• Nenhum resultado encontrado

enquanto professor do Collège de France

No documento Foucault: sujeito, poder e saber. (páginas 104-110)

Aos holofotes do público, enquanto no contexto da arqueologia a filosofia de Foucault se revela por meio de grandes obras, constituindo-se como exercício solitário, a genealogia encontra-se vinculada a sua atuação no Collège de France, por meio de seus cursos - balizados por princípios de método expostos em sua aula inaugural pronunciada em dezembro de 1970, publicada pelas Éditions Gallimard no ano seguinte sob o título A ordem do discurso – donde toma semanalmente a palavra em meio a uma legião de atentos espectadores. À aurora do novo decênio, o filósofo fora convidado a assumir a então recente cátedra de História dos sistemas de

 

pensamento, proposta por Jules Vuillemin, para substituir a de

História do pensamento filosófico por ocasião da morte de Jean Hippolyte, seu titular. Neste período, em que era pago pela renomada instituição de ensino francesa para anualmente executar pesquisas inéditas e apresenta-las nos meses de inverno, predomina a ação direta com o público50, um corpo a corpo expresso em comunicações e entrevistas, entremeado pela publicação de artigos e dos resumos dos resultados ministrados na referida instituição51. No prefácio de Em

defesa da sociedade, descrevem François Ewald e Alessandro Fontana:

O ensino no Collège de France obedece a regras específicas. Os professores têm a obrigação de cumprir 26 horas de ensino por ano (podendo a metade, no máximo, ser dada sob a forma de seminários). Devem expor todos os anos uma pesquisa original, o que os força a estar sempre renovando o conteúdo de seu ensino. A assistência aos cursos e aos seminários é inteiramente livre; não requer inscrição nem diploma. E o professor não emite nenhum. No vocabulário do Collège de France, diz-se que os professores não têm alunos e sim ouvintes (EWALD & FONTANA: 2005, p. X).

As pesquisas apresentadas entre 1971 e 1984 por muito tempo estiveram indisponíveis e seu acesso só se tornou possível através da transcrição de gravações efetuadas pelos presentes. Tais cursos conferem maior visibilidade ao empreendimento genealógico, exibindo diferentes pontos de ataque no fluxo de sua analítica do poder. Parte deste material veio à tona ao grande público somente em 1994 com a edição da coletânea Dits et Écrits dirigida por Daniel Defert e François Ewald inicialmente em quatro volumes. No período       

50 Na primeira aula do curso Em defesa da sociedade, em 07 de janeiro de 1976,

Foucault reclama da dificuldade de se estabelecer uma troca, interlocução com o público presente, durante a exposição de sua pesquisa no Collège de France. Para tanto, afirma ter alterado o horário desses encontros para as manhãs frias de Paris, na expectativa de encontrar um público menor e, assim, ter a possibilidade de responder perguntas e debater os temas de sua pesquisa, o que de fato não aconteceu. As salas da referida instituição continuaram superlotadas, inibindo este pretendido debate direto, esse jogo de perguntas e respostas.

51 A publicação do resultado integral das pesquisas anuais não era exigida aos

ministrantes dos cursos do Collège de France, senão seu resumo, que foram publicados no Brasil. Os cursos, todavia, até o presente estão incompletos.

 

compreendido como genealógico as grandes obras começam a surgir somente em meados da década de setenta, quando o filósofo esboça mais precisamente conceitos-chave que perfilam a maturidade de seu pensamento político52, tais como o poder disciplinar e o bipoder, em

Vigiar e punir (1975) e A vontade de saber (1976), respectivamente. A recusa transitória à escrita tradicional53 segue um propósito condizente com as exigências do novo tempo e é mencionada em entrevista a J. Hafsia a La presse de Tunisie em 12 de agosto de 1971. Nesta, afirma seu interesse por assumir a postura de intelectual específico e engajado.

