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do indivíduo moderno nas figuras da penalidade

No documento Foucault: sujeito, poder e saber. (páginas 134-153)

A consideração de que poder não funciona em termos de repressão levanta uma suspeita contra o aparelho jurídico-político, que designa sob a forma da lei o permitido e o proibido na esfera social e ampara a modalidade contratual de análise política. Foucault aponta a forma do direito como o discurso por excelência de uma conjuntura que pode ser situada na história e através da história, e que não condiz com o funcionamento efetivo do poder ao menos desde o início do século XIX. Em A verdade e as formas jurídicas, encontra sua morfologia no cenário das monarquias medievais, descrevendo-a como elemento de unificação da realeza feudal80.

O filósofo sustenta que a soberania se erige no horizonte do direito penal, passando gradativamente a mediar contendas privadas, então reguladas pelo direito germânico. O francês comenta que com este modelo bárbaro, sobrepondo-se às instâncias judicativas da antiguidade greco-romana, a reação ao sofrimento físico passou a ser       

80 A consideração sobre a relação de origem estabelecida entre o direito e o poder

soberano se confirma no curso Em defesa da sociedade, donde afirma Foucault: “Do poder régio trata-se de duas maneiras: seja para mostrar em que armadura jurídica o poder real se investia, como o monarca era efetivamente o corpo vivo da soberania, como seu poder, mesmo absoluto, era exatamente adequado a um direito fundamental; seja, ao contrário, para mostrar como se devia limitar esse poder do soberano, a quais regras de direito ele devia submeter-se, segundo e no interior de que limites ele deveria exercer seu poder para que esse poder conservasse sua legitimidade. O papel essencial da teoria do direito, desde a Idade Média, é o de fixar a legitimidade do poder: o poder maior, central, em torno do qual se organiza toda a teoria do direito é o problema da soberania. Dizer que o problema da soberania é o problema central do direito nas sociedades ocidentais significa que o discurso e a técnica do direito tiveram essencialmente como função dissolver, no interior do poder, o fato da dominação, para fazer que aparecessem no lugar dessa dominação, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legítimos da soberania, do outro, a obrigação legal da obediência” (FOUCAULT: 2005a, p. 30-31).

 

validada como prova jurídica. Os ordálios, geralmente empregados por meio de afogamentos e queimaduras, eram interpretados como ocasiões em que se punha em questão a interferência de Deus a favor ou contra o acusado, selada pela resistência às dores e a cicatrização das feridas em prazo previamente estabelecido. Do mesmo modo, o justo poderia ser determinado por meio de duelos, cuja força e destreza das partes, preponderavam sobre a inquirição da verdade. Assim, pode-se dizer que vigorava um embate a demarcar vencedores e vencidos em lados opostos, mas não culpados e inocentes, posto não ser a verdade o escopo da investigação jurídica. A força, o acaso e o destino compunham este domínio que se manteve ao menos até o fim da Alta Idade Média.

Uma vez que um indivíduo se declarasse vítima e reclamasse reparação a um outro, a liquidação judiciária devia se fazer como uma espécie de continuação da luta entre os indivíduos. Uma espécie de guerra particular, individual se desenvolve e o procedimento penal será apenas, a ritualização dessa luta entre os indivíduos. O direito germânico não opõe a guerra à justiça, não identifica justiça e paz. Mas, ao contrário, supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear os atos de vingança. O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer guerra (...). No sistema da prova judiciária feudal trata-se não da pesquisa da verdade, mas de uma espécie de jogo de estrutura binária. O indivíduo aceita a prova ou renuncia a ela. Se renuncia, se não quer tentar a prova, perde o processo de antemão. Havendo a prova, vence ou fracassa, não há outra possibilidade. A forma binária é a primeira característica da prova (FOUCAULT: 2002b, p. 56-61).

Neste horizonte as disputas poderiam ser pactuadas sob a forma do pagamento de uma quantia estabelecida por um árbitro externo, escolhido em comum acordo pelos interessados, como forma de cessar a possível vingança do acusador. A multa funcionava como uma compra da paz, não tendo a função de reparar o dano, mas somente a de lesar aquele que paga. Com a ausência de uma instância central a gerir o lícito e o ilícito na esfera pública, estas contendas pessoais, a guerra e a rapina,

 

constituíam-se como mecanismo de circulação dos bens, donde os mais fortes potencializavam sua força com o desarmamento dos mais fracos. Foucault assinala, todavia, a gradativa apropriação do direito de punir como meio de acumulação de poder, o que fomenta a constituição jurídica da soberania a partir do século XII e a reposição do direito romano em cena.

