercam a vida humana. Tal característica faz

com que ele esteja sempre dissecando e analisando tudo e todos à sua

volta, originando-se da observação contínua o seu impulso criador.

No primeiro capítulo deste trabalho, tecem-se algumas

considerações sobre o gênero crônica, mais precisamente, um quadro da

crônica na imprensa como retrato do universo social ou como uma análise

de mundo. Apresenta-se a evolução histórica da mesma no Brasil, desde o

século XIX, quando aqui se iniciou uma relação muito íntima entre

literatura e jornalismo, que persiste até os dias de hoje. Destaca-se, ainda,

1

(16)

que a crônica, como alimento intelectual do leitor, é uma espécie de pão do

espírito, muito bem temperado com boa dose de humor, uma vez que a

ironia está sempre presente, como resultado de procedimentos estruturais

paródicos.

A crônica, enquanto gênero, sempre provoca a reflexão do

leitor sobre determinado aspecto do cotidiano e, como tal, está

comprometida com a análise da realidade contemporânea, mas,

desvinculada da linguagem objetiva do jornal, caracteriza-se pelo estilo

literário mesclado com humor. Em virtude disso, no segundo capítulo

apresentam-se certos aspectos do humor, como recurso narrativo, a partir de

estudos de alguns teóricos sobre o tema e em função do objeto de análise

deste trabalho.

Em Scliar, o emprego do humor como experiência estética

revela-se característica primordial. É interessante notar que a notícia

selecionada pelo cronista como pretexto para a criação literária parece

inacabada, visto que, além de permitir diversas possibilidades

interpretativas, incita-o ao campo da imaginação. Cria-se uma situação em

que o escritor não só se alimenta do mundo real, como também interfere

nele, com seu tom irônico que descobre novos significados, os quais

(17)

No terceiro capítulo deste estudo, são analisadas as

crônicas que foram publicadas na Folha de São Paulo, como se explicou

anteriormente, e que versam sobre problemas sociais em evidência

atualmente no Brasil e no mundo, como a decadência da classe média, a

subversão de valores estéticos e o desrespeito a direitos indispensáveis à

sobrevivência humana, como alimentação, educação, saúde e moradia, e,

ainda, a tradição judaica.

Na seleção das sete crônicas, destacam-se as personagens

que traduzem melhor determinados tópicos e questões sociais, já

explicitados. Elas são apresentadas em campos temáticos, acompanhadas

das respectivas notícias, na seguinte ordem:

1. SOBRE A CRIANÇA: Latindo pela vida (crônica),

Verba de ração acabaria com fome infantil (notícia) e A escola das ruas

(crônica), Pai é acusado de tirar 4 filhos da escola para pedirem esmola

(notícia);

2. SOBRE A MULHER: Patroas do mundo inteiro,

uni-vos (crônica), Patroa é acusada de roubar empregada (notícia) e Feiúra

não é degraça. Beleza é. (crônica), 'Maria Basculho', 26, é eleita a mulher

(18)

3. SOBRE O POVO BRASILEIRO: Consultando no

posto de saúde fantasma (crônica), Pará investiga postos de saúde

fantasmas (notícia) e Aluga-se (crônica), Família mora dentro de ponte em São Paulo (notícia);

4. SOBRE O POVO JUDEU: A pausa que refresca

(crônica), Coca-Cola kosher chega ao Brasil (notícia).

Para efeito de análise da crônica como escritura paródica, o

texto ficcional é examinado e confrontado com a notícia que lhe dá origem

e com outros textos aos quais remete, para mostrar como Scliar faz a sua

recriação literária.

Por fim, analisadas as crônicas, conclui-se este estudo

enfatizando-se que o olhar irreverente do escritor sobre o cotidiano produz

uma relação declarada, que pressupõe “submissão” inicial do texto literário

(19)

1 A CRÔNICA:

O gênero e sua história no Brasil

A crônica é um continente muito apropriado para que nele caiba o ensaio, uma pequena visão analítica de um determinado momento, fato ou pessoa.

(20)

1. 1 O gênero

A crônica, palavra originária do grego chronikós, relativo

ao tempo (chrónos), e recebida pelo latim como chronica(m), segundo

Massaud Moisés1, significa narração de fatos registrados em ordem

cronológica e, por isso, primitivamente possuía caráter de gênero histórico,

sendo considerada a precursora da historiografia moderna.

Não obstante, observa-se que, na Idade Média,

freqüentemente a história se mistura à ficção em crônicas que relatam os

grandes feitos de heróis mitológicos. Ainda sobre os vínculos que ligam

história e ficção, é interessante destacar o seguinte comentário de Heloísa

Costa Milton:

O fato é que a ficção literária e a história guardam entre si estreita solidariedade, como instâncias que são de representação de experiência humana e pela natureza basicamente narrativa de seus respectivos discursos, que encontram na categoria do tempo o grande eixo estruturador.2

Em verdade, o que se percebe é que, mesmo que se

distingam radicalmente pela aproximação ou distanciamento do real, a

veracidade da história e a verossimilhança da ficção mantêm estreita

1

A crônica. In: ---. A criação literária: prosa. 1982, p.245.

2

(21)

relação, não só por evidenciarem a experiência humana e estarem atreladas

ao fator tempo, como pela estrutura fundamentalmente narrativa de seus

discursos.

Diante disso, como narrativa que mescla veracidade e

verossimilhança, a crônica não pode se desvincular do seu aspecto histórico

e também social, uma vez que, sendo literatura, ela faz parte da cultura, da

história da vida de um povo. O cronista é o contador dessa história que,

independentemente da época, é sempre o reflexo da vida do homem em

sociedade.

Vale lembrar aqui a Carta de Pero Vaz de Caminha, que

relata o descobrimento do Brasil, visto que, apesar das discussões quanto à

sua literariedade, pode ser considerada a primeira crônica brasileira, tanto

no aspecto histórico de relato de fatos contemporâneos ao narrador, como

no sentido de uma construção discursiva que se aproxima da invenção.

