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Do Fenômeno da Vida rumo ao Princípio Responsabilidade

PARTE II – SISTEMÁTICA

Capítulo 4 Do Fenômeno da Vida rumo ao Princípio Responsabilidade

Embora, nos últimos anos, Jonas venha conquistando cada vez mais espaço, pode- se dizer que, lamentavelmente, ele é um filósofo ainda pouco conhecido no meio acadêmico brasileiro. O que se conhece dele, quase sempre, se restringe, à sua obra de maturidade, que o projetou no cenário filosófico norte-americano e europeu no final da década de 70, O Princípio Responsabilidade [PR] (1979), um trabalho de peso e relevância incontestáveis digno, portanto, de todo o reconhecimento a ele dedicado.

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Além do PR, dentre os diversos títulos de sua obra, aquele que mais se conhece é o posterior Técnica, Medicina e Ética306 [TME] (1985), que constitui uma “aplicação” de seu princípio responsabilidade ao problema das biotecnologias dirigidas ao ser humano, notadamente, no campo das ciências biomédicas.

Contudo, a obra de Jonas é bastante extensa, composta, sobretudo, por inúmeros artigos e recensões307. Seus títulos principais: Gnosis und spätantiker Geist - I: Die

mythologische Gnosis (1934) e II: Von der Mythologie zur mystischem Philosophie (1954), The Phenomen of Life308(1966), “The Concept of God after Auschwitz” (1968), “On the Power or Impotence of Subjectivity” (1976), Das Prinzip Verantwortung (1979), Evolution und Freheit (1983/4) e Technik Medizin und Ethik (1985)309.

Isso mostra que Jonas não é somente o “filósofo da responsabilidade”310. Sua obra abrange outras áreas de investigação que, como se pode ver acima, culminam com o PR e o TME, na reflexão ética, mas sua trajetória intelectual começa muito antes, na década de 30 e sua produção – tão extensa quanto diversificada – contém outras obras basilares e indispensáveis à justa compreensão de sua formulação ética.

Pretende-se, aqui, iluminar o lado menos conhecido do pensamento de Jonas, focalizando um tema bastante recorrente em sua obra, mesmo na fase anterior à sua elaboração ética. Tal questão, de fato complexa, o desafia desde as primeiras reflexões. Trata-se do problema do dualismo, visto por ele como uma questão a ser forçosamente enfrentada previamente, para ser possível abrir caminho rumo à reflexão ética.

306. Obra que, no Brasil, é mais bem conhecida e reconhecida por profissionais da área biomédica, com a qual Jonas nela dialoga.

307. Alguns dos quais foram escritos originariamente em inglês, outros em alemão e alguns ainda em hebraico.

308. A resenha “The Phenomen of Life – 1966”, que F. Neves publica na Revista Kriterion, em 1975, apresenta essa obra no Brasil.

309. Para uma análise sintética das principais obras de Jonas, ver P. Ricœur. “La responsabilité et la fragilité de la vie”. In Le Messager Européen, 5, Paris: Gallimard, 1991, pp. 203-218.

310. Aliás, segundo Olivier Depré, Hans Jonas é conhecido como o “pensador da liberdade”. (O. Depré. Hans Jonas. 1903 – 1993. Paris: Ellipses, 2003. 64 p. Aqui p. 23)

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Sem almejar esgotar o tema, apenas lançar luz a uma parte menos conhecida da obra jonassiana, o presente capítulo divide-se em: 4.1 - Breve apresentação biobibliográfica de Jonas; 4.2 - O dualismo como problema central na reflexão filosófica jonassiana; 4.3 - O trajeto para a resolução do dualismo; 4.4 - Avaliação e conseqüências dessa solução e 4.5 - As diferentes formulações de pr e a resposta jonassiana às éticas anteriores.

