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2.2 Introdução à fonologia articulatória

2.2.1 Do gesto abstracto às trajectórias dos articuladores

De acordo com os princípios da FA, delineados por Browman & Goldstein (1986, 1989, 1990b, 1992, 2000), a unidade fonológica por excelência é o gesto articulatório. Os gestos da FA correspondem, essencialmente, a uma intenção de movimento, no sentido de realizar uma determinada tarefa no tracto vocal: por exemplo, elevação do dorso da língua ou oclusão labial.

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No que respeita ao português, destaca-se o recente trabalho de Meireles & Barbosa (2008), que desenvolvem um estudo acústico-articulatório, no sentido de analisar a influência da taxa de elocução na reorganização lexical (reestruturação silábica) do PB (e.g. “abóbora”> “abóbra”). De acordo com os dados, o fenómeno, considerado tradicionalmente como uma queda da vogal pós-acentuada, resulta afinal da redução da magnitude dos gestos consonânticos pós-tónicos e do aumento da sobreposição entre eles, em virtude do aumento da taxa de elocução.

Variável do tracto Articuladores Envolvidos

LP Protrusão Labial lábios superior e inferior, mandíbula LA Abertura Labial lábios superior e inferior, mandíbula TTCL Local de constrição ponta da língua ponta e corpo da língua, mandíbula TTCD Grau de constrição ponta da língua ponta e corpo da língua, mandíbula TBCL Ponto de constrição corpo da língua corpo da língua, mandíbula

TBCD Grau de constrição corpo da língua corpo da língua, mandíbula

VEL Abertura do velo véu palatino

GLO Abertura glotal glote

Figura 2.5: Variáveis do tracto e correspondência com os articuladores (traduzido de Browman & Goldstein (1990b, p.344). As aberviaturas referem-se à terminologia inglesa.

Esta intenção abstracta é especificada por um conjunto de cinco variáveis do tracto - ponta da língua (TT), corpo da língua (TB), velo (VEL), glote (GLO) e lábios (L)31- totalmente independentes umas das outras e que se referem, simultaneamente, a uma ou duas dimensões. Os gestos orais traduzem-se num par de variáveis do tracto, o local de constrição (do inglês constriction location) e o grau de constrição (do inglês constriction degree)32, que se referem a duas dimensões da mesma constrição, estando, por isso, relacionadas entre si33.

As variáveis do tracto consideradas pelo modelo e os articuladores envolvidos na realização da tarefa são apresentados na figura 2.5.

A variável do tracto Constriction Location (CL) pode assumir os valores: [protruso],

[labial],[dental],[alveolar],[pós-alveolar],[palatal],[velar],[uvular]

e[faríngeo].

Quanto ao Constriction Degree (CD), a FA prevê cinco valores distintos: [fechado],

[crítico],[estreito],[médio]e[largo]. Os primeiros dois caracterizam as oclusivas e fricativas, respectivamente. As restantes três etiquetas são usadas para descrever os contrastes de

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As abreviaturas referem-se à terminologia original, em inglês: lips (L), tongue tip (TT), tongue body (TB), velum (VEL) e glottis (GLO).

32Haveria ainda um terceira dimensão, a forma de constrição, que nunca chegou a ser incorporada ao modelo. 33

Por exemplo, o local e grau de constrição do corpo da língua são duas dimensões da mesma constrição - corpo da língua.

altura entre vogais, embora o valor[médio]possa também aplicar-se às consoantes aproximantes. As trajectórias das variáveis do tracto são explicitamente geradas por um modelo mate- mático conhecido como task dynamics (Saltzman, 1986; Saltzman & Munhall, 1989), originalmente usado para modelar diferentes tipos de movimento humano - quer seja andar, mastigar, estender um braço, etc. - e, mais recentemente, aplicado à produção de fala34. Segundo este modelo, o movi- mento é definido não em termos das estruturas anatómicas envolvidas, mas da “tarefa” abstracta a ser cumprida. Existem, contudo, muitos graus de liberdade, i.e., os articuladores envolvidos podem combinar-se entre si de maneiras diferentes, de modo a efectivar uma determinada tarefa. Se o movi- mento de um destes articuladores é bloqueado ou perturbado, os restantes articuladores responsáveis pela tarefa de imediato se ajustam, no sentido de cumprir o objectivo final e atingir o alvo (ou posição de equilíbrio).