Se o descobrimento do Brasil registra-se na forma de

crônica, o gênero, sem dúvida, perfaz uma significativa tradição, cujo

incremento dá-se a partir do século XIX. Em meados deste século, durante

o Romantismo, iniciou-se, especialmente no Brasil, uma relação muito

íntima entre literatura e jornalismo, o que propiciou a fixação da crônica

literária que, ainda fundamentada no tempo, dava destaque ao cotidiano

(22)

Assim, a crônica literária, quase sempre inserida em jornal

ou revista, passou a apresentar aos leitores uma visão analítica dos

acontecimentos do dia ou da semana, numa linguagem conotativa e em

estilo influenciado pela oralidade da cultura popular. Essa narrativa é, de

certo modo, uma forma artesanal de comunicação que, ao fazer a

exploração de algum fato cotidiano, apresenta poucas personagens e estas

se movem num espaço reduzido, que diz respeito, em última instância, à

própria limitação do espaço jornalístico.

É certo, porém, que uma parte da crítica considera de forma

preconceituosa o teor poético da crônica, devido a seu caráter factual, e a

classifica, injustamente, como gênero menor, o que demonstra certo

desprezo às qualidades, já citadas, de um exercício literário feito, na

maioria das vezes, por grandes escritores. Outro motivo, pelo qual se refuta

tal julgamento, é por se reconhecer a crônica como objeto de arte dotado de

uma dimensão valorativa diferente, uma vez que, ao fixar-se no cotidiano,

ela está atrelada a hábitos ou relações específicas do mundo social, cuja

tendência é não só sofrer mudanças ou desaparecer, como também marcar

historicamente uma época.

A propósito, a pesquisadora argentina Susana Rotker3

censura os críticos que duvidam do valor literário da crônica por ser esta um

3

(23)

texto que se baseia na realidade concreta de um fato. Rotker ressalta que a

arte literária não se fundamenta unicamente no emocional ou no imaginário

para ter sentido em si mesma, já que a condição de texto autônomo, na

perspectiva estético-literária, depende de sua expressão total e não apenas

de um aspecto ou outro. Assim, somente o critério de relação factual não

deve ser fator determinante para o reconhecimento da literariedade da

crônica.

No entanto, importa destacar que a tão criticada

aproximação com o real funciona como chamariz para a leitura do texto,

pois favorece a união eficaz entre a objetividade do jornalismo e a

subjetividade da criação literária, que se entrelaçam.

Ainda intimamente ligada a um tempo filtrado pelo

cronista, a crônica evoluiu, de maneira peculiar, como um gênero

propriamente literário, e alcançou um patamar de importância singular na

literatura contemporânea, especialmente na brasileira, como se pode

comprovar através da maioria da crítica especializada no assunto.

Desse modo, a crônica, considerada um gênero híbrido,

situa-se entre a simples reportagem jornalística e a literatura, e se

movimenta entre ser no e para o jornal4 , de acordo com Massaud Moisés,

tendo em vista que é escrita especialmente para ser lida em jornal ou

4

(24)

revista, aspecto que não lhe subtrai, necessariamente, o caráter de obra

literária. Ela é também um convite à reflexão sobre o encontro entre

literatura e jornalismo, propondo-se como um novo gênero literário, signo

de uma época em que comunicação, informação, criação e arte encontram

seu espaço comum.

Além do mais, Eduardo Portela define a crônica como um

posgênero literário5, que, por ser classificada como literatura de massa,

possui a flexibilidade de uma narrativa de estrutura aberta. Isso faz do

narrador um retratista de seu tempo, que se utiliza da pluralidade de

significados do cotidiano moderno, em que o homem vive e presencia

mudanças aceleradas, tanto no aspecto material e científico como no

espiritual e moral.

Em virtude disso, a crônica leva o leitor a perceber o

dia-a-dia e reforça a relação criada entre o escritor, o veículo de massa e o leitor,

sendo compreendida como "gênero vivo", na medida em que o seu

dinamismo provoca a interação, através do jornal, entre o cronista e o leitor.

Por outro lado, Afrânio Coutinho6 , ao se referir à qualidade

literária necessária para esse tipo de narrativa libertar-se de sua condição

circunstancial de texto publicado na imprensa periódica e ser considerado

5

Teoria da comunicação literária, 1973, p.154.

6

(25)

gênero literário, destaca a importância do estilo e da individualidade do

autor para adaptar sua percepção do mundo à veracidade dos fatos

cotidianos. Atrás do cronista está sempre o homem de letras, que trabalha

com as palavras enquanto seu fazer literário vai desvelando cenas inusitadas

que, de outra maneira, passariam talvez despercebidas.

Como bem define Marília R. Cardoso, o cronista é o

interpretante-crítico - o semiólogo de hoje em dia7 , visto que ele dá sentido

à pluralidade de imagens que pululam no cotidiano e expressa, para o

leitor, uma interpretação possível dos fatos da atualidade.

Já Davi Arrigucci Jr. analisa a crônica como um gênero em

permanente relação com o tempo, ou seja, com a memória, de onde tira sua

matéria, que é resultado de lembrar e escrever8. Além disso, o referido

crítico cita o fato de, no Brasil, ela constituir-se em discurso literário pela

elaboração estética da linguagem, do qual sobressai uma fina ironia.

Entretanto, ninguém ainda conseguiu determinar os limites

do território oscilante da crônica, na medida em que, tendo como seus

constituintes os fatos cotidianos e o estilo, conforme já foi ressaltado, ela

transcende a notícia fugaz através do enriquecimento poético, elemento

7

Moda da crônica: frívola e cruel. In: CANDIDO, Antonio [et al.]. A crônica: o gênero, sua

fixação e outras transformações no Brasil,1992, p.139.

8

Fragmentos sobre a crônica. In: ___. Enigma e comentário: ensaio sobre literatura e

(26)

responsável pela sua permanência como arte literária. Em vista disso, as leis

internas da crônica são diferenciadas pela sua conjuntura híbrida, como foi

salientado, uma vez que sua possibilidade poética reside no trabalho de

invenção da linguagem na esfera do cotidiano, em que o cronista deve

apreender constantemente os acontecimentos ao seu redor.

Quanto ao seu caráter efêmero, deve-se à matéria advinda

do cotidiano mutante e ao fato de estar inserida em jornal ou revista,

aspectos reforçados pela sua grande força de comunicação. Embora seja um

texto aparentemente simples, a sua grande dificuldade está no fato de

articular considerações precisas e profundas de maneira concisa e

aparentemente simplificada, para a maior compreensão do leitor, instância

receptiva de fundamental importância para o seu estatuto como gênero

literário.

A propósito, Luiz Costa Lima9 , ao afirmar que a definição

de um gênero se faz pelo que se analisa no processo de leitura, destaca a

importância de se considerar a expectativa do leitor, já que essa interação

explica porque todo gênero literário é uma forma de comunicação entre

escritor e leitor.