4.1 – Breve apresentação biobibliográfica de Hans Jonas311

Não é fácil compreender, verdadeiramente, o pensamento de um autor sem conhecer os aspectos principais de sua biografia. Isso é especialmente verdadeiro no caso de Jonas, pois ele viveu em profundidade todos os principais acontecimentos do século XX que, por sua vez, tiveram um visível reflexo no interior de sua obra.

Nascido em 1903, na cidade alemã de Mönchenglandbach; descendente da tradição judia, sua primeira formação humanística pautou-se pela rigorosa leitura dos profetas hebreus. Ele próprio resume sua rica vivência intelectual, em diferentes contextos. Por exemplo, numa conferência realizada em outubro de 1986, na Universidade de Heidelberg, durante a comemoração dos 600 anos de sua fundação e numa entrevista312, por ocasião da publicação da versão francesa de seu Das Prinzip

Verantwortung, concedida a Jean Greisch e Erny Gillen que se encontraram com o filósofo, em 14 de julho de 1990.313

311. Biografia escrita a partir de dados fornecidos pelo próprio Jonas em suas Memórias e nos contextos citados, retomados por Jean Greisch na apresentação de sua versão para o francês, o Le Principe Responsabilité, publicado pelas editoras Champs & Flammarion, em 1998, (pp. 9-14) e também por José Eduardo de Siqueira, no texto “Ética e tecnociência – uma abordagem segundo o princípio de responsabilidade de Hans Jonas”, in Ética, ciência e responsabilidade, São Paulo: Centro Universitário São Camilo, Loyola, 2005, pp. 101-200.

312. Publicada sob o título “De la gnose au Principe Responsabilité”, in Esprit. Paris, Mai 1991, nº 5, pp. 5-21.

313. Sem esquecer, obviamente, de suas memórias escritas por Krishna Winston, a partir de conversas com Jonas, registradas fonograficamente para posterior transcrição, originariamente em inglês. A versão lida foi a francesa: Souvenirs. Paris: Payot & Rivages, 2005, 382 p.

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Ali, Jonas destaca três momentos principais de sua trajetória filosófica. O primeiro tem início em 1921, ano em que inicia sua graduação na Universidade de Freiburg, escolhida pelo fato de lá lecionar o célebre filósofo Edmund Husserl, onde assistiria também às aulas de Martin Heidegger, um professor até aquele momento pouco conhecido. Jonas reconhece que Heidegger foi durante muito tempo seu mentor intelectual, a tal ponto que, quando o mestre se transfere para a Universidade de Marburg, o discípulo segue-o sem hesitar. Fato bastante significativo em seu percurso, pois é lá que Jonas conhece o seu segundo mentor: Rudolf Bultmann, quem o despertará para o tema sobre o qual versará sua tese - gnose e o cristianismo primitivo -, defendida em 1931, ainda sob orientação de Heidegger. Desse trabalho inicial resulta, em 1934, a sua primeira publicação: o notável Gnosis und spätantiker Geist, que ele mesmo considera como seu primeiro grande passo como filósofo.

Lamentavelmente, porém, naquele mesmo ano, em decorrência da ascensão de Hitler ao poder e da adesão de Heidegger ao partido nacional socialista, Jonas se vê forçado a deixar a Alemanha. Isso porque, graças a uma acertada intuição, desde aquele momento, para ele tornou-se “evidente que era impossível permanecer em tal país fosse apenas para salvaguardar sua própria dignidade”.314

Esse fato marca profundamente a sua vida, porquanto a partir de então viverá distante de seus pais, com os quais encontrará apenas algumas vezes fora de seu país natal, com o qual rompe relações (refeitas somente poucos anos antes de falecer). No plano intelectual, as conseqüências são ainda mais determinantes, pois a irreparável decepção, em relação àquele que tinha sido para ele o mais genuíno de todos os filósofos, provoca o seu afastamento pessoal e uma quase315 total ruptura teórica.

