LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES
DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:
LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES
DO FATO AO TEXTO
LITERÁRIO:
As saborosas crônicas de
Moacyr Scliar
Dissertação apresentada para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de concentração: Teoria Literária e Literatura Comparada), do programa de Pós-Graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Assis.
Orientadora: Profa. Dra. Heloisa Costa Milton
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis - UNESP
Guimarães, Lealis Conceição G963d
Do fato ao texto literário: as saborosas crônicas de Moacyr Scliar. Lealis Conceição Guimarães. Assis, 1999.
178p.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Scliar, Moacyr, 1937- 2. Crônicas brasileiras 3. Humorismo brasileiro 4. Paródia.
LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES
DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:
As saborosas crônicas de Moacyr Scliar
COMISSÃO JULGADORA
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
Presidente e Orientador: Profª. Drª. Heloisa Costa Milton (UNESP) 2º Examinador: Profª. Drª. Adelaide Caramuru Cezar (UEL)
3º Examinador: Profª. Drª. Raul Henriques Maimone (UNESP)
DADOS CURRICULARES LEALIS CONCEIÇÃO GUIMARÃES
NASCIMENTO 20. 11. 1946 - JOAQUIM TÁVORA/PR FILIAÇÃO Enéas Costa Guimarães
Lina Conceição Guimarães
1965/1968 Curso de Graduação em Letras
Universidade Federal do Paraná - Curitiba/PR
1967/1992 Professora concursada da rede estadual de ensino (1º e 2º graus) – Curitiba e Londrina/PR
1993/1994 Coordenadora Geral de 2º grau e Curso pré-vestibular Curso e Colégio Metropolitano de Londrina /PR
1995/1999 Docente no Centro de Estudos Superiores de Londrina – CESULON 1999 Docente na Universidade Norte do Paraná - UNOPAR
1995/1998 Participante da Comissão de Elaboração, Aplicação e Correção de Provas do Concurso Vestibular - CESULON
1996/1999 Publicações: Noções da Semiótica Peirceana, Concepções de Crítica Literária em Northrop Frye, T. S. Eliot e Roland Barthes; Estudo Intertextual: Drummond X Drummond; A Crônica e o Olhar Crítico do Século XX; Machado de Assis: A Identidade Nacional. (Revista Terra e Cultura – CESULON)
1996-1999 Apresentação de trabalhos em congressos: A crônica no Brasil do século XIX (X CELLIP – Londrina); Moacyr Scliar: algumas leituras (VI S.E.L. – Assis); Rafael Mendes: perplexo na sua estranha nação (XI LELLIP – Cascavel); Drummond no palco da vida (VII S.E.L. – Assis); As sobras da morte (V EPLLE – Assis); O poeta-viajante-observador (XII CELLIP – Foz do Iguaçu); Oficina de leitura: Cotidiano – um olhar poético (XII CELLIP – Foz do Iguaçu); Do fato ao texto literário: a subversão de valores estéticos femininos (6º Congresso da AIL – Rio de Janeiro).
Para
Euphrásia e Manoel, Lina e Enéas,
Marcelo, Renata, Romano,
AGRADECIMENTOS:
Ao escritor e “co-autor” Moacyr Scliar;
À Heloisa Costa Milton, orientadora deste trabalho ;
Aos professores participantes da banca do Exame de Qualificação, Léa
Mara Valezi Staut e Raul Henriques Maimone, da UNESP de Assis;
Aos outros competentes professores dos Departamentos de Letras Modernas e de Literatura da UNESP de Assis;
Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação, da Biblioteca e do Departamento de Letras Modernas da UNESP;
Ao Centro de Estudos Superiores de Londrina (CESULON);
Ao Instituto Estadual do Livro, de Porto Alegre;
Aos meus irmãos Enéas Filho e Sônia Maria e aos outros familiares e amigos: Paulo Henrique, Judith, João José, Daniel, Mariam, Botelho,
Mariza, Fernanda, Ivone, D. Ercina (in memoriam), Pedro, Godoy, Maria Cristina, Bella, Regina Maria;
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 7
1 A CRÔNICA: O gênero e sua história no Brasil ... 16
1. 1 O gênero ... 17
1. 2 A crônica no Brasil ... 25
2 O HUMOR COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ... 38
3 DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO: As saborosas crônicas de Moacyr Scliar... 52
3. 1 SOBRE A CRIANÇA... 62
3. 1. 1 Latindo pela vida ... 63
3. 1. 2 A escola das ruas ... 76
3. 2 SOBRE A MULHER... 88
3. 2. 1 Patroas do mundo inteiro, uni-vos ... 89
3. 2. 2 Feiúra não é desgraça. Beleza é. ...103
3. 3 SOBRE O POVO BRASILEIRO...116
3. 3. 1 Consultando no posto de saúde fantasma ... 117
3. 3. 2 Aluga-se ... 132
3. 4. 1 A pausa que refresca ... 145
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 159
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 164
Anexos: Anexo A - ENTREVISTA COM MOACYR SCLIAR ...170
Anexo B – OBRAS DE MOACYR SCLIAR... 173
Resumo...….. 177
INTRODUÇÃO
Escrever é, antes de tudo, contar história. É uma relação que se faz via literatura.
O interesse desta pesquisa surgiu da leitura das crônicas do
escritor gaúcho Moacyr Scliar (1937- )∗, publicadas às quintas-feiras, na
página 2 do caderno "Cotidiano", do jornal Folha de São Paulo.
Foram coligidas as crônicas e garimpadas as reportagens
jornalísticas que deram origem a elas durante o período de 16 de março de
1995 a 28 de agosto de 1997, intervalo de tempo em que a seção em que
tais crônicas eram divulgadas ainda intitulava-se “Boletim de Ocorrência”,
denominação que remete à idéia de assunto policial. No entanto, o que
Scliar apresenta é a recriação do fato noticiado no terreno ficcional.
Ainda com relação à seção, a partir de 4 de setembro de
1997, embora escrita por Scliar, teve o nome alterado para "Cotidiano
Imaginário", título que alia a origem do texto e seu caráter literário, e, de 11
de novembro em diante, ela passou a ser publicada às segundas-feiras,
como se mantém até hoje.
Das crônicas coletadas, extraídas de notícias do cotidiano
jornalístico, nacionais ou internacionais, foram selecionadas sete, como
material expressivo para o presente estudo.
∗
Tivemos um primeiro contato pessoal com o autor ao participarmos do Bate-Papo com o
escritor, no projeto No calor da obra: encontros com a produção cultural contemporânea e na Feira do Livro de Curitiba, ambos os eventos promovidos pela Universidade Federal do Paraná,
A crônica, essa arte literária resultante de cuidadosa
observação por parte do escritor, tanto se refere ao tecido social, quanto
dele emerge, estabelecendo-se, assim, uma relação de reciprocidade no
que diz respeito à configuração de sua linguagem como manifestação de
um determinado contexto ou época. Evidentemente, o importante é o
tratamento estilístico do assunto escolhido, uma vez que o fato focalizado
é apenas pretexto para as divagações artísticas do cronista.
Neste trabalho, procede-se a uma análise comparativa
visando a estabelecer determinadas características da crônica oriunda da
reportagem jornalística, seus recursos e efeitos estéticos, na medida em
que, como já foi ressaltado, a matéria jornalística interessa apenas como
objeto para uma apreciação ficcional dos acontecimentos com
mordacidade crítica.