Assim, ao se constatar que a crônica não pode ser

considerada um gênero menor, reafirma-se a sua fixação como gênero

9

(27)

merecedor de destaque especial na moderna literatura, tendo-se em vista a

sua reconhecida literariedade e a perspectiva do leitor, que é seduzido pela

leitura relativamente fluida de um texto que o induz à reflexão, sugere

significados e desvela sentidos implícitos nos fatos do tecido social, através

(28)

1. 2 A Crônica no Brasil

Vários são os críticos brasileiros que analisam a crônica no

Brasil, interessados em acompanhar a evolução de um gênero em ascensão

valorativa na literatura contemporânea.

Segundo Afrânio Coutinho, a crônica se firmou em

território brasileiro com características de ensaio, gênero iniciado por

Montaigne, através de sua obra Essais (1580), assimilado pelos ingleses

(familiar ou personal essay), que o definem como uma dissertação breve,

concisa, livre, em linguagem familiar10, em oposição ao sentido da palavra no Brasil, onde ensaio é sinônimo de estudo crítico, histórico, político ou

filosófico, comumente publicado em livros. Coutinho comenta, ainda, que a

grande semelhança entre o ensaio de Montaigne, o ensaio inglês e a crônica

brasileira está, principalmente, na sua estreita relação com a elocução oral.

Já Antonio Candido afirma que, no Brasil, antes de ser

crônica propriamente dita, essa modalidade textual foi “folhetim”, ou seja,

um artigo de rodapé sobre as questões do dia, políticas, sociais, artísticas, literárias11. Conforme declara o crítico, o folhetim foi se transformando

10

Ensaio e Crônica. In: ___. A literatura no Brasil,1968, p.107.

11

A vida ao rés do chão. In:___. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no

(29)

gradualmente, deixando a função de informar ou comentar para narrar fatos

com toques de humor, até adquirir as características de crônica

propriamente dita, veiculada através de meio de comunicação popular

(jornal e revista).

Mesmo assim, durante algum tempo, a seção em que se

publicavam essa e qualquer outra forma literária denominava-se

genericamente folhetim e ocupava, no início, o espaço do rodapé do jornal.

Nesse espaço, abrigou-se a crônica, que tratava de assuntos variados do

cenário brasileiro, com uma linguagem repleta de traços de oralidade

trabalhados com a criatividade literária. A crônica foi, reconhecidamente,

uma das primeiras tentativas de se fazer literatura nacional.

A pesquisadora Marlyse Meyer declara que, na nossa

balbuciante cultura12, o território livre do folhetim, onde a crônica se instalou, teve um importante papel, na medida em que ajudou a configurar

uma cultura mais brasileira, em seu gradativo processo de desprendimento

do modelo francês.

Para tanto, a crônica apresentava periodicamente, em jornal

ou revista, os fatos da semana, de cada quinze dias ou do mês, e seus

autores buscavam as preferências da sociedade e, em especial, do mundo

feminino. O escritor preocupava-se em não cansar o leitor, para manter vivo

12

(30)

o interesse deste pela matéria, a qual, algumas vezes, serviu de base para a

escritura de romances. Mas o fato é que a crônica brasileira, além de servir

para o entretenimento dos leitores, caracterizou-se pelo romantismo, de

acordo com o estilo literário em evidência na época do advento do jornal no

país.

Constata-se, então, que a crônica, enquanto narrativa

ficcional ligada à imprensa periódica, como a temos hoje, apareceu no

Brasil em meados do século XIX. A sua intensa e rápida penetração no país

criou um grande número de leitores, o que tornou imprescindível a

publicação desse tipo de texto nos jornais e revistas, até os dias atuais.

Como narrativa escrita que resulta de uma cultura auditiva

como a nossa, como narrativa em que os enunciados visam a persuadir

sedutoramente o leitor, a crônica encanta por seu tom acariciante de

conversa à beira da rede ou ao pé do fogo, de conversa despreocupada, de

acordo com Costa Lima13. O crítico enfatiza que o sistema intelectual

brasileiro caracteriza-se por seu aspecto preponderantemente auditivo,

salientando que está ligado a uma cultura de persuasão, baseada na

oralidade, em que as palavras são usadas para seduzir o receptor. Assevera

também que a crônica é o gênero mais representativo dessa escritura

brasileira oriunda de uma tradição oral.

13

(31)

Esse tom peculiar da cultura brasileira, responsável pelo

sucesso da crônica, que Massaud Moisés chama de caráter sui generis14 , é

a nova forma adquirida pelo gênero, quando se aclimatou ao Brasil do

século XIX, amalgamado ao jornalismo.

O primeiro a escrever crônica brasileira propriamente dita

foi Francisco Otaviano, em folhetim do Jornal do Commercio do Rio de

Janeiro, publicado em 2 de dezembro de 1852. Ele escreveu também no

Correio Mercantil do Rio de Janeiro até 1854. A partir de então, chamado a

substitui-lo, o jovem José de Alencar, aos vinte anos, tornou-se folhetinista

do Correio Mercantil, de 1854 a 1855.

Com o estilo romântico do escritor cearense, a crônica,

inicialmente carioca, naturalizou-se brasileira e foi perdendo

gradativamente a carga informativa para adquirir uma linguagem mesclada

de poesia e humor. Importa ressaltar que, segundo a maioria dos críticos, foi

José de Alencar quem elevou a crônica a uma categoria intelectual, não

obstante fosse escrita numa seção do Correio Mercantil denominada

“Páginas Menores”. A propósito, Ao correr da pena é o título do livro,

editado em 1874, em que José de Alencar reuniu suas crônicas e nas quais

demonstrava a mesma preocupação estilística com que escrevia seus

romances.

14

(32)

Vale lembrar, ainda, que, no suplemento “A Pacotilha”,

desse mesmo jornal, Manuel Antônio de Almeida também escreveu, de

1852 a 1853, sob o pseudônimo de “Um brasileiro”, os fascículos de seu

célebre romance Memórias de um sargento de milícias, publicado em dois

volumes, em 1854 e 1855.