314. H. Jonas. “De la gnose au Principe Responsabilité” (Gpr). Esprit. Paris, Mai 1991, nº 5, p. 6. 315. “Quase” porque, como veremos, a influência de Heidegger sobre Jonas jamais deixou de existir. E, antes mesmo da reaproximação, ela sempre se fez presente, embora nem sempre de modo evidente.

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O segundo momento mais importante na vida intelectual de Jonas tem lugar em 1966, data da publicação de sua segunda grande obra, o célebre Phenomenon of Life,

Toward a Philosophical Biology, onde ele estabelece os parâmetros para o que ele denomina de “uma filosofia da biologia”. Inaugura-se, assim, um novo campo de reflexão que se volta para a precariedade da vida e aponta o enorme alcance filosófico da abordagem das questões biológicas. Desse modo, Jonas restitui à vida sua posição de destaque, afastando-se a uma só vez de dois extremos: do irreal idealismo e do limitado materialismo. Ele também adverte sobre o equívoco de se separar o homem da natureza e de imaginá-lo isolado das demais formas de vida. No epílogo desta obra, Jonas esboça de forma geral o seu projeto ao escrever que "com a continuidade entre o espírito316 e o

organismo, entre o organismo e a natureza, a ética se torna parte da filosofia da natureza (...). Somente uma ética fundada na amplitude do ser (...) pode ter significado na ordem das coisas.”317

A relação entre essa conclusão e o terceiro e último momento de seu trajeto intelectual é auto-evidente. Pois, a partir daí, tem início a sua busca por uma ética própria desde seus fundamentos. Uma ética da responsabilidade318 torna-se, portanto, o principal objetivo de Jonas. Assim, em 1979 ele publica Das Prinzip Verantwortung - Versuchi einer Ethic für die Tecnologische Zivilisation, traduzido para o inglês em 1984, para o francês em 1990, para o espanhol em 1994 e, para o português, apenas recentemente, em 2006.

Quando questionado sobre os motivos que o teriam levado dos estudos da gnose à reflexão sobre a ética, Jonas mencionava os fatos que marcaram sua própria história.

316. No original o termo é Geistes e na versão francesa esprit. A tradução espanhola segue a tradição anglo-saxã de traduzir tais termos por mind e adota o termo mente.

317. H. Jonas. Das Prinzip Leben. pp. 401 e 403. Versão francesa: Le phénomène de la vie. pp. 281 e 282. 318. Assim, Jonas recupera um tema que, segundo M. Campolina, surge antes mesmo de Aristóteles. Diversos filósofos antigos teriam se ocupado da responsabilidade, cuja formulação já está presente nos poemas homéricos e nos fragmentos morais de Demócrito. Ver “A emergência da reflexão sobre a responsabilidade moral na Grécia Antiga”, in Síntese, Belo Horizonte, v. 29, n. 95, p. 301-322, 2002. Ver sobre esse aspecto, especialmente, a página 303.

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Pois, desde a juventude, ele foi partidário do sionismo; ao deixar a Alemanha dirigiu-se, primeiro para Londres, em seguida para Israel, na ocasião, território da Palestina, tutelado pela coroa britânica, onde, em 1940, se alistou na brigada judaica do exército britânico, que ele próprio ajudou a criar, para lutar contra o nazismo, permanecendo como oficial de artilharia até 1949. Sobre esse período, é interessante transcrever sua seguinte declaração:

Cinco anos como soldado do exército britânico na guerra contra Hitler (...). Separado dos livros e de tudo o que faz parte da pesquisa (...) [percebi] que estava [em questão] algo mais essencial. O estado apocalíptico das coisas, a queda ameaçadora do mundo (...) a proximidade da morte (...) tudo isso foi terreno suficiente para propiciar una nova reflexão sobre os fundamentos de nosso ser e para tornar a ver os princípios pelos quais se guiam nossos pensamentos sobre eles. Assim, voltando às minhas origens, fui lançado de novo à missão básica do filósofo e de sua ação nata, que é pensar.319