Em vista disso, procura-se mostrar como o autor trabalha
literariamente os fatos veiculados no periódico, fazendo-se um confronto
entre a linguagem denotativa jornalística e a linguagem conotativa literária
da crônica, bem como entre esta e outras referências textuais presentes no
corpus literário, como manifesto político, anúncio publicitário, Bíblia
Sagrada, literatura infantil, juvenil e outras. É relevante, portanto, analisar
literariamente, isto é, verificar de que forma o autor os transforma
esteticamente.
Apresentando uma visão repleta de humor e ironia, típica
de sua condição judaica, como faz questão de ressaltar, esse escritor
gaúcho, nascido em 1937, em Porto Alegre, autor de vários livros
abrangendo contos, romances, ficção juvenil, crônicas e ensaios, começou a
escrever ainda criança. Já em 1951, ganhou o primeiro prêmio por redigir o
melhor conto no Jornal Mural da escola em que estudava, tendo início, a
partir daí, a produção literária scliariana. Premiado inúmeras vezes, com
obras traduzidas em várias línguas, Scliar concilia a literatura com a
profissão de médico sanitarista dedicado à saúde pública. Atualmente, ele
escreve crônicas semanais nos jornais Zero Hora, de Porto Alegre, e Folha
de São Paulo, de São Paulo.
Seus trabalhos literários abordam assuntos da vida política
e social do país e do mundo e, na maioria das vezes, têm fortes marcas do
judaísmo, cuja simbologia manifesta-se especialmente através de desejos ou
sonhos de seus personagens , os quais escapam de determinados parâmetros
sociais para integrar a esfera do absurdo.
Uma grande conhecedora da obra desse escritor, Bella
Jozef, afirma que Scliar,
presença do sobrenatural como forças misteriosas que condicionam a natureza e a vida do homem. Tudo transcorre no espaço literário, um espaço de fantasmas1.
Explica-se assim como, ao apresentar os grandes temas e as
angústias do tempo atual, o escritor transporta o que considera realidade
perturbadora para o espaço literário, valendo-se de forças sobrenaturais,
quase sempre fundamentadas nos mitos e crenças da tradição judaica, como
elementos extraídos do folclore e do imaginário do povo judeu.
Enfatiza-se a herança judaica de Scliar porque, como ele
mesmo declara na entrevista anexada ao final deste trabalho, essa não é só
uma questão cultural, é um estado de espírito permanente ao qual deve,
principalmente, a sensibilidade da visão crítica do mundo para detectar a
intolerância e a opressão que cercam a vida humana. Tal característica faz
com que ele esteja sempre dissecando e analisando tudo e todos à sua
volta, originando-se da observação contínua o seu impulso criador.
No primeiro capítulo deste trabalho, tecem-se algumas
considerações sobre o gênero crônica, mais precisamente, um quadro da
crônica na imprensa como retrato do universo social ou como uma análise
de mundo. Apresenta-se a evolução histórica da mesma no Brasil, desde o
século XIX, quando aqui se iniciou uma relação muito íntima entre
literatura e jornalismo, que persiste até os dias de hoje. Destaca-se, ainda,
1
que a crônica, como alimento intelectual do leitor, é uma espécie de pão do
espírito, muito bem temperado com boa dose de humor, uma vez que a
ironia está sempre presente, como resultado de procedimentos estruturais
paródicos.
A crônica, enquanto gênero, sempre provoca a reflexão do
leitor sobre determinado aspecto do cotidiano e, como tal, está
comprometida com a análise da realidade contemporânea, mas,
desvinculada da linguagem objetiva do jornal, caracteriza-se pelo estilo
literário mesclado com humor. Em virtude disso, no segundo capítulo
apresentam-se certos aspectos do humor, como recurso narrativo, a partir de
estudos de alguns teóricos sobre o tema e em função do objeto de análise
deste trabalho.
Em Scliar, o emprego do humor como experiência estética
revela-se característica primordial. É interessante notar que a notícia
selecionada pelo cronista como pretexto para a criação literária parece
inacabada, visto que, além de permitir diversas possibilidades
interpretativas, incita-o ao campo da imaginação. Cria-se uma situação em
que o escritor não só se alimenta do mundo real, como também interfere
nele, com seu tom irônico que descobre novos significados, os quais
No terceiro capítulo deste estudo, são analisadas as
crônicas que foram publicadas na Folha de São Paulo, como se explicou
anteriormente, e que versam sobre problemas sociais em evidência
atualmente no Brasil e no mundo, como a decadência da classe média, a
subversão de valores estéticos e o desrespeito a direitos indispensáveis à
sobrevivência humana, como alimentação, educação, saúde e moradia, e,
ainda, a tradição judaica.
Na seleção das sete crônicas, destacam-se as personagens
que traduzem melhor determinados tópicos e questões sociais, já
explicitados. Elas são apresentadas em campos temáticos, acompanhadas
das respectivas notícias, na seguinte ordem:
1. SOBRE A CRIANÇA: Latindo pela vida (crônica),
Verba de ração acabaria com fome infantil (notícia) e A escola das ruas
(crônica), Pai é acusado de tirar 4 filhos da escola para pedirem esmola
(notícia);
2. SOBRE A MULHER: Patroas do mundo inteiro,
uni-vos (crônica), Patroa é acusada de roubar empregada (notícia) e Feiúra
não é degraça. Beleza é. (crônica), 'Maria Basculho', 26, é eleita a mulher
3. SOBRE O POVO BRASILEIRO: Consultando no
posto de saúde fantasma (crônica), Pará investiga postos de saúde
fantasmas (notícia) e Aluga-se (crônica), Família mora dentro de ponte em São Paulo (notícia);
4. SOBRE O POVO JUDEU: A pausa que refresca
(crônica), Coca-Cola kosher chega ao Brasil (notícia).
Para efeito de análise da crônica como escritura paródica, o
texto ficcional é examinado e confrontado com a notícia que lhe dá origem
e com outros textos aos quais remete, para mostrar como Scliar faz a sua
recriação literária.
Por fim, analisadas as crônicas, conclui-se este estudo
enfatizando-se que o olhar irreverente do escritor sobre o cotidiano produz
uma relação declarada, que pressupõe “submissão” inicial do texto literário
1 A CRÔNICA:
O gênero e sua história no Brasil
A crônica é um continente muito apropriado para que nele caiba o ensaio, uma pequena visão analítica de um determinado momento, fato ou pessoa.
1. 1 O gênero
A crônica, palavra originária do grego chronikós, relativo
ao tempo (chrónos), e recebida pelo latim como chronica(m), segundo
Massaud Moisés1, significa narração de fatos registrados em ordem
cronológica e, por isso, primitivamente possuía caráter de gênero histórico,
sendo considerada a precursora da historiografia moderna.
Não obstante, observa-se que, na Idade Média,
freqüentemente a história se mistura à ficção em crônicas que relatam os
grandes feitos de heróis mitológicos. Ainda sobre os vínculos que ligam
história e ficção, é interessante destacar o seguinte comentário de Heloísa
Costa Milton:
O fato é que a ficção literária e a história guardam entre si estreita solidariedade, como instâncias que são de representação de experiência humana e pela natureza basicamente narrativa de seus respectivos discursos, que encontram na categoria do tempo o grande eixo estruturador.2
Em verdade, o que se percebe é que, mesmo que se
distingam radicalmente pela aproximação ou distanciamento do real, a
veracidade da história e a verossimilhança da ficção mantêm estreita
1
A crônica. In: ---. A criação literária: prosa. 1982, p.245.
2
relação, não só por evidenciarem a experiência humana e estarem atreladas
ao fator tempo, como pela estrutura fundamentalmente narrativa de seus
discursos.