Na alta Idade Média não havia poder judiciário. A liquidação era feita entre indivíduos. Pedia-se ao mais poderoso ou àquele que exercia a soberania não que fizesse justiça, mas que constasse, em função de seus poderes político, mágicos e religiosos, a regularidade do procedimento. Não havia poder judiciário autônomo, nem mesmo poder judiciário nas mãos de quem detinha o poder das armas, o poder político. Na medida em que a contestação judiciária assegurava a circulação dos bens, o direito de ordenar e controlar esta contestação judiciária, por ser um meio de acumular riquezas, foi confiscado pelos mais ricos e mais poderosos (FOUCAULT: 2002b, p. 65).

Foucault define em A verdade e as formas jurídicas este empreendimento de estatização penal que na Baixa Idade Média começa a centralizar o poder na figura do soberano, por meio de quatro etapas intrinsecamente ligadas: 1) a proibição aos contendores particulares de resolverem suas pendências entre si, migrando esta tarefa a uma instância externa e pretensamente neutra; 2) o aparecimento do procurador como representante do rei a fim de mediar os litígios privados; 3) a noção de infração que emerge como ato de violência pública; 4) a secularização da culpa e a consequente codificação de uma jurisdição das penas.

Ante a maturação do monopólio estatal da violência, e consequentemente das monarquias absolutistas, ocorre uma identificação do crime como afrontamento pessoal ao rei, concebido como a encarnação da própria justiça. Neste contexto, o soberano, revestindo-se do poder como um atributo de natureza e constituído pela força, é erigido como elemento paradoxal: define-se como o corpo da lei e podia fazer da suspensão da mesma um ato legal. Neste sentido confirma Giorgio Agamben:

 

‘O soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico’. Se o soberano é, de fato, aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece o poder de proclamar o estado de exceção e de suspender, deste modo, a validade do ordenamento, então ‘ele permanece fora do ordenamento jurídico e, todavia, pertence a este, porque cabe a ele decidir se a constituição in toto possa ser

suspensa. A especificação ‘ao mesmo tempo’ não é trivial: o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo: ‘a lei está fora dela mesma’, ou então: ‘eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei’ (AGAMBEN: 2007, p. 23).

Sob esta tipologia política, os ilegalismos são entendidos como crimes de lesa-majestade, e se apresentam como ocasião em que a soberania agredida deve responder mostrando-se como força reparatória sobre-humana81. Neste ínterim, nenhum delito poderia escapar à vingança do príncipe, o que fazia de qualquer suspeito, mesmo sem provas, um corpo em que devia recair ao menos certa punição, proporcional aos indícios da culpa. Era preferível punir um inocente que deixar escapar impune um culpado.

Se a confissão se constituía como prova irrefutável, a tortura compunha um processo de extração legítima da verdade. Ao mesmo tempo, ao resistir o suspeito às dores que lhe eram impostas, encontrava-se fragilizado o veredito de uma prova completa. Neste cenário em que no plano epistemológico, como Foucault demonstra em As palavras e as coisas, a medida e a ordem regem as diretrizes de todo conhecimento, os epítetos “culpado” e “inocente” resultam de uma aritmética de provas, existindo a possibilidade de uma “culpa fracionada”, seguindo o modelo matemático do discurso corrente.       

81 A lógica deste sistema pode ser observada em afirmações como a que segue,

presente em Les six livres de la République de Jean Bodin: “Assim como uma coroa perde seu nome se está aberta ou quando seus florões são arrancados, assim a majestade soberana perde a sua grandeza se fizer nela abertura para usurpar qualquer prerrogativa sua” (BODIN: 2011, p. 292). Ora, neste contexto, o direito de infringir a própria lei que promulga encontra-se restrito à pessoa do príncipe, ao tomar um súdito para si este direito significa valer-se de uma prerrogativa real e, portanto, o cometimento de uma violência contra a majestade, seu poder e sua pessoa.

 

O suspeito, enquanto tal, merecia sempre um certo castigo; não se podia ser inocentemente objeto de suspeita. A suspeita implicava, ao mesmo tempo, da parte do juiz um elemento de demonstração, da parte do acusado a prova de uma certa culpa, e da parte da punição uma forma limitada de pena. Um suspeito que continuasse suspeito não estava inocentado por isso, mas era parcialmente punido (FOUCAULT: 1997b, p. 37-38).

Foucault abre seu Vigiar e punir com o relatório truculento de uma condenação capital donde o réu Robert-François Damiens é apresentado repetindo seus atos simbolicamente ao público, de modo a evidenciar a justiça em face de seu castigo. O anúncio de sua pena demonstra o exercício de uma prática punitiva que integra a representação das infrações, que temporariamente destituíram ou ameaçaram o poder do príncipe, ao conjunto de uma cerimônia de restituição e afirmação política em que se demonstra a “verdade”. Os suplícios desta ordem, castigos corporais que levavam lenta e dolorosamente à morte, não eram comuns, mas estavam previstos no sistema jurídico dominado pelas monarquias europeias até fins do século XVIII.

