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4. LIBERDADE: UMA RELAÇÃO ENTRE CÂNON E

4.4. As objeções de Julio Esteves a Allison

Antes de tratarmos do posicionamento de Esteves acerca da relação entre o Cânon e a Dialética, consideramos oportuno apresentar rapidamente as suas objeções a Allison. Esteves tem um ponto de vista bem distinto daquele de Allison e não pensa que a liberdade prática na CRP seja base para uma moral heterônoma e insatisfatória. Pelo contrário, sua posição tenta conciliar as afirmações do Cânon com a Dialética apontando que o conceito de liberdade prática é um conceito híbrido, mas não empírico, como sugere Allison, e que ela possui uma independência absoluta em relação aos estímulos que vêm da sensibilidade.

O primeiro aspecto ressaltado por Esteves tem a ver com a tese de Allison de que, na Dialética, a dependência da liberdade prática em relação à transcendental é uma dependência conceitual e não ontológica. Neste sentido, apelaríamos para a ideia transcendental para nos concebermos como agentes livres em sentido prático, ficando em aberta a questão se, do ponto de vista ontológico, realmente somos livres. Baseado na afirmação kantiana de que “[...] a supressão da liberdade transcendental aniquilaria, concomitantemente, toda a liberdade prática” (CRP, B562), Esteves afirma: “é difícil aceitar que Kant tivesse aqui em mente outra coisa que não uma relação de dependência ontológica: o ser da liberdade prática está de tal modo fundado no da variante transcendental, que a destruição da segunda levaria à aniquilação da primeira” (ESTEVES, 2009, p.60). Nesta mesma linha de raciocínio, Pavão acredita que, ao concebermos a liberdade transcendental como um conceito meramente regulativo, teríamos problemas para pensar a imputabilidade. Por isso ele questiona: “se a liberdade transcendental fosse apenas uma ideia regulativa, com vistas a nos concebermos como seres praticamente livres, então o que significaria a nossa auto- concepção de seres praticamente livres?” (PAVÃO, 2002, p. 188). Sendo um ser a quem se atribui uma causalidade inteligível por meio da razão, o ser humano não se deixa apreender apenas como um ser natural, mas pode determinar-se livremente, por meio da adoção de um necessário ponto de vista. Não precisaríamos assumir qualquer compromisso ontológico, qualquer pacto com a natureza em si do agente moral. Bastaria reconhecermos a necessidade de que o agente moral tenha de se considerar transcendentalmente livre, assim como nossos juízos de imputação teriam como destinatários sujeitos transcendentalmente livres.

A segunda observação de Esteves tem a ver com a questão da ambigüidade da liberdade, ambigüidade esta que, segundo Allison, seria encontrada tanto na Dialética quanto no Cânon. Allison afirma que tal ambiguidade se deve a duas versões incompatibilistas da liberdade prática e não entre uma versão compatibilista e outra incompatibilista, como pensava Beck e outros. O problema, segundo Esteves, é que no momento de definir em que consiste esta liberdade em termos incompatibilistas, Allison se mostra extremamente confuso quanto ao que entende por incompatibilismo. Esteves ressalta ainda que, como Kant define a vontade humana - seja na Dialética, seja no Cânon - como um arbitrium sensitivum liberum, como um poder que pertence a seres racionais, sensivelmente afetados mas não determinados, “[...] é forçoso

concluir que, na realidade, não se trata de dois conceitos de liberdade prática distintos” (ESTEVES, 2009, p.60).