A situação limite decorrente da proximidade com a concretude da morte foi, então, o que despertou em Jonas a preocupação com a vida, tema a que se dedicou com grande tenacidade. Para levar a cabo seu projeto, Jonas ousou romper com a corrente dominante da época e no interior da qual se formara, a filosofia do idealismo da consciência. Isto ocorre, ao verificar que tal concepção era herdeira do dualismo cartesiano, que determinara não só os destinos da filosofia moderna, mas de todo o pensamento até o século XX, quando ainda prevalecia a dicotomia corpo-alma. Daí ele conclui que, para repensar a ética, era necessário ultrapassar tal dicotomia. Imbuído

319. R.J. Bernstein. “Rethinking responsibility.” in Hastings Center Report 1995; 25 (7 Special Issue): 13-20.

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desse propósito, ele produziu diversos ensaios reunidos, em meados da década de 60, justamente no seu Phenomenon of Life - Toward a Philosophical Biology.320

Logo, vemos que Jonas inicia sua transição, dos estudos gnósticos para a reflexão ética, percorrendo os caminhos da reflexão sobre a vida, com o objetivo central de eliminar o dualismo antigo, acentuado pelo pensamento cartesiano entre corpo e alma.

Todavia, é interessante ressaltar que Jonas se dedicou durante quase duas décadas - precisamente durante uma década e meia - aos estudos sobre a gnose. O curioso é que, segundo o próprio Jonas, somente “por acidente” ele se aventurou “no domínio extraordinariamente fascinante da história das idéias que cobre a época dos dois a três primeiros séculos de nascimento do cristianismo (...). O acidente foi uma exposição apresentada em Marbourg no seminário de Rudolf Bultmann”321, que lhe despertou para o tema que, a partir

de então, ocupa parte significativa de sua vida intelectual.

Houve um momento, porém, em que Jonas se voltou para outras questões, ao se dar conta de que “em última instância a filosofia tem a ver com o que é, com o ser real ao qual nós somos confrontados, do qual nós próprios somos uma parte”. (Gpr. p. 7) A esta constatação

aliou-se um fator de ordem externa: o fato de, enquanto soldado, não ter acesso às bibliotecas, o que o obstou a prosseguir suas pesquisas, mas não a continuar a atividade filosófica. Assim, Jonas deparou-se com as “questões que cada um traz por assim dizer consigo, a questão de ser o que se é (...) ao que não se acede pelos livros nem pelas pesquisas [que] se reportam ao passado, mas pelo que se pode conhecer e compreender em si mesmo, em primeira pessoa.” (Gpr. p. 8)

Tudo isso fez manifestar sua insatisfação com relação ao “filosofar alemão”, especialmente com base nos ensinamentos de Husserl e Heidegger. Com efeito, ele percebe que seus grandes mestres não incluíam em suas reflexões as descobertas das

320. Em francês: Le phénomène de la vie – Vers une Biologie Philosophique, versão que será a mais utilizada, sob a abreviação PhV. Quando, porém, citado indiretamente aparecerá o título original cuja abreviação é PhL.

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ciências naturais sobre o mundo. Todos os temas mais caros a tais pensadores, entre os quais a “questão da consciência, do ser-ao-mundo, do Dasein, da angústia, do ser-para-a-morte, do ser autêntico e inautêntico, etc” (Ibidem.) somente expressavam “aspectos da subjetividade do si, da alma, da interioridade, mas [em todos eles] de certa maneira o mundo real estava ausente.” (Ibidem). E uma vez confrontado com questões concretas, por exemplo, as levantadas pela perspectiva marxiana, Jonas foi levado a se perguntar: “de fato, que socorro nos presta a fenomenologia face à fome?” (Ibidem).

