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2. O CONTEXTO DA TERCEIRA ANTINOMIA

2.5. Do interesse da tese e da antítese

A partir de um rápido olhar na terceira seção da Dialética, lembremos que as antinomias surgem toda vez que a razão busca compreender a existência dos acontecimentos na série das causas e para isso rompe os muros da experiência possível, a fim de determinar o incondicionado da série. Cada uma das posições persegue os próprios interesses, ao mesmo tempo em que nega o interesse do seu adversário. Neste sentido, quando o conflito é considerado a partir do realismo transcendental, torna-se um autêntico conflito em que tese e antítese não podem conviver simultaneamente em suas considerações acerca de um

mesmo epifenômeno. Deste modo, tese e antítese expressam interesses distintos, a primeira sendo expressão do dogmatismo da razão e, a segunda, do empirismo. Neste estágio da teoria Kant não toma ainda partido a favor de uma ou de outra posição, dado que ambas são expressão do realismo. Por isso, neste contexto dogmático, ele apresenta ao leitor algumas razões para se aderir a cada uma das posições, sendo que ambas teriam igual legitimidade.

Haveria assim, do lado da tese, um interesse prático da razão aliado a um interesse da moral e da religião. A vantagem desta posição seria a de permitir-nos pensar um início para o mundo, um sujeito pensante de natureza simples, uma causalidade por liberdade etc., coisa que a antítese definitivamente nos privaria (CRP, B494). De fato, este parece ser um interesse muito importante para uma concepção moral, que está centrada na responsabilidade individual, embora, reiteramos, Kant não subscreva a tese, justamente porque neste contexto do realismo cosmológico sua preocupação não é ainda tomar partido, mas apenas apontar os limites de cada posição quando considerada a partir do realismo. Há ainda um interesse especulativo, o que nos possibilita pensar as ideias totalmente a priori e deduzir o condicionado a partir da ideia de um incondicionado. Do lado da tese, haveria ainda a vantagem da popularidade, pois o interesse comum está mais acostumado a, partindo dos fundamentos, descer às conseqüências, e não das conseqüências ascender aos fundamentos. Assim, a partir de um conceito absolutamente primeiro, haveria um terreno firme, a partir do qual, poder-se-ia deduzir tudo o que existe, sem necessidade de demonstrá-lo (CRP, B495).

Do lado da antítese, a posição empirista não oferece comodidade ao pensamento e nenhum interesse prático, especulativo ou mesmo religioso, de modo que as ideias perdem toda sua validez enquanto suporte teórico. Mesmo assim, há muitas vantagens do lado do empirismo do ponto de vista especulativo, pois coloca o entendimento no seu campo exclusivo de atuação - que é o âmbito da experiência possível -, perseguindo, por meio de suas leis, o conhecimento daquilo que é possível conhecer, e não lhe sendo permitido elevar-se a conceitos transcendentes por meio da razão idealizante. Assim, a partir do empirismo, não se permitirá que qualquer coisa seja admitida como primeira no âmbito da natureza, ou que outra causalidade prescinda de suas leis – como, por exemplo, que uma liberdade possa ser pressuposta -, cabendo ao entendimento seguir o fio condutor das regras necessárias para determinar a experiência. Nem mesmo será permitido que fora da natureza seja estabelecida qualquer causa que possa explicá-la (CRP,

B496-8). Há, no entanto, do lado do empirismo, o risco de tornar-se dogmático quando seu único objetivo - no âmbito especulativo - é suprimir a curiosidade da razão, negando-lhe qualquer conhecimento que ultrapassa a esfera da intuição e caindo assim numa imodéstia. Isto seria algo ainda mais censurável, uma vez que estaria causando um prejuízo insubstituível ao interesse prático da razão (CRP, B498-9). Mesmo assim, Kant não teme que o empirismo seja prejudicial a ponto de fazer desaparecer até mesmo o interesse prático pelas ideias, pois, ainda que tenha aumentado o interesse do público comum a seu respeito, o ponto de vista prático é sempre mais atraente ao grande público.

Há que se observar, porém, que do ponto de vista de sua arquitetônica a razão traz uma inclinação natural pela tese. Apesar de as ideias não poderem ser provadas, delas também não se pode fazer qualquer juízo negativo, justamente porque não é possível saber nada a seu respeito, pelo menos no domínio teórico da razão. Por isso, uma vez que do ponto de vista da antítese está eliminada a possibilidade da razão pensar uma completude no seu sistema de conhecimento, a razão se inclinará mais facilmente às asserções da tese. No entanto, nos diz Kant, se alguém fosse deixar de lado qualquer interesse, seja da tese, seja da antítese, e analisar cada asserção a partir do ponto de vista do conteúdo dos seus argumentos, encontrar-se-ia num impasse sem solução, pois ora se inclinaria para um lado, ora para outro, de modo que o conflito, assim como está posto, permanece insolúvel. Nas suas palavras,

hoje se apresentaria a ele como convincente que a vontade humana é livre; amanhã, quando considerasse a indissolúvel cadeia natural, admitiria que a liberdade não é senão a auto-ilusão e que tudo é meramente natureza. Quando então se tratasse de operar e agir, esse jogo da razão simplesmente especulativa desapareceria como silhuetas de um sonho e ele escolheria os seus princípios meramente segundo o interesse prático (CRP B503).

Portanto, assim como é apresentado em forma de dilema cosmológico, o conflito não parece admitir, por parte de Kant, nenhum posicionamento a favor ou contra quaisquer das posições. Seu posicionamento só aparece na nona seção da Dialética, quando ele introduz o idealismo transcendental como teoria de fundo para solucionar a antinomia. E isto é o que veremos na sequência. Vamos observar ainda, no próximo capítulo, que um conflito que surge como

uma antinomia cosmológica passará a ter uma conotação moral, a partir da tese dos dois caráteres da razão.

2.6. A SOLUÇÃO DO TERCEIRO CONFLITO COSMOLÓGICO