Diante disso, como narrativa que mescla veracidade e
verossimilhança, a crônica não pode se desvincular do seu aspecto histórico
e também social, uma vez que, sendo literatura, ela faz parte da cultura, da
história da vida de um povo. O cronista é o contador dessa história que,
independentemente da época, é sempre o reflexo da vida do homem em
sociedade.
Vale lembrar aqui a Carta de Pero Vaz de Caminha, que
relata o descobrimento do Brasil, visto que, apesar das discussões quanto à
sua literariedade, pode ser considerada a primeira crônica brasileira, tanto
no aspecto histórico de relato de fatos contemporâneos ao narrador, como
no sentido de uma construção discursiva que se aproxima da invenção.
Se o descobrimento do Brasil registra-se na forma de
crônica, o gênero, sem dúvida, perfaz uma significativa tradição, cujo
incremento dá-se a partir do século XIX. Em meados deste século, durante
o Romantismo, iniciou-se, especialmente no Brasil, uma relação muito
íntima entre literatura e jornalismo, o que propiciou a fixação da crônica
literária que, ainda fundamentada no tempo, dava destaque ao cotidiano
Assim, a crônica literária, quase sempre inserida em jornal
ou revista, passou a apresentar aos leitores uma visão analítica dos
acontecimentos do dia ou da semana, numa linguagem conotativa e em
estilo influenciado pela oralidade da cultura popular. Essa narrativa é, de
certo modo, uma forma artesanal de comunicação que, ao fazer a
exploração de algum fato cotidiano, apresenta poucas personagens e estas
se movem num espaço reduzido, que diz respeito, em última instância, à
própria limitação do espaço jornalístico.
É certo, porém, que uma parte da crítica considera de forma
preconceituosa o teor poético da crônica, devido a seu caráter factual, e a
classifica, injustamente, como gênero menor, o que demonstra certo
desprezo às qualidades, já citadas, de um exercício literário feito, na
maioria das vezes, por grandes escritores. Outro motivo, pelo qual se refuta
tal julgamento, é por se reconhecer a crônica como objeto de arte dotado de
uma dimensão valorativa diferente, uma vez que, ao fixar-se no cotidiano,
ela está atrelada a hábitos ou relações específicas do mundo social, cuja
tendência é não só sofrer mudanças ou desaparecer, como também marcar
historicamente uma época.
A propósito, a pesquisadora argentina Susana Rotker3
censura os críticos que duvidam do valor literário da crônica por ser esta um
3
texto que se baseia na realidade concreta de um fato. Rotker ressalta que a
arte literária não se fundamenta unicamente no emocional ou no imaginário
para ter sentido em si mesma, já que a condição de texto autônomo, na
perspectiva estético-literária, depende de sua expressão total e não apenas
de um aspecto ou outro. Assim, somente o critério de relação factual não
deve ser fator determinante para o reconhecimento da literariedade da
crônica.
No entanto, importa destacar que a tão criticada
aproximação com o real funciona como chamariz para a leitura do texto,
pois favorece a união eficaz entre a objetividade do jornalismo e a
subjetividade da criação literária, que se entrelaçam.
Ainda intimamente ligada a um tempo filtrado pelo
cronista, a crônica evoluiu, de maneira peculiar, como um gênero
propriamente literário, e alcançou um patamar de importância singular na
literatura contemporânea, especialmente na brasileira, como se pode
comprovar através da maioria da crítica especializada no assunto.
Desse modo, a crônica, considerada um gênero híbrido,
situa-se entre a simples reportagem jornalística e a literatura, e se
movimenta entre ser no e para o jornal4 , de acordo com Massaud Moisés,
tendo em vista que é escrita especialmente para ser lida em jornal ou
4
revista, aspecto que não lhe subtrai, necessariamente, o caráter de obra
literária. Ela é também um convite à reflexão sobre o encontro entre
literatura e jornalismo, propondo-se como um novo gênero literário, signo
de uma época em que comunicação, informação, criação e arte encontram
seu espaço comum.
Além do mais, Eduardo Portela define a crônica como um
posgênero literário5, que, por ser classificada como literatura de massa,
possui a flexibilidade de uma narrativa de estrutura aberta. Isso faz do
narrador um retratista de seu tempo, que se utiliza da pluralidade de
significados do cotidiano moderno, em que o homem vive e presencia
mudanças aceleradas, tanto no aspecto material e científico como no
espiritual e moral.
Em virtude disso, a crônica leva o leitor a perceber o
dia-a-dia e reforça a relação criada entre o escritor, o veículo de massa e o leitor,
sendo compreendida como "gênero vivo", na medida em que o seu
dinamismo provoca a interação, através do jornal, entre o cronista e o leitor.
Por outro lado, Afrânio Coutinho6 , ao se referir à qualidade
literária necessária para esse tipo de narrativa libertar-se de sua condição
circunstancial de texto publicado na imprensa periódica e ser considerado
5
Teoria da comunicação literária, 1973, p.154.
6
gênero literário, destaca a importância do estilo e da individualidade do
autor para adaptar sua percepção do mundo à veracidade dos fatos
cotidianos. Atrás do cronista está sempre o homem de letras, que trabalha
com as palavras enquanto seu fazer literário vai desvelando cenas inusitadas
que, de outra maneira, passariam talvez despercebidas.
Como bem define Marília R. Cardoso, o cronista é o
interpretante-crítico - o semiólogo de hoje em dia7 , visto que ele dá sentido
à pluralidade de imagens que pululam no cotidiano e expressa, para o
leitor, uma interpretação possível dos fatos da atualidade.
Já Davi Arrigucci Jr. analisa a crônica como um gênero em
permanente relação com o tempo, ou seja, com a memória, de onde tira sua
matéria, que é resultado de lembrar e escrever8. Além disso, o referido
crítico cita o fato de, no Brasil, ela constituir-se em discurso literário pela
elaboração estética da linguagem, do qual sobressai uma fina ironia.
Entretanto, ninguém ainda conseguiu determinar os limites
do território oscilante da crônica, na medida em que, tendo como seus
constituintes os fatos cotidianos e o estilo, conforme já foi ressaltado, ela
transcende a notícia fugaz através do enriquecimento poético, elemento
7
Moda da crônica: frívola e cruel. In: CANDIDO, Antonio [et al.]. A crônica: o gênero, sua
fixação e outras transformações no Brasil,1992, p.139.
8
Fragmentos sobre a crônica. In: ___. Enigma e comentário: ensaio sobre literatura e
responsável pela sua permanência como arte literária. Em vista disso, as leis
internas da crônica são diferenciadas pela sua conjuntura híbrida, como foi
salientado, uma vez que sua possibilidade poética reside no trabalho de
invenção da linguagem na esfera do cotidiano, em que o cronista deve
apreender constantemente os acontecimentos ao seu redor.
Quanto ao seu caráter efêmero, deve-se à matéria advinda
do cotidiano mutante e ao fato de estar inserida em jornal ou revista,
aspectos reforçados pela sua grande força de comunicação. Embora seja um
texto aparentemente simples, a sua grande dificuldade está no fato de
articular considerações precisas e profundas de maneira concisa e
aparentemente simplificada, para a maior compreensão do leitor, instância
receptiva de fundamental importância para o seu estatuto como gênero
literário.
A propósito, Luiz Costa Lima9 , ao afirmar que a definição
de um gênero se faz pelo que se analisa no processo de leitura, destaca a
importância de se considerar a expectativa do leitor, já que essa interação
explica porque todo gênero literário é uma forma de comunicação entre
escritor e leitor.