É certo que, sedimentada por Alencar, essa modalidade

literária atingiu o apogeu, entre nós, ainda no século XIX, com Machado de

Assis, que iniciou suas atividades nesse gênero em 1859, na revista O

Espelho, também no Rio de Janeiro. Ele escreveu numerosas crônicas, sob

diferentes pseudônimos, retratando os acontecimentos do mundo e da

sociedade carioca, no período de 1859 a 1897. Esses textos foram reunidos

cronologicamente e publicados com os títulos: Miscelânea (crônicas de

1859), Histórias de Quinze Dias (de 1876 a 1877), Notas Semanais (de

1878), Balas de Estalo (de 1873 a 1886) e A Semana (de 1892 a 1897).

O final do século XIX e início do XX teve também outros

expressivos cultivadores do gênero, tais como França Júnior, Olavo Bilac e

João do Rio, cujas crônicas já antecipavam características, que se mantêm

até hoje, como o humor amalgamado ao estilo poético e à linguagem mais

(33)

Davi Arrigucci Jr.15 observa a visível insegurança da

maioria dos jovens cronistas do século XIX, motivada não só pelo impacto

da novidade literária constituída pelo jornal, veículo que era um dos

instrumentos da modernização no país, como também porque tais escritores

utilizavam o labor artístico da crônica como aprendizado para se

entregarem, depois, a gêneros mais extensos como, por exemplo, o

romance. Para o crítico, foi a geração de cronistas de 1940, composta por

escritores como Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e, especialmente

Rubem Braga, a responsável pela valorização do gênero no Brasil. Por

outro lado, poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade

também deram importante contribuição ao analisarem os fatos do dia-a-dia

através da crônica.

Já o ensaísta Eduardo Portela lamenta não ter sido

satisfatoriamente admitido o mérito literário da crônica no Brasil e enfatiza

que ela é um exemplo específico de gênero predominantemente brasileiro,

desde o século XIX, com Machado de Assis, até os dias de hoje, com outros

grandes escritores. Argumenta, também, que a crônica, injustamente

marginalizada como literatura, é uma obra de arte com sua própria verdade,

é um signo-em-si16 . Diante disso, pondera que ela tem importância histórica

15

Fragmentos sobre a crônica. Op. cit., 1987, p.57.

16

(34)

peculiar na literatura brasileira contemporânea, onde perfaz uma evolução

valorativa ascendente, visto que, gradativamente, foi sendo reconhecida

como respeitável gênero literário, trabalhado por grandes escritores.

Tendo em vista que a história da crônica na imprensa

brasileira teve início no século XIX, como foi mencionado, é interessante,

neste ponto, apresentar o olhar de dois grandes cronistas daquele tempo,

José de Alencar e Machado de Assis, sobre o seu próprio fazer literário.

Dessa maneira, através da metalinguagem, procura-se entender o caminho

percorrido pela crônica, na medida em que alguns de seus aspectos básicos

se mantêm até hoje, como a narrativa voltada para o cotidiano e mesclada

com um comentário emotivo ou uma reflexão irreverente, que revela a

intimidade do autor com o leitor, e outros se modificaram no decorrer do

tempo, por necessidade de adaptação a mudanças políticas, sociais,

ideológicas e artísticas.

De qualquer forma, tanto José de Alencar quanto Machado

de Assis aludiram à possibilidade de perpetuação da crônica, apesar do

caráter aparentemente passageiro do gênero. José de Alencar , em 17 de

setembro de 1854, afirma que a crônica futura desta heróica cidade

consignará nas suas páginas que, pelo começo da primavera do ano de 1854, tivemos um divertimento de graça17. Assim, com referência à

17

(35)

“crônica futura”, ressalvando-se os excessos, Alencar parece prever a

propagação da crônica.

Por outro lado, Machado de Assis faz a seguinte

consideração, cujo teor também é a perspectiva de futuro: Que inveja tenho

ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do século XX!18

Além de conjeturar sobre o futuro, Machado salientou a relação da crônica

com textos bíblicos, especialmente os do Antigo Testamento, como escreve

em 8 de outubro de 1893:

A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dele, dia após dia, até o sétimo em que o Senhor descansou.19

Como se percebe, o referido escritor lança a idéia

bem-humorada de que o Antigo Testamento é também uma crônica, dado que é

narrativa do cotidiano. Além disso, conjetura sobre a origem do gênero, ao

fazer a seguinte afirmação:

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia.20

18

A Semana (1895). In: ___. Obra Completa. v.3, 1985, p.645.

19

(36)

Seja como for, talvez as vizinhas tivessem começado com

Bons Dias e terminado com Boas Noites, como Machado de Assis

costumava escrever em seus textos. Ele tinha consciência da necessidade de

se darem características mais brasileiras (certo instinto de nacionalidade)

ao texto literário, para a crônica adequar-se ao espírito nacionalista da

época, embora afirmasse ser difícil escrever folhetim e ficar brasileiro21,

numa nítida referência ao fato de ser um gênero importado.

É interessante salientar que os dois escritores citados

caracterizam o cronista através da metáfora do colibri. José de Alencar

descreve o cronista como

uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague e a sugar, como o mel das flores, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho! 22 .

Quase da mesma forma, Machado de Assis assevera que o

folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal23. Em vista disso, o folhetinista, como o colibri, agita-se por todos os lados para

conseguir captar melhor o humor dos fatos cotidianos da sociedade em que

vive. Note-se aqui que o folhetinista se confunde com o cronista, o que é

20

História de 15 dias (1877). In: ___. Obra Completa. 1985, v.3, p.370.

21

O folhetinista. In: ___. Obra Completa. 1985, v.3, p.960.

22

Ao correr da pena (1854). Op.cit. ,1960, v.4, p.648.

23

(37)

comum, porque a seção do jornal ou revista em que se publicam as

crônicas, como se viu, denomina-se “Folhetim”.

Nesse espaço, o trato de assuntos leves,

descompromissados, destinados ao entretenimento, agrada principalmente

ao público feminino da época. Como diz Marlyse Meyer24, alguns dos

principais aspectos constitutivos da crônica à moda brasileira já estão

presentes nessa seção do periódico, desde a sua origem. Depois, no seu

decurso, a crônica amplia sua gama de leitores, ao incorporar o

questionamento social, às vezes até de forma irreverente.

Assim, no século XX, a crônica continua ligada ao tempo,

reconstruindo a memória ao desenhar a identidade de uma geração através

da interação locutor-texto/contexto-receptor. Ela adquire, então, um caráter

mais intelectual, apresentando um humor reflexivo, de sentido dúbio, que,

aliado ao teor poético, confere-lhe a consistência que a distingue

atualmente. É necessário reafirmar que a crônica agrada justamente pelo

humor e pela força poética da elaboração de sua linguagem, o que favorece

a sua penetração psicológica e social junto à instância receptiva.