O mencionado relatório de execução assim começa:

[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barriga das pernas, sua mão segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzido a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento (FOUCAULT: 1997b, p. 9).

Os suplícios como este eram executados como manifestação da disparidade de forças existente entre o príncipe e o malfeitor, por isso

 

sobre os corpos dos condenados se aplicavam múltiplas mortificações, impingindo-se um cálculo da dor para que o supliciado se mantivesse vivo e o ritual se completasse até suas últimas manifestações de caráter exemplar. Daí não bastava eliminar o indivíduo que cometera o crime, era preciso reduzi-lo ao mais genuíno desespero e ouvir seu pedido de clemência a Deus e ao soberano para ter sua morte abreviada. A mutilação dos corpos deveria ser apreciada por uma legião de espectadores, partícipes do ritual que reconsagrava a soberania ofendida, incutindo-lhes o medo como forma de garantir a obediência das leis82.

A dramaticidade sangrenta compunha o cenário da ostentação da força neste modelo cujo povo, escrito no singular, constituía-se em muitos corpos como indivíduo único. Não era relevante a morte ou a vida especificamente de um condenado, já que se desprezava sua individualidade somática. Seu corpo se apresentava, e assim bastava ao poder, como substrato próprio à manifestação desta soberania de caráter metafísico que conseguia subsistir pela legitimidade divina e/ou contratual e pela aplicação do terror.

O indivíduo comum, sob o selo do poder soberano, era classificado somente enquanto pertencente a um agrupamento, classe ou família, mas encontrava-se aquém de uma singularização pelo poder. O corpo da realeza, contrariamente, composto como

gemina persona, simultaneamente natural e místico, era o corpo que de fato abrigava importância política. Sua duplicidade permitia que uma parte de si não perecesse ao ciclo que abate o mundo orgânico. Sobre esta questão, Foucault, apoiando-se no estudo de Ernst Kantorowics intitulado Os dois corpos do rei, afirma:

O rei, para assegurar sua soberania, deve ser um indivíduo com um corpo, mas esse corpo não pode perecer com a singularidade somática do rei; quando o

      

82 A eficácia do medo como instrumento de manutenção política, tema candente a

esta lógica auto-afirmativa do poder soberano, é apresentada por Maquiavel. Em O príncipe encontra-se a seguinte passagem: “Os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por um vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada oportunidade que a eles convenha; mas o temor é mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona” (MAQUIAVEL: 1997, p. 96).

 

monarca desaparece, a monarquia tem de subsistir; este corpo do rei, que mantém juntas todas essas relações de soberania, não pode desaparecer com o indivíduo X ou Y que acaba de morrer. É necessária, portanto, certa permanência do corpo do rei; é necessário que o corpo do rei não seja simplesmente sua singularidade somática, tem de ser, além disso, a solidez de seu reino, da sua coroa. De sorte que a individualização que vemos se esboçar no topo da relação de soberania implica a multiplicação do corpo do rei (...). A relação de soberania põe em ligação, aplica algo como um poder político no corpo, mas nunca faz a individualidade aparecer. É um poder que não tem função individualizante ou que só esboça a individualidade do lado do soberano, e ainda assim à custa dessa curiosa, paradoxal e mitológica multiplicação dos corpos. De um lado, corpos, mas não individualidade; de outro lado, uma individualidade, mas uma multiplicidade de corpos (FOUCAULT: 2006c, p. 57).

De acordo com Foucault, é a soberania, deste modo, concebida como extensão de uma hierarquia amparada em Deus e/ou nas leis naturais, o que justifica a ordem estabelecida e o decorrente direito de vida e morte que a vontade do rei faz valer sobre seus súditos. Em busca de sua legitimidade, o soberano acorre constantemente aos elos que o vinculam a um passado que manifesta a unção de sua linhagem pelo criador ou a celebração de seu poder através de um pacto entre os homens.

A relação de soberania sempre traz, creio, a marca de uma anterioridade fundadora. Para que haja relação de soberania, é preciso que haja outra coisa, como um direito divino ou como uma conquista, uma vitória, um ato de submissão, um juramento de fidelidade, um ato firmado entre o soberano que concede privilégios, uma ajuda, uma proteção, etc., e alguém que, em compensação, se empenha; ou tem de haver algo como um nascimento, direitos de sangue. Em suma, podemos dizer, a relação de soberania olha sempre para trás, na direção de algo que a fundou de uma vez por todas (FOUCAULT: 2006c, p. 53- 54).