Desse modo, Jonas entendeu que a questão do corpo fora totalmente ignorada pela reflexão filosófica alemã eminentemente idealista e “mesmo em Heidegger, que queria se liberar dessa tradição, ela persiste, apesar de tudo, através de seu conceito de ser-aí que ele associa à constituição fundamental da preocupação – que é, aliás [como ele admite], uma magnífica definição de ser-aí.” (Ibidem.)

A grande sagacidade de Jonas foi, portanto, perceber que “somos seres dotados de um metabolismo e [que por isso] nós temos necessidade do mundo, o mundo real-material e não somente o mundo da consciência, embora tenhamos necessidade também desse.” (Gpr. pp. 8-9)

De fato, tal idéia já se anunciava a Jonas desde os seus estudos sobre a gnose, quando ele descobriu o que aponta como possível ligação entre os seus diferentes trabalhos, a saber: “o dualismo radical da gnose no qual a alma e o espírito são estrangeiros ao mundo, alguma coisa que vem de alhures, de fora, que não tem verdadeira pátria nesse mundo, onde o corpo é a prisão da alma e onde o ser verdadeiro consiste na separação.” (Gpr. p. 9. Grifos nossos.)

Tal dualismo ele detecta não só na tradição ocidental, mas também numa importante concepção oriental: o budismo. Entretanto, para Jonas, se o dualismo teve certa utilidade no interior da teoria do conhecimento; na perspectiva da ontologia ou da metafísica, sua contribuição foi absolutamente insatisfatória, para não dizer negativa.

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Todas essas avaliações revelam que, mesmo em pleno front, Jonas refletia322 cada vez mais intensamente sobre a significação de nosso ser corporal, algo que ele percebia:

Não somente no fato de que nós somos seres corporais, mas também no fato de que o mundo que nos cerca é povoado de tais seres, de organismos, que certamente são bem mais primitivos que nós, de organismos que não pensam e não percebem como nós e que, entretanto, são outra coisa que simples porções de matéria. (Ibidem.) Para confrontar esse dualismo, seu propósito passa a ser elaborar um monismo de uma nova espécie323, com o qual fosse possível superar a cisão cartesiana do ser. Cisão que estabelece que, de um lado, há “o elemento físico da coisa extensa definida por parâmetros mensuráveis, e de outro a consciência que consiste simplesmente em atos do espírito.” (Ibidem.)

Terminada a guerra, Jonas retorna a Jerusalém. Em 1949, é convidado a lecionar no Canadá, primeiro na MC Gill University de Montreal, depois na Universidade de Ottawa. Em 1955, muda-se para os EUA e inicia sua carreira na New School for Social Research de New York, onde lecionará por mais de 20 anos.

A extensão e diversidade de sua obra ilustram perfeitamente o seu percurso intelectual, aparentemente descontínuo324. Mas, como apontado por Nathalie Frogneux325, existe uma unidade essencial cujo fio condutor é, precisamente, a tentativa de resolução do dualismo326. Desde as suas primeiras obras sobre a gnose, passando

322. Parte dessa reflexão está registrada em suas cartas à sua esposa Lore Jonas, parcialmente transcritas em suas memórias. Souvenirs. pp. 264-292.

323. Explicitado adiante, à p. 187, nota 370.

324. Jonas é um filósofo multifacetado que legou uma obra bastante vasta e, num primeiro momento, de difícil indexação. Contudo, uma abordagem mais cuidadosa da obra é capaz de identificar os 3 grandes temas indicados por ele próprio e que podem servir de índice a uma fiel taxonomia de sua obra: Gnose, Filosofia da Biologia e Ética. J. Greisch, & E. Gillen. “De la gnose au Principe Responsabilité”. Un entretien avec Hans Jonas, in Esprit, 54 - mai 1991 -, pp. 05-21. Sobre os temas principais da obra de Jonas ver pp. 07-10.

325. N. Frogneux. Hans Jonas ou la vie dans le monde. (VM) Bruxelles: De Boeck & Larcier, 2001, p. 4. Obra que guiará o tópico 2 e parte do 3.