Ela é valorizada, apesar de exibir um caráter supostamente

transitório e estreitamente ligado ao jornal ou à revista, por ser um labor

artístico literário com aparência de “conversa fiada” do simples

24

(38)

chão25, como diz Antonio Candido, mesmo quando escrita em forma de monólogo.

O crítico afirma, ainda, que a consolidação do gênero no

Brasil se deu por volta de 1930, com o aumento do número de bons

escritores-jornalistas, que transformaram assuntos sérios em matéria textual

aparentemente despretensiosa, mas eivada de caráter literário e tom crítico.

Esses escritores fizeram da sua "conversa" com o leitor, através da crônica,

um trabalho literário, em que o cronista faz do contar histórias do cotidiano

uma arte narrativa para exprimir os valores da época. Assim, a crônica,

sendo literatura, redescobre a informação e retira desta a sua função

meramente referencial, realizando-se esteticamente através da preocupação

do cronista com a palavra elaborada.

Do século XIX para cá há um longo percurso, em que a

crônica, ao mesclar narrativa, poesia e humor, atingiu um alto grau de

amadurecimento, com seu quantum satis (sua dose certa) de literatura, do

qual resulta o encontro mais puro da crônica consigo mesma, como afirma

Antonio Candido26 .

Por outro lado, o cronista contemporâneo Artur da Távola

ressalta que a crônica pode traduzir, de maneira precisa, o eterno existente

25

CANDIDO, Antonio [et al.]. A vida ao rés do chão. In: ___. A crônica: o gênero, sua fixação e

suas transformações no Brasil,, 1992, p.14.

26

(39)

em cada efêmero27. Desse modo, a moderna crônica brasileira, sendo gênero literário típico do jornalismo, caracteriza-se pela concisão narrativa

e, enquanto arte, sua ressonância ultrapassa os limites dos dramas diários da

sociedade, estampados nos meios de comunicação coletiva.

Vale ainda ressaltar que, segundo Carlos Drummond de

Andrade, o artista ou o cronista é um espião da vida e quem não for bom

espião do seu tempo não deixará lembrança na terra28 ou seja, o bom

escritor é o que consegue não só ver mas examinar criticamente o mundo

em que vive e, explorando a ambigüidade, desperta a fantasia e provoca a

vadiação do espírito.

Em resumo, a crônica passa a ser literatura quando o

cotidiano se transforma em arguta invenção, no âmbito da linguagem, da

realidade concreta em que se apóia, compondo um vivo quadro de usos,

situações e comentários da sociedade humana. Essa vivacidade está

presente no toque de humor manifestado pelo olhar irônico com que o

cronista analisa os fatos, dando-lhes um novo sabor.

Diante disso, com certeza, a crônica é literatura, e boa

literatura, como a que fazem Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Carlos

27

A crônica da crônica. O Globo.Rio de Janeiro, 3 set. 1979, p.24.

28

(40)

Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto (Stanislaw

Ponte Preta), Rubem Braga, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Nélson

Rodrigues, Artur da Távola, Luís Fernando Veríssimo e Moacyr Scliar,

(41)

2 O HUMOR COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

E o indivíduo tem no humor uma forma de escapar ao sentimento de insegurança. O riso permite ao homem esquecer-se e apaziguar-se.

(42)

A riqueza conceitual da palavra “humor” (do latim humor,

-oris) implica, originalmente, um material de fluidos ou líquidos do corpo

humano, de cujo equilíbrio depende a saúde, para conotar, a partir dele, um

sentido metafórico relacionado a uma condição de equilíbrio mental, a um

modo de ser. Contudo, apesar do conceito científico (fisiológico e

psicológico) do vocábulo humor, ele foi habilmente estudado pelos homens

de letras de todas as épocas, desde a antigüidade clássica.

Assim, embora com abordagens diferentes, os autores

gregos e latinos fizeram conjeturas a respeito do humor sob uma

perspectiva ética, em que analisaram o riso provocado por ele como uma

faculdade humana e, em virtude disso, tentaram determinar condições para

seu emprego adequado.

Os gregos conheciam o conceito de humor e,

conseqüentemente, do riso, com o sentido semelhante ao que se tem hoje.

Aristóteles, por exemplo, apresenta em sua Arte Poética, entre outras

questões, a percepção do ridículo, elemento essencial da comédia, como

causa do riso. Do mesmo modo, a literatura latina, com os escritos de

Cícero e Quintiliano, examina o riso sob o ponto de vista da ética, mas o

considera um recurso da retórica, ao enfocar os modos e os objetivos de seu

(43)

O crítico Santiago Vilas1 afirma que o conceito literário de

humor na Europa iniciou-se na Espanha, com Marco Valerio Marcial, que

viveu entre os anos 43 e 104 e escreveu epigramas inspirado no tom festivo

do humor popular da época.

Isso posto, Santiago Vilas cita exemplos de escritores

franceses e ingleses dos séculos XV e XVI, como François Rabelais, com

obras de crítica satírica de costumes como Pantagruel (1532) e Gargantua

(1534), e Montaigne, que, em sua obra Essais (1580), populariza a acepção

de humor como momentânea disposição de ânimo de uma pessoa.

O crítico trata, ainda, de Ben Jonson, considerado pelos

ingleses como o criador de the comedy of humours. Em suas publicações

Every man in his humour (1598) e Every man out of his humour (1599), ele

distingue dois tipos de humor: o inato, que caracteriza uma pessoa e a

diferencia de outra, ou seja, o seu temperamento, e o que é adquirido, talvez

por imitação, “à moda de”, expressando-se ridiculamente na forma de

comportamento, vestuário, fala, tão bem representado pelos personagens de

Molière.

A partir de então, já no século XVII, indiscutivelmente o

humor europeu sofre influência, direta ou indireta, da literatura espanhola

de Cervantes e Quevedo. No entanto, no final desse mesmo século, o inglês

William Temple, autor de Of poetry (1690), depois de detectar elementos

1

(44)

humorísticos coincidentes em vários escritores de seu país, torna-se o

primeiro a postular que o humor é característica do povo inglês e o

vocábulo humour, peculiar desse idioma.