Assim, ao se constatar que a crônica não pode ser
considerada um gênero menor, reafirma-se a sua fixação como gênero
9
merecedor de destaque especial na moderna literatura, tendo-se em vista a
sua reconhecida literariedade e a perspectiva do leitor, que é seduzido pela
leitura relativamente fluida de um texto que o induz à reflexão, sugere
significados e desvela sentidos implícitos nos fatos do tecido social, através
1. 2 A Crônica no Brasil
Vários são os críticos brasileiros que analisam a crônica no
Brasil, interessados em acompanhar a evolução de um gênero em ascensão
valorativa na literatura contemporânea.
Segundo Afrânio Coutinho, a crônica se firmou em
território brasileiro com características de ensaio, gênero iniciado por
Montaigne, através de sua obra Essais (1580), assimilado pelos ingleses
(familiar ou personal essay), que o definem como uma dissertação breve,
concisa, livre, em linguagem familiar10, em oposição ao sentido da palavra no Brasil, onde ensaio é sinônimo de estudo crítico, histórico, político ou
filosófico, comumente publicado em livros. Coutinho comenta, ainda, que a
grande semelhança entre o ensaio de Montaigne, o ensaio inglês e a crônica
brasileira está, principalmente, na sua estreita relação com a elocução oral.
Já Antonio Candido afirma que, no Brasil, antes de ser
crônica propriamente dita, essa modalidade textual foi “folhetim”, ou seja,
um artigo de rodapé sobre as questões do dia, políticas, sociais, artísticas, literárias11. Conforme declara o crítico, o folhetim foi se transformando
10
Ensaio e Crônica. In: ___. A literatura no Brasil,1968, p.107.
11
A vida ao rés do chão. In:___. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no
gradualmente, deixando a função de informar ou comentar para narrar fatos
com toques de humor, até adquirir as características de crônica
propriamente dita, veiculada através de meio de comunicação popular
(jornal e revista).
Mesmo assim, durante algum tempo, a seção em que se
publicavam essa e qualquer outra forma literária denominava-se
genericamente folhetim e ocupava, no início, o espaço do rodapé do jornal.
Nesse espaço, abrigou-se a crônica, que tratava de assuntos variados do
cenário brasileiro, com uma linguagem repleta de traços de oralidade
trabalhados com a criatividade literária. A crônica foi, reconhecidamente,
uma das primeiras tentativas de se fazer literatura nacional.
A pesquisadora Marlyse Meyer declara que, na nossa
balbuciante cultura12, o território livre do folhetim, onde a crônica se instalou, teve um importante papel, na medida em que ajudou a configurar
uma cultura mais brasileira, em seu gradativo processo de desprendimento
do modelo francês.
Para tanto, a crônica apresentava periodicamente, em jornal
ou revista, os fatos da semana, de cada quinze dias ou do mês, e seus
autores buscavam as preferências da sociedade e, em especial, do mundo
feminino. O escritor preocupava-se em não cansar o leitor, para manter vivo
12
o interesse deste pela matéria, a qual, algumas vezes, serviu de base para a
escritura de romances. Mas o fato é que a crônica brasileira, além de servir
para o entretenimento dos leitores, caracterizou-se pelo romantismo, de
acordo com o estilo literário em evidência na época do advento do jornal no
país.
Constata-se, então, que a crônica, enquanto narrativa
ficcional ligada à imprensa periódica, como a temos hoje, apareceu no
Brasil em meados do século XIX. A sua intensa e rápida penetração no país
criou um grande número de leitores, o que tornou imprescindível a
publicação desse tipo de texto nos jornais e revistas, até os dias atuais.
Como narrativa escrita que resulta de uma cultura auditiva
como a nossa, como narrativa em que os enunciados visam a persuadir
sedutoramente o leitor, a crônica encanta por seu tom acariciante de
conversa à beira da rede ou ao pé do fogo, de conversa despreocupada, de
acordo com Costa Lima13. O crítico enfatiza que o sistema intelectual
brasileiro caracteriza-se por seu aspecto preponderantemente auditivo,
salientando que está ligado a uma cultura de persuasão, baseada na
oralidade, em que as palavras são usadas para seduzir o receptor. Assevera
também que a crônica é o gênero mais representativo dessa escritura
brasileira oriunda de uma tradição oral.
13
Esse tom peculiar da cultura brasileira, responsável pelo
sucesso da crônica, que Massaud Moisés chama de caráter sui generis14 , é
a nova forma adquirida pelo gênero, quando se aclimatou ao Brasil do
século XIX, amalgamado ao jornalismo.
O primeiro a escrever crônica brasileira propriamente dita
foi Francisco Otaviano, em folhetim do Jornal do Commercio do Rio de
Janeiro, publicado em 2 de dezembro de 1852. Ele escreveu também no
Correio Mercantil do Rio de Janeiro até 1854. A partir de então, chamado a
substitui-lo, o jovem José de Alencar, aos vinte anos, tornou-se folhetinista
do Correio Mercantil, de 1854 a 1855.
Com o estilo romântico do escritor cearense, a crônica,
inicialmente carioca, naturalizou-se brasileira e foi perdendo
gradativamente a carga informativa para adquirir uma linguagem mesclada
de poesia e humor. Importa ressaltar que, segundo a maioria dos críticos, foi
José de Alencar quem elevou a crônica a uma categoria intelectual, não
obstante fosse escrita numa seção do Correio Mercantil denominada
“Páginas Menores”. A propósito, Ao correr da pena é o título do livro,
editado em 1874, em que José de Alencar reuniu suas crônicas e nas quais
demonstrava a mesma preocupação estilística com que escrevia seus
romances.
14
Vale lembrar, ainda, que, no suplemento “A Pacotilha”,
desse mesmo jornal, Manuel Antônio de Almeida também escreveu, de
1852 a 1853, sob o pseudônimo de “Um brasileiro”, os fascículos de seu
célebre romance Memórias de um sargento de milícias, publicado em dois
volumes, em 1854 e 1855.
É certo que, sedimentada por Alencar, essa modalidade
literária atingiu o apogeu, entre nós, ainda no século XIX, com Machado de
Assis, que iniciou suas atividades nesse gênero em 1859, na revista O
Espelho, também no Rio de Janeiro. Ele escreveu numerosas crônicas, sob
diferentes pseudônimos, retratando os acontecimentos do mundo e da
sociedade carioca, no período de 1859 a 1897. Esses textos foram reunidos
cronologicamente e publicados com os títulos: Miscelânea (crônicas de
1859), Histórias de Quinze Dias (de 1876 a 1877), Notas Semanais (de
1878), Balas de Estalo (de 1873 a 1886) e A Semana (de 1892 a 1897).
O final do século XIX e início do XX teve também outros
expressivos cultivadores do gênero, tais como França Júnior, Olavo Bilac e
João do Rio, cujas crônicas já antecipavam características, que se mantêm
até hoje, como o humor amalgamado ao estilo poético e à linguagem mais
Davi Arrigucci Jr.15 observa a visível insegurança da
maioria dos jovens cronistas do século XIX, motivada não só pelo impacto
da novidade literária constituída pelo jornal, veículo que era um dos
instrumentos da modernização no país, como também porque tais escritores
utilizavam o labor artístico da crônica como aprendizado para se
entregarem, depois, a gêneros mais extensos como, por exemplo, o
romance. Para o crítico, foi a geração de cronistas de 1940, composta por
escritores como Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e, especialmente
Rubem Braga, a responsável pela valorização do gênero no Brasil. Por
outro lado, poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade
também deram importante contribuição ao analisarem os fatos do dia-a-dia
através da crônica.