326. Sobre o que discorda Pinsart, para quem o fio condutor da obra de Jonas é o conceito de liberdade. (M.G. Pinsart. Jonas et la Liberté. Dimensions théologiques, ontologiques, éthiques et politiques. Paris:

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pelos textos dirigidos a uma biologia filosófica, até chegar aos de teor fundamentalmente ético, o pensamento de Jonas é entoado segundo o diapasão da resolução do dualismo, cujas diferentes etapas serão apresentadas no tópico a seguir.

4.2 - O dualismo como problema central na reflexão filosófica jonassiana

Vimos, no tópico anterior, que o problema do dualismo constitui, por assim dizer, o leitmotiv de toda a reflexão filosófica jonassiana. Mas, por que afinal Jonas atribui ao dualismo uma importância tão grande e por que essa questão precisa ser tão imperiosamente solucionada?

O próprio Jonas resume sua trajetória como uma“démarche filosófica inteiramente consagrada à resolução do dualismo, para pensar a dignidade do homem agindo no interior

do mundo onde ele se encontra”. (DH, p. 16 / VM, XIII n. 2327. Grifos nossos) Esse aspecto é

crucial para compreender porque, desde as suas primeiras obras sobre a gnose, o tema do dualismo já se mostra como eixo central de sua exposição.

Frogneux ressalta o pioneirismo de Jonas ao descrever o dualismo gnóstico em toda sua originalidade e radicalidade, sem reduzi-lo ou atribuir sua origem a formas anteriores como o dualismo persa (mazdeano ou zoroastriano), que é pro-cósmico, enquanto o dualismo anti-cósmico gnóstico vê o mundo como o lugar por excelência do mal328; ou o dualismo grego (órfico-pitagórico-platônico) no qual, embora desvalorizado como imperfeito (sobretudo conforme a versão platônica), o cosmos permanece como uma imagem da perfeição na qual o Demiurgo se inspirou para criá-lo, enquanto o pensamento gnóstico é totalmente hostil ao mundo como um todo. A autora adverte ainda que, para Jonas, não há uma oposição entre dualismo e monismo, como há, por exemplo, entre diteísmo e monoteísmo; essa exposição tentará mostrar porquê.

Vrin, 2003, 222 p. Ver p. 07). De qualquer modo, o problema do dualismo é logicamente anterior. O tópico seguinte tentará justificar tal afirmação.

327. A mesma citação aparece nos dois textos de Frogneux, aqui focalizados.

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Por sua hostilidade em relação ao mundo, o dualismo gnóstico constitui “uma ruptura absoluta, uma torção ou uma perversão da cadeia do ser que atinge as raízes mesmas da vida humana no mundo” (VM, p. 27). Essa ruptura se traduz, na dimensão humana, como um sentimento de isolamento do homem em sua condição de ser solitário, num mundo natural hostil e mau; sentimento que se encontra alojado na raiz do pensamento gnóstico. Resta ao homem, como um ser “exilado no mundo”, buscar abrigo no “ser divino”.329

A conseqüência mais nefasta desse dualismo homem / mundo é, segundo Jonas, o

niilismo330que se manifesta numa“metafísica do ser-no-mundo que, em sua raiz, torna a ação vã, tanto para o homem que a realiza quanto para o mundo que a sofre”. (VM, 31)

Sendo assim, na base de sua crítica ao dualismo gnóstico encontram-se, na verdade, as críticas ao niilismo e ao ceticismo moral. Ou seja, a crítica jonassiana “prende-se (...) menos ao dualismo como tal que a seu alcance cético e niilista para a antropologia e à ação” (VM, 101).

Por esse motivo, Frogneux afirma que: “Sua tarefa filosófica consiste, desde então, em reencontrar uma medida comum entre o homem e o mundo sem, entretanto, jamais reduzir

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