Daí em diante, o “humour inglês”, situado numa zona

neutra e indefinida, que não nega nem afirma, converte-se em orgulho

nacional, sendo considerado pelos próprios ingleses como o melhor do

mundo e aceito por todo o resto da Europa. Assim, aplicado ao estilo

anglo-saxão, o humour consiste em se dizer ou se representar, em tom

aparentemente sério, as situações engraçadas, insólitas, ou mesmo funestas,

tendendo, neste último caso, a ser também sarcástico. De qualquer forma,

ressalvados os exageros, não se pode esquecer de que os ingleses foram os

responsáveis pela inclusão da palavra humour no vocabulário da crítica

literária.

No século XVIII, época dos descobrimentos científicos,

estabelece-se a diferença entre o humor, mais alegre e natural, e a

espirituosidade, ou perspicácia (ingenio, em espanhol; wit, em inglês),

considerada categoria superior, porém baseada na amargura. Além do mais,

importa salientar que as deficiências físicas e mentais também serviram de

objeto para escritos sarcásticos. Por outro lado, na segunda metade desse

mesmo século, houve sensível mudança no conceito de humor, visto que

transforma-se a visão satírica das anomalias em atitude de compreensão e

(45)

No século XIX, os alemães publicaram tratados sobre o

humor, com destaque para Johan Paul Friedrich Richter, com a obra

Vorschelu der Ästhetik (1804), na qual afirma que o riso instaurado pelo

humor funciona como uma espécie de fuga da realidade, da dor e do

sofrimento.

Importa destacar, ainda, no final do século XIX e início do

XX, os filósofos Henri Bergson (francês), Sigmund Freud (austríaco) e o

literato italiano Luigi Pirandello, dentre os que contribuiram com

importantes ensaios sobre o humor.

Bergson publica Le rire (1899), obra em que analisa o riso,

especialmente aquele provocado pelo elemento cômico. Ele enfatiza que o

riso é provocado quando se instaura o absurdo, que só é cômico por estar

relacionado ao que parece impossível ao homem ou ao seu comportamento.

O absurdo, no caso, é simplesmente um meio muito eficaz de revelar a

comicidade de uma situação. Resulta daí que não é propriamente uma

repentina mudança de atitude que provoca o riso, mas o estranhamento

causado pelo que há de involuntário nessa mudança, já que o cômico é

casual, de acordo com a teoria de Bergson.

Para o autor, o humor decorre, ainda, da insensibilidade

humana, em oposição à emoção, diante dos fatos da vida. Assim o riso, para

(46)

momentânea do coração2 e deve dirigir-se à “inteligência pura”, na medida em que muitos dramas podem ser transformados em comédia, se forem

presenciados por um espectador neutro, isto é, indiferente aos

acontecimentos. Em vista disso, é o homem que se apresenta como

espetáculo ao próprio homem.

Outro aspecto salientado pelo filósofo é a dimensão social

do riso, em virtude de, muitas vezes, ele só adquirir sentido porque está

relacionado aos costumes e idéias de uma determinada comunidade ou

época. No caso, o riso é um gesto social empregado para ressaltar ou

reprimir certas pessoas ou acontecimentos que subvertem as normas

convencionadas.

Bergson refere-se também à comicidade das palavras, que

consiste em provocar certo desvio de linguagem com a inserção de um

disparate em um modelo consagrado de frase ou através de um jogo de

palavras, sempre se considerando o contraste com o contexto evidenciado.

Merece ainda destaque a oposição entre ironia e humor,

demonstrada por Bergson. A ironia enuncia o que deveria ser, fingindo-se

acreditar ser precisamente o que é. O humor, pelo contrário, descreve cada vez mais meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as

2

(47)

coisas deveriam ser3. Diante disso, a relação contrastante está em que a ironia, de natureza retórica, fundamenta-se no ideal e o humor, mais

científico, baseia-se no real.

Assim, vale ressaltar que o pensamento bergsoniano sobre

o riso se funda na percepção das contradições e o efeito cômico se

manifesta em toda atitude humana que se assemelhe a um gesto mecânico,

automático, isto é, um movimento sem vida. O filósofo comprova isso com

alguns exemplos, como aquele dos soldadinhos de chumbo enfileirados que,

ao caírem uns sobre os outros, provocam o riso na criança.

Por seu turno, Freud dedica-se ao estudo do risível

indiretamente em suas obras e, em especial, nos ensaios Os chistes e as

espécies do cômico (1905) e O humor (1927), abordando o tema de forma

distinta da de Bergson.

Ademais, Freud assinala que o risível é percebido em três

domínios diferentes, ou seja, o chiste, o cômico e o humor, apesar do

caráter liberador comum entre eles. O teórico vincula tais domínios ao

princípio de prazer, já que são modos de obtenção do prazer pela atividade

intelectual. Ele ressalta que o humor se distingue por possuir qualquer coisa

de grandeza e elevação que o chiste e o cômico não têm. Na concepção

freudiana, a característica essencial do humor funciona como uma

3

(48)

superação ou defesa do ego diante das provocações advindas da existência,

as quais podem traumatizar o homem.

De qualquer forma, o que se percebe é que a sua teoria

freqüentemente relaciona o humor e o riso com a sexualidade e a

obscenidade, fatores considerados importantes devido a determinados tabus

que a sociedade consegue incutir nas pessoas.

A seguir, sobressai-se Luigi Pirandello, que publica, no

início do século XX, seu ensaio L’umorismo (1920), indispensável para a

compreensão de sua obra e básico para o humorismo e para a literatura em

geral, visto que o citado teórico é considerado um dos mais respeitáveis,

especialmente no que se refere à dramaturgia.

No citado ensaio, Pirandello declara que o humor, embora

de difícil definição, possui várias facetas, segundo as diversidades que

naturalmente se manifestam quanto à língua, à nacionalidade, ao contexto

social e histórico e ao talento e estilo dos escritores. Não obstante, tais

facetas apresentam uma base comum, isto é, são dotadas de uma mesma

essência, que é, em última instância, a que provoca o riso.

Ao comentar que o humor se valoriza com o emprego da

ironia, Pirandello estabelece a distinção entre o modo teórico e o filosófico

de se entender a ironia. Para tanto, ele explica que a ironia como figura de

retórica implica uma contradição fictícia entre o que se diz e o que se

(49)

movimento romântico alemão, a ironia é essa força que permite ao escritor

dominar a matéria que trata e reduzi-la a uma paródia, ou uma farsa

declarada.

No caso da ironia retórica, por se fundamentar em

contradição fictícia, apenas deprecia a realidade. Ao contrário, a ironia

romântica com sentido filosófico, embora dela não se possa separar também

o caráter burlesco e mordaz, deve ser entendida como um alerta, pois clama

o leitor, ou ouvinte, a refletir sobre algum assunto.