 

Cumpre notar, porém, que apesar do poder soberano ter como sustentáculo uma suposta origem divina, ele se encontrava em posição comumente frágil em face aos seus possíveis confrontadores. A violência de seu exercício alimentava a insatisfação popular, o que se convertia facilmente em revoltas, por outro lado, era na própria demonstração de sua força arrebatadora que ela conseguia garantir sua permanência. Ritualizada desde o nascimento até a morte, a soberania se reatualizava a cada manifestação de poder e, neste processo, estavam incluídos também os sacrifícios dos condenados, oferecidos ao deleite e horror de uma plateia de espectadores, conforme comenta o filósofo em Vigiar e punir:

O suplício tem (...) uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho. A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado (coroação, entrada do rei numa cidade conquistada, submissão dos súditos revoltados): por cima do crime que desprezou o soberano, ela exibe aos olhos de todos uma força invencível. Sua finalidade é menos de estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar, até um extremo, a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer sua força (FOUCAULT: 1997b, p. 42).

Ocorre que a soberania, ao utilizar estes rituais contra cada ameaça a ela impingida, demonstrava, no corpo supliciado, o limite de sua ação. Assim, o intento de punição exemplar, além de esporadicamente promover a identificação dos espectadores com o sofrimento escrachado de um súdito ante seus olhos, selava a força soberana como poder negativo, cuja presença estava restrita aos seus ritos de consagração e que se abria ao fabrico de resistências. O poder soberano funcionava de modo descontínuo e, assim, fomentava a existência de espaços de contestação pública.

Sob o ponto de vista teórico, podemos situar a compatibilidade de pensadores como Bodin, Hobbes e Bossuet com a racionalidade política da soberania. Em seu artigo Foucault, a lei e o direito, Sérgio

 

Adorno comenta o respaldo jurídico que a cerca e a reverberação de seus temas em alguns dos clássicos que na época pensaram o poder:

No século XVIII o poder soberano revestiu-se de legalidade; o rei exerce o poder por direito, inicialmente direito divino, em seguida por direito consuetudinário. Foi esse modelo que povoou o imaginário da filosofia política moderna, em torno de nomes como Bodin, Maquiavel, Hobbes e Locke, contribuindo para disseminar a identidade entre lei e poder, entre direito e justiça, entre soberania e juridicidade (ADORNO: 2006, p. 209).

Conforme Bodin, a soberania, perpétua e absoluta, se constitui como a própria força de coesão social. O filósofo caracteriza o príncipe como portador legítimo do poder, estando alheio às próprias leis que promulga. Deste modo, o desprezo de um súdito à soberania nele personificada corresponde a um insulto a Deus, conforme se pode verificar em Les six livres de la République:

Já que não há nada maior na Terra, depois de Deus, que os Príncipes soberanos, e que eles são estabelecidos por Ele como seus lugares-tenentes para comandar os outros homens, é preciso levar em consideração a sua qualidade, a fim de respeitar e reverenciar a sua majestade com toda obediência, ouvir e falar deles com toda honra. Pois quem despreza seu Príncipe soberano despreza a Deus, de quem o Príncipe é a imagem na Terra (BODIN: 2011, p. 289).

Em Hobbes encontra-se a defesa da centralização de poder com o intuito de alijar a condição natural de guerra entre os homens com a formação do Estado. A fim de defender esta posição afirma que “nada que o soberano representante faça a um súdito pode, sob qualquer pretexto, ser propriamente chamado de injustiça ou injúria” (HOBBES: 2003, p. 160)83. Quanto a Bossuet, atribuindo à       

83 Para Hobbes o Estado, representado pelo soberano, deve ser dotado de aparência

indestrutível, como força infinitamente superior aos súditos que o compõe. O título de sua máxima obra política, extraída de um mito hebraico, denota o caráter aterrorizante que a soberania se reveste para garantir a obediência civil. No capítulo 41 do livro de Jó (Antigo Testamento) encontra-se uma descrição deste Leviatã

mitológico ao qual Hobbes compara o Estado: “Suas costas são fileiras de escudos, ligados com lacre de pedra; são tão unidos uns com os outros que nem ar passa entre

 

providência o governo dos homens, confere à monarquia na Terra o caráter sagrado da representação dada pelos céus. Ungidos, os príncipes se tornam a própria imagem de Cristo e sobre eles não há instância coativa no reino dos homens.

Apesar do amparo jurídico-político ancorado na ancestralidade e, em última instância, na vontade de Deus, os rituais da soberania caducam em face à realidade das Luzes. A expansão demográfica, a

No documento Foucault: sujeito, poder e saber. (páginas 134-153)