Há um tempo escrevi um livro sobre história da loucura. Ele foi bastante mal recebido, exceto por alguns como Blanchot ou Barthes. Ainda recentemente, nas universidades, quando se falava desse livro aos estudantes, se fazia observar que ele não fora escrito por um médico e que, consequentemente, era preciso desconfiar dele como da peste. Ora, uma coisa me chocou: há alguns anos desenvolveu-se na Itália, em torno de Basaglia, e na Inglaterra um movimento que chamamos a antipsiquiatria. Essas pessoas, certamente, desenvolveram seu movimento a partir de suas próprias ideias e de suas próprias experiências como psiquiatras, mas viram no livro que eu escrevera uma espécie de justificativa histórica e, de algum modo, elas o reassumiram, reconsideraram e,

      

52 O termo aqui é adotado sem a pretensão de delegar a Foucault a existência de um

pensamento unificado sobre os temas políticos ou uma filosofia política tradicional. De acordo com Gérard Lebrun: “Foucault não podia ter pensamento político, porque para ele a filosofia política era uma disciplina obsoleta, mas ao mesmo tempo considerava que o pensamento, por ser pensamento, é político de ponta a ponta. Isso pode esclarecer por que se dedicava a ações pontuais, sem propor uma filosofia política” (LEBRUN & RIBEIRO: 1985, p. 1).

53 O uso da expressão “recusa transitória à escrita tradicional” neste contexto se refere

ao espaço decorrido entre um período de maior proliferação escrita, a arqueologia, e a publicação de obras como Vigiar e Punir e A vontade de Saber. Neste espaço predominam as entrevistas, pequenos textos e conferências. Pode-se, contudo, objetar a expressão ao se levar em conta o modo imprevisível de escrita de Foucault, constituindo-se, neste sentido, à eira de uma escrita tradicional desde seus primeiros trabalhos. De acordo com Deleuze “Foucault nunca encarou a escritura como um objetivo, como um fim. É exatamente isso que faz dele um grande escritor...” (DELEUZE: 2005, p. 33).

 

até certo ponto, se encontraram, e eis que esse livro histórico está em via de ter uma espécie de resultado prático. Digamos então que estou um pouco ciumento, e que agora eu gostaria muito de fazer as coisas eu mesmo. Em vez de escrever um livro sobre a história da justiça que seria, em seguida, tomado por pessoas que poriam praticamente em questão a justiça, eu gostaria de começar por recolocar em questão a prática da justiça, depois, palavra de honra!, se eu ainda estiver vivo, e se não tiver sido posto na prisão, pois bem, escreverei o livro... (FOUCAULT: 2006g, p. 35-36).

A supracitada afirmação, para além de assumir uma potencial autoria de trabalho, reflete um ordenamento que em ato permeia a crítica, validação e composição dos discursos correntes. Ao remeter ao ceticismo gerado no meio acadêmico em virtude de escrever sobre um tema “periférico”, tradicionalmente legado aos cuidados da psiquiatria e não dos filósofos, Foucault questiona o aparato institucional que concede ou recusa a licença de objetos a determinados sujeitos. O estatuto das publicações, as sociedades científicas, as universidades, são observadas em seu caráter excludente, pertencente a um conjunto de mecanismos destinados a coibir indesejáveis manifestações em face dos limiares estabelecidos pela ordem dominante. Sem identificar tais regramentos e seus consequentes párias com o tema marxista da luta de classes, é memorável a hipótese lançada em sua aula inauguraldo Collège de France:

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT: 2006b, p. 8-9).

Eis que no opúsculo de dezembro de 1970 estes mecanismos são descritos pelo filósofo partindo de um diagnóstico dos procedimentos discursivos de exclusão então divididos em três grupos: a) aqueles que põem em jogo o poder e o desejo; b) os que visam dominar as aparições aleatórias; e c) os que selecionam os sujeitos falantes. O primeiro, formado para estabelecer fronteiras, subdivide-se em

interdição, separação ou rejeição e vontade de verdade. O segundo, visando seu policiamento interno, promove a rarefação dos acasos de

 

aparições discursivas, sob os princípios do comentário, do autor, e das

disciplinas. O terceiro, valendo-se do imperativo de que “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo” (FOUCAULT: 2006b, p. 37), trata dos ritos, sociedades discursivas, doutrinas, e sobre as apropriações sociais que selecionam e atribuem direitos ou mutismos aos indivíduos.