Diante dessas considerações, Pirandello conclui que o

verdadeiro humor está mais próximo da ironia filosófica, tendo em vista

que ele consiste no sentimento do contrário produzido, em especial, pela

atividade de reflexão sobre as diversas simulações da luta pela vida,

percebidas pela aguda intuição do escritor.

Merece ainda destaque o pensamento de um dos mais

importantes teóricos da literatura contemporânea, o russo Mikhail Bakhtin,

cujos estudos Problemas da poética de Dostoiévski (1929) e A cultura

popular na Idade Média e no Renascimento (1965) revelam as formas e

expressões do riso, principalmente através do enfoque das tradições e das

fontes do carnaval.

Segundo o autor, o século XVI marca o apogeu da história

do riso com o romance de Rabelais. Tal situação motivou-o a uma

(50)

Idade Média e do Renascimento que, apesar da sua heterogeneidade,

refletem um mesmo aspecto cômico do mundo, em que o carnaval ocupa

um lugar de destaque.

A teoria bakhtiniana define o carnaval como uma forma

sincrética de espetáculo de caráter ritual4, em que o povo encarna uma forma especial de vida, ou seja, uma segunda vida em um mundo invertido,

baseada no princípio do riso. Com efeito, a cultura do riso é essencial para a

concepção de carnaval de Bakhtin.

A propósito, ele destaca que esse riso se manifesta devido à

inversão de valores que evidencia a oposição à cultura oficial, ao tom sério,

religioso e autoritário de uma época, já que derruba as barreiras impostas

pela condição social, idade, cultura e qualquer tipo de relação entre

superiores e subordinados. Diante disso, as hierarquias são ridicularizadas e

deixam de existir os estamentos sociais, na medida em que não há mais

diferenças, e estabelece-se a igualdade entre os mais diversos seres, que se

misturam pelo riso universal ambíguo.

Dessa forma, todos os que participam deste espírito de

transgressão das leis tendem a valorizar as manifestações das chamadas

classes marginais da sociedade, em detrimento dos poderes próprios das

autoridades. Tal comportamento se justifica, já que, como foi explicado,

4

(51)

uma das funções mais importantes do riso, caracterizado basicamente como

fenômeno de comunicação humana que resulta de uma oposição de

sentimentos ou idéias em um determinado sistema sócio-cultural, é

revelar-se como uma manifestação de conflitos sociais. Em vista disso, percebe-revelar-se

que o humor, mesmo crítico, também pode provocar riso ao evidenciar a

relação problemática do ser humano com o autoritarismo de certas

estruturas sociais de poder, embora nem sempre isso ocorra.

Em decorrência, encontra-se aí uma visão de mundo

específica, marcada pelo riso provocado pelo caráter liberal e contestador

da subversão de valores sociais preestabelecidos. Essa cosmovisão

carnavalesca cria uma linguagem simbólica susceptível de transposição

para a linguagem da literatura. Tal processo de transposição é denominado,

na teoria bakhtiniana, de carnavalização da literatura5, cuja essência está

no seu caráter ambivalente, em razão da plurissignificação da linguagem

empregada para focalizar as imagens que traduzem a vida deslocada do seu

curso habitual. Com isso, a linguagem literária enfatiza a ambigüidade, ou

seja, as palavras adquirem múltiplos significados, que possibilitam a

renovação de sentidos.

Ao analisar as particularidades características do

cômico-sério, Bakhtin destaca que o problema da carnavalização da literatura é uma

5

(52)

das mais importantes questões da poética dos gêneros, visto que existe uma

influência determinante do carnaval na literatura. Assim, a paródia

sobressai-se como elemento indispensável a todos os gêneros

carnavalizados, tendo em vista que ela se constitui no modo privilegiado de

se fazer carnavalização artística.

A propósito, Linda Hutcheon, pesquisadora das

manifestações artísticas pós-modernas, em sua obra Uma teoria da paródia

(1985), salienta que a paródia é uma forma estética dotada de

auto-reflexividade dialógica, e não monológica, e define-a como uma forma de

discurso interartístico 6, que mostra uma relação explícita entre as diversas formas de arte para criticar e reavaliar as semelhanças ou diferenças

existentes entre os textos comparados e gerar humor crítico. Ela declara,

ainda, que uma das tendências da literatura pós-moderna é parodiar o

discurso não-literário.

Com efeito, percebe-se que a intertextualidade, ou seja, a

relação entre textos que remetem uns aos outros, é uma característica

inerente à paródia. Entretanto, sendo paródica, a intertextualidade

estabelece-se não só na semelhança com o texto primitivo como na

diferença crítica manifestada na mudança de linguagem ou de foco

analítico, com deliberada intenção de produzir humor.

6

(53)

Assim, importa reafirmar que a paródia, sendo

concomitantemente especular e crítica, supõe a retomada de uma escrita por

outra e seu referente é bem marcado, na medida em que ela se define ao se

propor refletir outro texto. O texto paródico, embora exija certa distância

crítica, identifica-se na comparação com o outro texto, movimentando-se

num vaivém intertextual em que o leitor detecta a diferença irônica nele

contida.

Em função disso, o gesto escritural de carnavalizar a

notícia, que empreende Scliar, instaura a paródia, que é um dos mais

poderosos instrumentos da crítica social, como imitação intencionalmente

contestadora. O escritor emprega esse importante recurso literário com

maestria, intensificando seu efeito com as tonalidades específicas do humor

como experiência estética para conferir transcendência à crônica, em

oposição ao caráter efêmero do texto escrito em jornal.

Entre a crônica e a notícia há um ponto de intersecção em

que a intertextualidade se realiza no encontro das semelhanças e das

diferenças e mostra que a crônica alude à notícia, embora suas construções

tenham intenções diferenciadas. Isto se explica, em última instância, porque

a notícia está comprometida com a veracidade dos fatos e a crônica, por ser

ficção, opera ludicamente com esses fatos.

É importante ressaltar que as notícias escolhidas, por

(54)

contornos inusitados, os quais acirram o efeito crítico-humorístico na

atmosfera literária criada pelo escritor para evidenciar a importância desse

diálogo paródico entre os textos.