No caso da fala em particular, há um conjunto de articuladores anatomicamente relaciona- dos (coordenative structure) (Fowler, 1977) que actuam em conjunto e têm como “tarefa” a formação (e distensão) de uma determinada constrição em diferentes regiões do tracto vocal.

Por exemplo, a tarefa de oclusão labial, para a produção do /b/, resulta da acção coordenada de três articuladores - lábio inferior, lábio superior e mandíbula (vd. tabela 2.5) - que constituem o

effector system. Os lábios destacam-se, neste caso, como terminal devices ou end-effectors, já que

a sua posição define directamente a abertura labial. Independentemente do contexto segmental (e.g. [aba] ou [ibi]), a tarefa para o [b] - bem como o effector system e os terminal devices - é sempre a mesma (oclusão bilabial). O modo como os articuladores se coordenam entre si para a realizar é, contudo, bastante flexível: numa sequência como[ibi], a mandíbula tenderá a exibir uma posição elevada para a realização da vogal [i], pelo que a contribuição dos lábios no sentido de efectivar a oclusão bilabial será menor do que em contexto de vogal baixa (e.g.[aba]).

Assim, é o movimento das variáveis do tracto em direcção a um determinado alvo (ou ponto de equilíbrio), e não o movimento de cada um dos articuladores, que é caracterizado dinamicamente. Na actual formulação do modelo, a formação (e distensão) de uma constrição gestual é modelada através de uma equação dinâmica simples, do tipo massa mola com amortecimento crítico (2.1):

m¨x + b ˙x + k(x − x0) = 0 (2.1)

em que,

m representa massa do objecto, considerada constante e adquirindo, portanto, o valor arbitrário de 1, b representa o amortecimento do sistema (damping ratio), que está relacionado com a trajectória

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Uma introdução aos conceitos e pressupostos implicados na task dynamics, tendo como alvo não especialistas na matéria, pode ser encontrada em Hawkins (1992).

efectuada pela variável do tracto na aproximação ao target: na versão actual do modelo, todos os gestos orais são assumidamente criticamente amortecidos, o que significa que a variável do tracto se aproxima assimptoticamente do target, sem nunca oscilar em torno dele. Por outras palavras, a massa movimenta-se em direcção ao target, mas não chega jamais a atingi-lo. k representa a rigidez da mola (stiffness), que, em conjunto com o amortecimento (b), é o parâmetro

mais directamente responsável pela frequência de oscilação e pela duração da trajectória da variável do tracto: quanto maior a rigidez, mais alta a frequência de oscilação e menor a duração do movimento. Apesar de formalmente incorporado no modelo task dynamics, que serve de base à FA, permanecem ainda muitas dúvidas sobre o papel do stiffness na produção, a sua relação com x0 ou a necessidade de considerar valores distintos para duas variáveis do tracto relacionadas (CL e CD) (Browman & Goldstein, 1990a). Browman & Goldstein (1990a, p. 306) especulam ainda sobre a possibilidade do stiffness “could form the basis for natural classes. For example, gestures for glides might differ from those for vowels primarly in their stiffnesses (glides being stiffer); similarly, gestures for stops (and affricates) might be stiffer than those for fricatives.”. Investigações recentes, com base em articulografia electromagnética 3D (Roon

et alii, 2007), indicam, contudo, que o referido parâmetro não depende do modo de articulação,

mas varia, sobretudo em função do articulador envolvido, estando os movimentos do corpo da língua associados a um stiffness significativamente inferior ao de outros articuladores, como a ponta da língua ou os lábios, independentemente do falante e do contexto.

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x representa a aceleração instantânea da variável do tracto, ˙x representa a velocidade instântanea da variável do tracto, x representa o deslocamento instantâneo da variável do tracto,

x0 representa a posição de equilíbrio (ou target) da variável do tracto, i.e., a posição em direcção à qual todo o sistema se movimenta. Este parâmetro está intimamente relacionado com a tra- dicional caracterização dos segmentos fonéticos em termos de modo e ponto de articulação, análogos do CD e CL, respectivamente.

A especificação de um gesto implica, portanto, a referência aos valores dos parâmetros dinâmicos associados à variável do tracto em causa 35, para além da especificação da contribuição relativa (os chamados weights) de cada um dos articuladores para o movimento da variável do tracto.