Já o ensaísta Eduardo Portela lamenta não ter sido
satisfatoriamente admitido o mérito literário da crônica no Brasil e enfatiza
que ela é um exemplo específico de gênero predominantemente brasileiro,
desde o século XIX, com Machado de Assis, até os dias de hoje, com outros
grandes escritores. Argumenta, também, que a crônica, injustamente
marginalizada como literatura, é uma obra de arte com sua própria verdade,
é um signo-em-si16 . Diante disso, pondera que ela tem importância histórica
15
Fragmentos sobre a crônica. Op. cit., 1987, p.57.
16
peculiar na literatura brasileira contemporânea, onde perfaz uma evolução
valorativa ascendente, visto que, gradativamente, foi sendo reconhecida
como respeitável gênero literário, trabalhado por grandes escritores.
Tendo em vista que a história da crônica na imprensa
brasileira teve início no século XIX, como foi mencionado, é interessante,
neste ponto, apresentar o olhar de dois grandes cronistas daquele tempo,
José de Alencar e Machado de Assis, sobre o seu próprio fazer literário.
Dessa maneira, através da metalinguagem, procura-se entender o caminho
percorrido pela crônica, na medida em que alguns de seus aspectos básicos
se mantêm até hoje, como a narrativa voltada para o cotidiano e mesclada
com um comentário emotivo ou uma reflexão irreverente, que revela a
intimidade do autor com o leitor, e outros se modificaram no decorrer do
tempo, por necessidade de adaptação a mudanças políticas, sociais,
ideológicas e artísticas.
De qualquer forma, tanto José de Alencar quanto Machado
de Assis aludiram à possibilidade de perpetuação da crônica, apesar do
caráter aparentemente passageiro do gênero. José de Alencar , em 17 de
setembro de 1854, afirma que a crônica futura desta heróica cidade
consignará nas suas páginas que, pelo começo da primavera do ano de 1854, tivemos um divertimento de graça17. Assim, com referência à
17
“crônica futura”, ressalvando-se os excessos, Alencar parece prever a
propagação da crônica.
Por outro lado, Machado de Assis faz a seguinte
consideração, cujo teor também é a perspectiva de futuro: Que inveja tenho
ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna o sol do século XX!18
Além de conjeturar sobre o futuro, Machado salientou a relação da crônica
com textos bíblicos, especialmente os do Antigo Testamento, como escreve
em 8 de outubro de 1893:
A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dele, dia após dia, até o sétimo em que o Senhor descansou.19
Como se percebe, o referido escritor lança a idéia
bem-humorada de que o Antigo Testamento é também uma crônica, dado que é
narrativa do cotidiano. Além disso, conjetura sobre a origem do gênero, ao
fazer a seguinte afirmação:
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia.20
18
A Semana (1895). In: ___. Obra Completa. v.3, 1985, p.645.
19
Seja como for, talvez as vizinhas tivessem começado com
Bons Dias e terminado com Boas Noites, como Machado de Assis
costumava escrever em seus textos. Ele tinha consciência da necessidade de
se darem características mais brasileiras (certo instinto de nacionalidade)
ao texto literário, para a crônica adequar-se ao espírito nacionalista da
época, embora afirmasse ser difícil escrever folhetim e ficar brasileiro21,
numa nítida referência ao fato de ser um gênero importado.
É interessante salientar que os dois escritores citados
caracterizam o cronista através da metáfora do colibri. José de Alencar
descreve o cronista como
uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague e a sugar, como o mel das flores, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho! 22 .
Quase da mesma forma, Machado de Assis assevera que o
folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal23. Em vista disso, o folhetinista, como o colibri, agita-se por todos os lados para
conseguir captar melhor o humor dos fatos cotidianos da sociedade em que
vive. Note-se aqui que o folhetinista se confunde com o cronista, o que é
20
História de 15 dias (1877). In: ___. Obra Completa. 1985, v.3, p.370.
21
O folhetinista. In: ___. Obra Completa. 1985, v.3, p.960.
22
Ao correr da pena (1854). Op.cit. ,1960, v.4, p.648.
23
comum, porque a seção do jornal ou revista em que se publicam as
crônicas, como se viu, denomina-se “Folhetim”.
Nesse espaço, o trato de assuntos leves,
descompromissados, destinados ao entretenimento, agrada principalmente
ao público feminino da época. Como diz Marlyse Meyer24, alguns dos
principais aspectos constitutivos da crônica à moda brasileira já estão
presentes nessa seção do periódico, desde a sua origem. Depois, no seu
decurso, a crônica amplia sua gama de leitores, ao incorporar o
questionamento social, às vezes até de forma irreverente.
Assim, no século XX, a crônica continua ligada ao tempo,
reconstruindo a memória ao desenhar a identidade de uma geração através
da interação locutor-texto/contexto-receptor. Ela adquire, então, um caráter
mais intelectual, apresentando um humor reflexivo, de sentido dúbio, que,
aliado ao teor poético, confere-lhe a consistência que a distingue
atualmente. É necessário reafirmar que a crônica agrada justamente pelo
humor e pela força poética da elaboração de sua linguagem, o que favorece
a sua penetração psicológica e social junto à instância receptiva.
Ela é valorizada, apesar de exibir um caráter supostamente
transitório e estreitamente ligado ao jornal ou à revista, por ser um labor
artístico literário com aparência de “conversa fiada” do simples
24
chão25, como diz Antonio Candido, mesmo quando escrita em forma de monólogo.
O crítico afirma, ainda, que a consolidação do gênero no
Brasil se deu por volta de 1930, com o aumento do número de bons
escritores-jornalistas, que transformaram assuntos sérios em matéria textual
aparentemente despretensiosa, mas eivada de caráter literário e tom crítico.
Esses escritores fizeram da sua "conversa" com o leitor, através da crônica,
um trabalho literário, em que o cronista faz do contar histórias do cotidiano
uma arte narrativa para exprimir os valores da época. Assim, a crônica,
sendo literatura, redescobre a informação e retira desta a sua função
meramente referencial, realizando-se esteticamente através da preocupação
do cronista com a palavra elaborada.
Do século XIX para cá há um longo percurso, em que a
crônica, ao mesclar narrativa, poesia e humor, atingiu um alto grau de
amadurecimento, com seu quantum satis (sua dose certa) de literatura, do
qual resulta o encontro mais puro da crônica consigo mesma, como afirma
Antonio Candido26 .
Por outro lado, o cronista contemporâneo Artur da Távola
ressalta que a crônica pode traduzir, de maneira precisa, o eterno existente
25
CANDIDO, Antonio [et al.]. A vida ao rés do chão. In: ___. A crônica: o gênero, sua fixação e
suas transformações no Brasil,, 1992, p.14.
26
em cada efêmero27. Desse modo, a moderna crônica brasileira, sendo gênero literário típico do jornalismo, caracteriza-se pela concisão narrativa
e, enquanto arte, sua ressonância ultrapassa os limites dos dramas diários da
sociedade, estampados nos meios de comunicação coletiva.
Vale ainda ressaltar que, segundo Carlos Drummond de
Andrade, o artista ou o cronista é um espião da vida e quem não for bom
espião do seu tempo não deixará lembrança na terra28 ou seja, o bom
escritor é o que consegue não só ver mas examinar criticamente o mundo
em que vive e, explorando a ambigüidade, desperta a fantasia e provoca a
vadiação do espírito.
Em resumo, a crônica passa a ser literatura quando o
cotidiano se transforma em arguta invenção, no âmbito da linguagem, da
realidade concreta em que se apóia, compondo um vivo quadro de usos,
situações e comentários da sociedade humana. Essa vivacidade está
presente no toque de humor manifestado pelo olhar irônico com que o
cronista analisa os fatos, dando-lhes um novo sabor.