Quanto à linguagem propriamente dita, a empregada por

Scliar possui marcas de oralidade, com construções lingüísticas imbuídas de

uma variedade de fios ideológicos, que articulam a visão crítica sobre

diversos tipos de relações sociais e permitem o riso melancólico e reflexivo,

particularizado pelo próprio autor como “humor judaico”.

Essa modalidade de humor, segundo Scliar, Finzi & Toker,

não tem, como se salientou, uma definição precisa, mas pode se distinguir

por não lutar só “contra”, mas também “por”: por uma ética pessoal isenta

de preceitos restritivos tradicionais, por uma sociedade mais justa, e pela liberdade de cada qual ser como é sem temer a ação insidiosa do preconceito7, visto que se caracteriza por desafiar os sistemas sociais vigentes e criticar as desigualdades, em defesa de justiça no tocante aos

direitos humanos.

7

(55)

3 DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:

As saborosas crônicas de Moacyr Scliar

Para escolher as notícias, eu vou lendo o jornal todos os dias. De repente, lá está: algo que, por ser patético, ou grotesco, ou inusitado pega a condição humana, por assim dizer, desprevenida. Não é realismo mágico, mas é a realidade em seu limite, a realidade que às vezes parece ficção.

(56)

Desde seu primeiro livro de contos, publicado em 1968,

intitulado Carnaval dos animais, ao criticar a violência, Scliar já

entremostra, em narrativas sucintas, com a linguagem cortante do seu

humor, um mundo invertido, em que animais têm características

sinistramente humanas, como se a vida fosse um palco festivo onde todos

usam máscaras para melhor encenarem a desumanização do homem.

A propósito, evidencia-se que, independentemente da

temática abordada, sobressaem o humor e a ironia, pelos quais o escritor

mostra criticamente os disparates da realidade no contexto do passado

histórico ou da atualidade.

No caso específico das crônicas de Moacyr Scliar aqui

analisadas, a palavra da notícia se deixa transfigurar pela interferência da

palavra literária, que passa então a constituir um universo discursivo

autônomo, com toda a sua carga de invenção ficcional.

Os acontecimentos da vida, que retratam uma sociedade

moderna desorientada e fragmentada, são os materiais interpretados pelo

artista e, no caso, pelo cronista, pois tudo pode funcionar como argila, isto

é, como material que deve ser aproveitado para esculpir sua arte. Assim, no

processo de criação das crônicas, a argila é a notícia moldada artisticamente

pelo escritor e transfigurada em literarura, o espetáculo de situações

(57)

Em vista disso, pode-se afirmar que a criação artística de

Scliar se processa como um jogo de espelhos, em que um ou vários textos

se projetam num outro, formando a crônica. No entanto, essa projeção

adquire outra imagem porque são descobertos novos significados,

especialmente os que chegam ao limite da lógica convencional, voltados

para as necessidades cotidianas das pessoas. Passa-se ao mundo da

imaginação e esse transporte do real para o fictício realiza-se pela criação

literária carnavalizada, uma inversão que produz a crítica às ordens e aos

valores predeterminados, como já se enfatizou.

Merece destaque a ironia do texto, que é a tônica desse

jogo artístico-literário e manifesta-se implicitamente, sendo necessária sua

inserção no contexto da época, o que depende, para a projeção de sentidos,

de um conhecimento comum entre escritor e leitor. Diante disso, o leitor é

despertado por uma espécie de humor que não perde de vista as fraquezas

humanas, principalmente as aflições das classes média e baixa da

sociedade. Tais aflições podem gerar conflitos psicológicos que, muitas

vezes, são transformados em neurose, doença do século XX, segundo

Scliar1 .

1

(58)

As narrativas, escritas em tom irônico, levam o leitor a rir

e, ao mesmo tempo, a refletir sobre a temática proposta, pois, com humor

crítico e misturando realidade e imaginação, Scliar questiona um dos

grandes problemas da modernidade: como o ser humano pode encontrar a si

mesmo e entender-se no conturbado mundo de hoje. Em função disso, a

força da palavra da ficção, mesmo em textos curtos como o da crônica,

permeia desde o conflito interpessoal até a conjuntura social.

Assim, Moacyr Scliar perscruta a vida humana e a desvela

ao público, apresentando uma importante criação literária que analisa a

realidade vivente e se contrapõe a convencionalismos sociais cristalizados.

Como cronista em busca de situações insólitas, revela profunda

preocupação com os acontecimentos relacionados ao ser humano,

fazendo-o de ffazendo-orma a estimular nfazendo-o leitfazendo-or fazendo-o risfazendo-o, mas um risfazendo-o cfazendo-ontidfazendo-o, reduzidfazendo-o, que

não se manifesta na gargalhada escancarada, e sim no meio-riso, aquele que

enlaça comicidade e amargura.

Em verdade, não há como se definir esse tipo de humor

praticado por Scliar. Pode-se dizer apenas que é um humor sutil que busca

humanizar o sofrimento e os sentimentos, sem distinção, como contributo

para um mundo mais justo e igualitário. O escritor ataca a hipocrisia que

estrutura determinadas relações sociais, abarcando temas relacionados à

(59)

Nas crônicas, tal humor, qualificado pelo próprio escritor

como “humor judaico”, situa-se no intervalo flutuante entre o lúdico e o

crítico, desvelando tudo o que fere o valor e a dignidade do ser humano,

com uma linguagem de sentido essencialmente ambíguo.

Entretanto, nem todo humor feito por judeus é considerado

como característicamente judaico, segundo explicam Scliar, Finzi & Toker

na obra Do Éden ao divã: Humor judaico (1991),uma antologia repleta de

pequenos ensaios, historietas, provérbios e anedotas. Eles ressaltam que o

“humor judaico”, como forma de comentário social ou religioso, pode ser

sarcástico, queixoso, resignado, provocando, não uma gargalhada, mas um sorriso melancólico, um aceno de cabeça, um suspiro2. Os autores notam que o riso reflexivo diante da vida, incitado por esse tipo de humor, é uma

reação diferenciada daquela oriunda da maioria das cenas cômicas, porque

não provém do infortúnio das pessoas, mas de uma análise crítica dos fatos.

Na contracapa desse livro, o também cronista gaúcho Luís

Fernando Veríssimo, ao tecer considerações sobre este tipo de humor,

assevera que o humor judeu é, de certa forma, a contrapartida do

misticismo judeu3. O referido escritor explica que o misticismo, arraigado

2

SCLIAR, Moacyr, FINZI, Patrícia & TOKER, Eliaher. Op. cit., p.1.

3

Referências

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