Conforme Foucault, a interdição, mais evidente e familiar de todos estes procedimentos, promove o tabu do objeto, os rituais de circunstância, e o direito privilegiado e exclusivo de quem fala. Ou seja, dita “como”, “em que situação”, “sob que caracteres”, e “através de quem” se pode falar sobre determinadas questões - o que de antemão desqualifica possibilidades diversas de aparições discursivas. As separações ou rejeições o filósofo qualifica como arbitrárias – segundo ele, estes procedimentos visam atender aos critérios morais inerentes aos discursos, sendo impulsionadas por uma vontade que permanece oculta aos agentes, já que não se trata de um querer subjetivo. Por fim, toma a vontade de verdade como mola propulsora à consecução de quaisquer hipóteses ou teorias, tratando-a como vontade impessoal. Sem refletir o desejo consciente da maioria, encontra-se a mesma atrelada ao funcionamento de um poder que se cristaliza e ganha autonomia.

Sendo a vontade de verdade o mais oculto e pernicioso mecanismo de exclusão, Foucault sustenta que ela deve ser o principal alvo da pesquisa genealógica. Na ordem estabelecida, o estatuto do “verdadeiro” suspende a aparição da vontade que o constitui e o faz como medida estratégica necessária à sua manutenção.

O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la. Assim, só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-

 

la em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e definir a loucura (FOUCAULT: 2006b, p. 21).

Foucault ainda comenta que qualquer sociedade encontra-se cindida por uma ordem dominante a dividir espaço com a existência de discursos marginais, que por vezes resistem e maculam o verdadeiro, sem destituir sua preponderância. Concordantes ou antitéticos, entre si há um desnivelamento: alguns discursos são tomados como fundadores, outros como comentários que passam logo que proferidos. O comentário, entretanto, pode adquirir força suficiente para sobrepor-se ao dominante e, neste caso, embora um dos termos tenha sido suprimido, a relação propriamente permanece, constituir-se-ão outras manifestações marginais policiadas pelo discurso que se fez principal e verdadeiro, e um dia elas poderão adentrar no terreno da verdade, se legitimadas pela moral em ação. Neste balbuciar secundário que se projeta à primazia dos dizeres, encontra-se o devir daquilo que Foucault chama de acontecimento, conceito que perpassa o conjunto de sua filosofia.

Aos referidos mecanismos inibidores de um discurso livre, o professor do Collège de France destaca, em contrapartida, contornos necessários à consecução do método que põe em marcha nos anos seguintes. A fim de simplificar o proscrito que se encontra em um segundo momento de A ordem do discurso, sintetiza Deleuze:

Foucault se opõe a três maneiras de fazer começar a linguagem: pelas pessoas, ainda que sejam pessoas linguísticas ou embreagens (a personologia linguística, o “eu falo” ao qual Foucault sempre oporá a preexistência da terceira pessoa enquanto não-pessoa); ou pelo significante enquanto organização interna ou direção primeira à qual a linguagem remete (o estruturalismo linguístico, o “isso fala” ao qual Foucault supõe a preexistência de um corpus ou de um

conjunto dado de enunciados determinados); ou, finalmente, por uma experiência originária, uma cumplicidade primeira com o mundo que nos abriria a possibilidade de falar dele, e faria do visível a base do enunciável (a fenomenologia, o “Mundo diz”, como se as coisas visíveis já murmurassem um sentido que a nossa linguagem só precisaria levantar, ou como se a linguagem se

 

apoiasse num silêncio expressivo, ao qual Foucault opõe uma diferença de natureza entre ver e falar) (DELEUZE: 2005, p. 64-65).

Aos sinais levantados à direção da genealogia, ouve-se o eco da crítica de As palavras e as coisas, agregado ao tempero de uma maior fluidez social. A recusa ao ponto de partida do sujeito, da hermenêutica e da metafísica, vigora, mas sob a mira de uma história ainda mais volátil que a estabelecida com a arqueologia. Os critérios para a pesquisa futura, levantados no opúsculo de 1970, celebram um compromisso político: por trás de um coro uníssono cumpre dar voz aos murmúrios calados, prestar ouvidos às foscas desarmonias e deixar fluir a diacronia caótica, emudecida sob a ordem regulamentadora. À análise da logofobia que edifica muros de instituições e dirige as prensas editoriais, propõe “questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; e suspender a soberania do significante” (FOUCAULT: 2006b, p. 51). Neste encalço, é nítido o timbre daqueles comumente tomados na contramão de nosso filisteísmo moderno: seja Artaud, Bataille ou Nietzsche, para citar alguns dos visionários que lhe inspiram54.

No documento Foucault: sujeito, poder e saber. (páginas 104-110)