Diante disso, com certeza, a crônica é literatura, e boa
literatura, como a que fazem Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz, Carlos
27
A crônica da crônica. O Globo.Rio de Janeiro, 3 set. 1979, p.24.
28
Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto (Stanislaw
Ponte Preta), Rubem Braga, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Nélson
Rodrigues, Artur da Távola, Luís Fernando Veríssimo e Moacyr Scliar,
2 O HUMOR COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
E o indivíduo tem no humor uma forma de escapar ao sentimento de insegurança. O riso permite ao homem esquecer-se e apaziguar-se.
A riqueza conceitual da palavra “humor” (do latim humor,
-oris) implica, originalmente, um material de fluidos ou líquidos do corpo
humano, de cujo equilíbrio depende a saúde, para conotar, a partir dele, um
sentido metafórico relacionado a uma condição de equilíbrio mental, a um
modo de ser. Contudo, apesar do conceito científico (fisiológico e
psicológico) do vocábulo humor, ele foi habilmente estudado pelos homens
de letras de todas as épocas, desde a antigüidade clássica.
Assim, embora com abordagens diferentes, os autores
gregos e latinos fizeram conjeturas a respeito do humor sob uma
perspectiva ética, em que analisaram o riso provocado por ele como uma
faculdade humana e, em virtude disso, tentaram determinar condições para
seu emprego adequado.
Os gregos conheciam o conceito de humor e,
conseqüentemente, do riso, com o sentido semelhante ao que se tem hoje.
Aristóteles, por exemplo, apresenta em sua Arte Poética, entre outras
questões, a percepção do ridículo, elemento essencial da comédia, como
causa do riso. Do mesmo modo, a literatura latina, com os escritos de
Cícero e Quintiliano, examina o riso sob o ponto de vista da ética, mas o
considera um recurso da retórica, ao enfocar os modos e os objetivos de seu
O crítico Santiago Vilas1 afirma que o conceito literário de
humor na Europa iniciou-se na Espanha, com Marco Valerio Marcial, que
viveu entre os anos 43 e 104 e escreveu epigramas inspirado no tom festivo
do humor popular da época.
Isso posto, Santiago Vilas cita exemplos de escritores
franceses e ingleses dos séculos XV e XVI, como François Rabelais, com
obras de crítica satírica de costumes como Pantagruel (1532) e Gargantua
(1534), e Montaigne, que, em sua obra Essais (1580), populariza a acepção
de humor como momentânea disposição de ânimo de uma pessoa.
O crítico trata, ainda, de Ben Jonson, considerado pelos
ingleses como o criador de the comedy of humours. Em suas publicações
Every man in his humour (1598) e Every man out of his humour (1599), ele
distingue dois tipos de humor: o inato, que caracteriza uma pessoa e a
diferencia de outra, ou seja, o seu temperamento, e o que é adquirido, talvez
por imitação, “à moda de”, expressando-se ridiculamente na forma de
comportamento, vestuário, fala, tão bem representado pelos personagens de
Molière.
A partir de então, já no século XVII, indiscutivelmente o
humor europeu sofre influência, direta ou indireta, da literatura espanhola
de Cervantes e Quevedo. No entanto, no final desse mesmo século, o inglês
William Temple, autor de Of poetry (1690), depois de detectar elementos
1
humorísticos coincidentes em vários escritores de seu país, torna-se o
primeiro a postular que o humor é característica do povo inglês e o
vocábulo humour, peculiar desse idioma.
Daí em diante, o “humour inglês”, situado numa zona
neutra e indefinida, que não nega nem afirma, converte-se em orgulho
nacional, sendo considerado pelos próprios ingleses como o melhor do
mundo e aceito por todo o resto da Europa. Assim, aplicado ao estilo
anglo-saxão, o humour consiste em se dizer ou se representar, em tom
aparentemente sério, as situações engraçadas, insólitas, ou mesmo funestas,
tendendo, neste último caso, a ser também sarcástico. De qualquer forma,
ressalvados os exageros, não se pode esquecer de que os ingleses foram os
responsáveis pela inclusão da palavra humour no vocabulário da crítica
literária.
No século XVIII, época dos descobrimentos científicos,
estabelece-se a diferença entre o humor, mais alegre e natural, e a
espirituosidade, ou perspicácia (ingenio, em espanhol; wit, em inglês),
considerada categoria superior, porém baseada na amargura. Além do mais,
importa salientar que as deficiências físicas e mentais também serviram de
objeto para escritos sarcásticos. Por outro lado, na segunda metade desse
mesmo século, houve sensível mudança no conceito de humor, visto que
transforma-se a visão satírica das anomalias em atitude de compreensão e
No século XIX, os alemães publicaram tratados sobre o
humor, com destaque para Johan Paul Friedrich Richter, com a obra
Vorschelu der Ästhetik (1804), na qual afirma que o riso instaurado pelo
humor funciona como uma espécie de fuga da realidade, da dor e do
sofrimento.
Importa destacar, ainda, no final do século XIX e início do
XX, os filósofos Henri Bergson (francês), Sigmund Freud (austríaco) e o
literato italiano Luigi Pirandello, dentre os que contribuiram com
importantes ensaios sobre o humor.
Bergson publica Le rire (1899), obra em que analisa o riso,
especialmente aquele provocado pelo elemento cômico. Ele enfatiza que o
riso é provocado quando se instaura o absurdo, que só é cômico por estar
relacionado ao que parece impossível ao homem ou ao seu comportamento.
O absurdo, no caso, é simplesmente um meio muito eficaz de revelar a
comicidade de uma situação. Resulta daí que não é propriamente uma
repentina mudança de atitude que provoca o riso, mas o estranhamento
causado pelo que há de involuntário nessa mudança, já que o cômico é
casual, de acordo com a teoria de Bergson.
Para o autor, o humor decorre, ainda, da insensibilidade
humana, em oposição à emoção, diante dos fatos da vida. Assim o riso, para
momentânea do coração2 e deve dirigir-se à “inteligência pura”, na medida em que muitos dramas podem ser transformados em comédia, se forem
presenciados por um espectador neutro, isto é, indiferente aos
acontecimentos. Em vista disso, é o homem que se apresenta como
espetáculo ao próprio homem.
Outro aspecto salientado pelo filósofo é a dimensão social
do riso, em virtude de, muitas vezes, ele só adquirir sentido porque está
relacionado aos costumes e idéias de uma determinada comunidade ou
época. No caso, o riso é um gesto social empregado para ressaltar ou
reprimir certas pessoas ou acontecimentos que subvertem as normas
convencionadas.
Bergson refere-se também à comicidade das palavras, que
consiste em provocar certo desvio de linguagem com a inserção de um
disparate em um modelo consagrado de frase ou através de um jogo de
palavras, sempre se considerando o contraste com o contexto evidenciado.
Merece ainda destaque a oposição entre ironia e humor,
demonstrada por Bergson. A ironia enuncia o que deveria ser, fingindo-se
acreditar ser precisamente o que é. O humor, pelo contrário, descreve cada vez mais meticulosamente o que é, fingindo-se crer que assim é que as
2
coisas deveriam ser3. Diante disso, a relação contrastante está em que a ironia, de natureza retórica, fundamenta-se no ideal e o humor, mais
científico, baseia-se no real.
Assim, vale ressaltar que o pensamento bergsoniano sobre
o riso se funda na percepção das contradições e o efeito cômico se
manifesta em toda atitude humana que se assemelhe a um gesto mecânico,
automático, isto é, um movimento sem vida. O filósofo comprova isso com
alguns exemplos, como aquele dos soldadinhos de chumbo enfileirados que,
ao caírem uns sobre os outros, provocam o riso na criança.
Por seu turno, Freud dedica-se ao estudo do risível
indiretamente em suas obras e, em especial, nos ensaios Os chistes e as
espécies do cômico (1905) e O humor (1927), abordando o tema de forma
distinta da de Bergson.
Ademais, Freud assinala que o risível é percebido em três
domínios diferentes, ou seja, o chiste, o cômico e o humor, apesar do
caráter liberador comum entre eles. O teórico vincula tais domínios ao
princípio de prazer, já que são modos de obtenção do prazer pela atividade
intelectual. Ele ressalta que o humor se distingue por possuir qualquer coisa
de grandeza e elevação que o chiste e o cômico não têm. Na concepção
freudiana, a característica essencial do humor funciona como uma
3
superação ou defesa do ego diante das provocações advindas da existência,
as quais podem traumatizar o homem.
De qualquer forma, o que se percebe é que a sua teoria
freqüentemente relaciona o humor e o riso com a sexualidade e a
obscenidade, fatores considerados importantes devido a determinados tabus
que a sociedade consegue incutir nas pessoas.
A seguir, sobressai-se Luigi Pirandello, que publica, no
início do século XX, seu ensaio L’umorismo (1920), indispensável para a
compreensão de sua obra e básico para o humorismo e para a literatura em
geral, visto que o citado teórico é considerado um dos mais respeitáveis,
especialmente no que se refere à dramaturgia.
No citado ensaio, Pirandello declara que o humor, embora
de difícil definição, possui várias facetas, segundo as diversidades que
naturalmente se manifestam quanto à língua, à nacionalidade, ao contexto
social e histórico e ao talento e estilo dos escritores. Não obstante, tais
facetas apresentam uma base comum, isto é, são dotadas de uma mesma
essência, que é, em última instância, a que provoca o riso.
Ao comentar que o humor se valoriza com o emprego da
ironia, Pirandello estabelece a distinção entre o modo teórico e o filosófico
de se entender a ironia. Para tanto, ele explica que a ironia como figura de
retórica implica uma contradição fictícia entre o que se diz e o que se
movimento romântico alemão, a ironia é essa força que permite ao escritor
dominar a matéria que trata e reduzi-la a uma paródia, ou uma farsa
declarada.
No caso da ironia retórica, por se fundamentar em
contradição fictícia, apenas deprecia a realidade. Ao contrário, a ironia
romântica com sentido filosófico, embora dela não se possa separar também
o caráter burlesco e mordaz, deve ser entendida como um alerta, pois clama
o leitor, ou ouvinte, a refletir sobre algum assunto.
Diante dessas considerações, Pirandello conclui que o
verdadeiro humor está mais próximo da ironia filosófica, tendo em vista
que ele consiste no sentimento do contrário produzido, em especial, pela
atividade de reflexão sobre as diversas simulações da luta pela vida,
percebidas pela aguda intuição do escritor.
Merece ainda destaque o pensamento de um dos mais
importantes teóricos da literatura contemporânea, o russo Mikhail Bakhtin,
cujos estudos Problemas da poética de Dostoiévski (1929) e A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento (1965) revelam as formas e
expressões do riso, principalmente através do enfoque das tradições e das
fontes do carnaval.
Segundo o autor, o século XVI marca o apogeu da história
do riso com o romance de Rabelais. Tal situação motivou-o a uma
Idade Média e do Renascimento que, apesar da sua heterogeneidade,
refletem um mesmo aspecto cômico do mundo, em que o carnaval ocupa
um lugar de destaque.
A teoria bakhtiniana define o carnaval como uma forma
sincrética de espetáculo de caráter ritual4, em que o povo encarna uma forma especial de vida, ou seja, uma segunda vida em um mundo invertido,
baseada no princípio do riso. Com efeito, a cultura do riso é essencial para a
concepção de carnaval de Bakhtin.
A propósito, ele destaca que esse riso se manifesta devido à
inversão de valores que evidencia a oposição à cultura oficial, ao tom sério,
religioso e autoritário de uma época, já que derruba as barreiras impostas
pela condição social, idade, cultura e qualquer tipo de relação entre
superiores e subordinados. Diante disso, as hierarquias são ridicularizadas e
deixam de existir os estamentos sociais, na medida em que não há mais
diferenças, e estabelece-se a igualdade entre os mais diversos seres, que se
misturam pelo riso universal ambíguo.
Dessa forma, todos os que participam deste espírito de
transgressão das leis tendem a valorizar as manifestações das chamadas
classes marginais da sociedade, em detrimento dos poderes próprios das
autoridades. Tal comportamento se justifica, já que, como foi explicado,
4
uma das funções mais importantes do riso, caracterizado basicamente como
fenômeno de comunicação humana que resulta de uma oposição de
sentimentos ou idéias em um determinado sistema sócio-cultural, é
revelar-se como uma manifestação de conflitos sociais. Em vista disso, percebe-revelar-se
que o humor, mesmo crítico, também pode provocar riso ao evidenciar a
relação problemática do ser humano com o autoritarismo de certas
estruturas sociais de poder, embora nem sempre isso ocorra.
Em decorrência, encontra-se aí uma visão de mundo
específica, marcada pelo riso provocado pelo caráter liberal e contestador
da subversão de valores sociais preestabelecidos. Essa cosmovisão
carnavalesca cria uma linguagem simbólica susceptível de transposição
para a linguagem da literatura. Tal processo de transposição é denominado,
na teoria bakhtiniana, de carnavalização da literatura5, cuja essência está
no seu caráter ambivalente, em razão da plurissignificação da linguagem
empregada para focalizar as imagens que traduzem a vida deslocada do seu
curso habitual. Com isso, a linguagem literária enfatiza a ambigüidade, ou
seja, as palavras adquirem múltiplos significados, que possibilitam a
renovação de sentidos.
Ao analisar as particularidades características do
cômico-sério, Bakhtin destaca que o problema da carnavalização da literatura é uma
5
das mais importantes questões da poética dos gêneros, visto que existe uma
influência determinante do carnaval na literatura. Assim, a paródia
sobressai-se como elemento indispensável a todos os gêneros
carnavalizados, tendo em vista que ela se constitui no modo privilegiado de
se fazer carnavalização artística.
A propósito, Linda Hutcheon, pesquisadora das
manifestações artísticas pós-modernas, em sua obra Uma teoria da paródia
(1985), salienta que a paródia é uma forma estética dotada de
auto-reflexividade dialógica, e não monológica, e define-a como uma forma de
discurso interartístico 6, que mostra uma relação explícita entre as diversas formas de arte para criticar e reavaliar as semelhanças ou diferenças
existentes entre os textos comparados e gerar humor crítico. Ela declara,
ainda, que uma das tendências da literatura pós-moderna é parodiar o
discurso não-literário.
Com efeito, percebe-se que a intertextualidade, ou seja, a
relação entre textos que remetem uns aos outros, é uma característica
inerente à paródia. Entretanto, sendo paródica, a intertextualidade
estabelece-se não só na semelhança com o texto primitivo como na
diferença crítica manifestada na mudança de linguagem ou de foco
analítico, com deliberada intenção de produzir humor.
6
Assim, importa reafirmar que a paródia, sendo
concomitantemente especular e crítica, supõe a retomada de uma escrita por
outra e seu referente é bem marcado, na medida em que ela se define ao se
propor refletir outro texto. O texto paródico, embora exija certa distância
crítica, identifica-se na comparação com o outro texto, movimentando-se
num vaivém intertextual em que o leitor detecta a diferença irônica nele
contida.
Em função disso, o gesto escritural de carnavalizar a
notícia, que empreende Scliar, instaura a paródia, que é um dos mais
poderosos instrumentos da crítica social, como imitação intencionalmente
contestadora. O escritor emprega esse importante recurso literário com
maestria, intensificando seu efeito com as tonalidades específicas do humor
como experiência estética para conferir transcendência à crônica, em
oposição ao caráter efêmero do texto escrito em jornal.
Entre a crônica e a notícia há um ponto de intersecção em
que a intertextualidade se realiza no encontro das semelhanças e das
diferenças e mostra que a crônica alude à notícia, embora suas construções
tenham intenções diferenciadas. Isto se explica, em última instância, porque
a notícia está comprometida com a veracidade dos fatos e a crônica, por ser
ficção, opera ludicamente com esses fatos.
É importante ressaltar que as notícias escolhidas, por
contornos inusitados, os quais acirram o efeito crítico-humorístico na
atmosfera literária criada pelo escritor para evidenciar a importância desse
diálogo paródico entre os textos.
Quanto à linguagem propriamente dita, a empregada por
Scliar possui marcas de oralidade, com construções lingüísticas imbuídas de
uma variedade de fios ideológicos, que articulam a visão crítica sobre
diversos tipos de relações sociais e permitem o riso melancólico e reflexivo,
particularizado pelo próprio autor como “humor judaico”.
Essa modalidade de humor, segundo Scliar, Finzi & Toker,
não tem, como se salientou, uma definição precisa, mas pode se distinguir
por não lutar só “contra”, mas também “por”: por uma ética pessoal isenta
de preceitos restritivos tradicionais, por uma sociedade mais justa, e pela liberdade de cada qual ser como é sem temer a ação insidiosa do preconceito7, visto que se caracteriza por desafiar os sistemas sociais vigentes e criticar as desigualdades, em defesa de justiça no tocante aos
direitos humanos.
7
3 DO FATO AO TEXTO LITERÁRIO:
As saborosas crônicas de Moacyr Scliar
Para escolher as notícias, eu vou lendo o jornal todos os dias. De repente, lá está: algo que, por ser patético, ou grotesco, ou inusitado pega a condição humana, por assim dizer, desprevenida. Não é realismo mágico, mas é a realidade em seu limite, a realidade que às vezes parece ficção.
Desde seu primeiro livro de contos, publicado em 1968,
intitulado Carnaval dos animais, ao criticar a violência, Scliar já
entremostra, em narrativas sucintas, com a linguagem cortante do seu
humor, um mundo invertido, em que animais têm características
sinistramente humanas, como se a vida fosse um palco festivo onde todos
usam máscaras para melhor encenarem a desumanização do homem.
A propósito, evidencia-se que, independentemente da
temática abordada, sobressaem o humor e a ironia, pelos quais o escritor
mostra criticamente os disparates da realidade no contexto do passado
histórico ou da atualidade.
No caso específico das crônicas de Moacyr Scliar aqui
analisadas, a palavra da notícia se deixa transfigurar pela interferência da
palavra literária, que passa então a constituir um universo discursivo
autônomo, com toda a sua carga de invenção ficcional.
Os acontecimentos da vida, que retratam uma sociedade
moderna desorientada e fragmentada, são os materiais interpretados pelo
artista e, no caso, pelo cronista, pois tudo pode funcionar como argila, isto
é, como material que deve ser aproveitado para esculpir sua arte. Assim, no
processo de criação das crônicas, a argila é a notícia moldada artisticamente
pelo escritor e transfigurada em literarura, o espetáculo de situações
Em vista disso, pode-se afirmar que a criação artística de
Scliar se processa como um jogo de espelhos, em que um ou vários textos
se projetam num outro, formando a crônica. No entanto, essa projeção
adquire outra imagem porque são descobertos novos significados,
especialmente os que chegam ao limite da lógica convencional, voltados
para as necessidades cotidianas das pessoas. Passa-se ao mundo da
imaginação e esse transporte do real para o fictício realiza-se pela criação
literária carnavalizada, uma inversão que produz a crítica às ordens e aos
valores predeterminados, como já se enfatizou.
Merece destaque a ironia do texto, que é a tônica desse
jogo artístico-literário e manifesta-se implicitamente, sendo necessária sua
inserção no contexto da época, o que depende, para a projeção de sentidos,
de um conhecimento comum entre escritor e leitor. Diante disso, o leitor é
despertado por uma espécie de humor que não perde de vista as fraquezas
humanas, principalmente as aflições das classes média e baixa da
sociedade. Tais aflições podem gerar conflitos psicológicos que, muitas
vezes, são transformados em neurose, doença do século XX, segundo
Scliar1 .
1
As narrativas, escritas em tom irônico, levam o leitor a rir
e, ao mesmo tempo, a refletir sobre a temática proposta, pois, com humor
crítico e misturando realidade e imaginação, Scliar questiona um dos
grandes problemas da modernidade: como o ser humano pode encontrar a si
mesmo e entender-se no conturbado mundo de hoje. Em função disso, a
força da palavra da ficção, mesmo em textos curtos como o da crônica,
permeia desde o conflito interpessoal até a conjuntura social.
Assim, Moacyr Scliar perscruta a vida humana e a desvela
ao público, apresentando uma importante criação literária que analisa a
realidade vivente e se contrapõe a convencionalismos sociais cristalizados.
Como cronista em busca de situações insólitas, revela profunda
preocupação com os acontecimentos relacionados ao ser humano,
fazendo-o de ffazendo-orma a estimular nfazendo-o leitfazendo-or fazendo-o risfazendo-o, mas um risfazendo-o cfazendo-ontidfazendo-o, reduzidfazendo-o, que
não se manifesta na gargalhada escancarada, e sim no meio-riso, aquele que
enlaça comicidade e amargura.
Em verdade, não há como se definir esse tipo de humor
praticado por Scliar. Pode-se dizer apenas que é um humor sutil que busca
humanizar o sofrimento e os sentimentos, sem distinção, como contributo
para um mundo mais justo e igualitário. O escritor ataca a hipocrisia que
estrutura determinadas relações sociais, abarcando temas relacionados à
Nas crônicas, tal humor, qualificado pelo próprio escritor
como “humor judaico”, situa-se no intervalo flutuante entre o lúdico e o
crítico, desvelando tudo o que fere o valor e a dignidade do ser humano,
com uma linguagem de sentido essencialmente ambíguo.
Entretanto, nem todo humor feito por judeus é considerado
como característicamente judaico, segundo explicam Scliar, Finzi & Toker
na obra Do Éden ao divã: Humor judaico (1991),uma antologia repleta de
pequenos ensaios, historietas, provérbios e anedotas. Eles ressaltam que o
“humor judaico”, como forma de comentário social ou religioso, pode ser
sarcástico, queixoso, resignado, provocando, não uma gargalhada, mas um sorriso melancólico, um aceno de cabeça, um suspiro2. Os autores notam que o riso reflexivo diante da vida, incitado por esse tipo de humor, é uma
reação diferenciada daquela oriunda da maioria das cenas cômicas, porque
não provém do infortúnio das pessoas, mas de uma análise crítica dos fatos.
Na contracapa desse livro, o também cronista gaúcho Luís
Fernando Veríssimo, ao tecer considerações sobre este tipo de humor,
assevera que o humor judeu é, de certa forma, a contrapartida do
misticismo judeu3. O referido escritor explica que o misticismo, arraigado
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SCLIAR, Moacyr, FINZI, Patrícia & TOKER, Eliaher. Op. cit., p.1.
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