Segundo Esteves, Allison teria herdado o conceito de ambigüidade de Carnois, o qual, conforme já observamos anteriormente, pensa a liberdade prática numa posição intermediária entre a natureza - na qual de alguma maneira está inserida - e a liberdade transcendental, que, em última instância, é somente uma ideia reguladora e problemática. Uma liberdade assim constituída seria, para Carnois, uma liberdade naturalizada e assimilada à causalidade natural. Ora, para Esteves, se Kant considerasse a liberdade nesses termos, chamá-la de ambígua não passaria de um eufemismo para um conceito tão relativo e com uma espontaneidade tão limitada. (ESTEVES, 2009, p.61). De fato, diferente de Allison, em virtude desta ambigüidade da liberdade prática, Carnois vê justamente uma contradição entre a abordagem do Cânon e da Dialética, já que no Cânon ela estaria subsumida na causalidade natural. Já Allison, tentando uma conciliação entre ambas as abordagens, pensa esta liberdade em termos relativos. Por sua vez, Esteves parece sugerir que a liberdade prática deve ser interpretada como uma propriedade de um agente causal no interior da natureza. Deste modo, Kant não a estaria naturalizando e ela também não seria um conceito ambíguo, já que ela contém o componente da liberdade transcendental. Ela seria muito mais um conceito híbrido – ou um conceito psicológico deste nome, conforme Kant -, num sentido autenticamente incompatibilista e fundado na variante transcendental. Em outros termos, ela seria “[...] um poder de uma substância existente na natureza ou no mundo sensível, por oposição à liberdade transcendental, que é caracterizada, sobretudo no contexto cosmológico, como uma propriedade de uma substância puramente inteligível” (ESTEVES, 2009, p. 61).

Conectado com este ponto, Esteves tece considerações sobre aquele em que Allison - ao tentar explicar a passagem do Cânon em que Kant afirma que a liberdade pode ser provada por experiência - se utiliza do texto da Dialética no qual Kant expressa que o conceito psicológico deste nome é em grade parte empírico, ainda que inclua o elemento transcendental como não-empírico. Assim, Kant enfatizaria o elemento transcendental na Dialética e o empírico no Cânon, sendo que este último consistiria na experiência de uma capacidade que pode ser só parcialmente e não totalmente compreendida em termos empíricos. Assim, teríamos a experiência de um poder de dominar as impressões que incidem sobre nossa capacidade de desejar mediante o que é útil ou prejudicial. Ora, comenta Esteves,

Allison confunde as notas empíricas constituintes do conceito psicológico da liberdade prática, a saber, os desejos e inclinações dados, com a experiência interna de poder controlá-los. E, o que é pior, Allison não se dá conta de que, se fosse a esse tipo de experiência que Kant estivesse se referindo como fundamento de prova da liberdade prática, então, Guéroult teria razão quando se refere a um ato psicológico de apreensão imediata da liberdade prática. Além disso, é quase desnecessário acrescentar que tal liberdade estaria longe de ser uma liberdade incompatibilista, diferentemente do que presume Allison. (ESTEVES, 2009, p. 62). No que tange à ambigüidade do conceito de liberdade prática, Allison se questiona como seria possível que, no Cânon, tal liberdade exerça uma autêntica causalidade, já que ela não seria independente de causas determinantes naturais. Ele dirá então que esta dependência da razão, em relação ao mundo sensível, é uma dependência não-causal em que a vontade exige um estímulo qualquer para disparar a sua causalidade, de modo que o móbil da ação seria dado pela natureza, mas a regra pela razão. Assim, teríamos uma causalidade limitada, por parte da razão, e uma liberdade prática com independência relativa. Acerca desta tese, Esteves faz duas considerações: primeira, que Allison muito apressadamente conclui tratar-se de uma moral heterônoma;17 segunda, e mais importante, interessa a Esteves saber em que medida esta liberdade prática é considerada incompatibilista por Allison. Como ele observa, por um lado Allison não quer que nenhum móbil sensível torne necessária uma ação da razão - que é portadora da liberdade prática. Mas, por outro lado, quando um agente executa ou mesmo omite uma ação, ele o faz necessariamente por meio de um estímulo sensível qualquer, de modo que este estímulo torna-se uma condição imprescindível (condição sine qua non) para que determinada ação aconteça, pois a razão, por si só, não poderia mobilizar a vontade para

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Em virtude de que foge aos nossos propósitos, não vamos tratar da posição de Esteves no tocante à moralidade do cânon. Para uma melhor compreensão deste assunto, ver texto de Pavão em que ele faz alguns questionamentos a Esteves que pensa não haver heteronomia no Cânon (PAVÃO, 2009, p.121-30). No início do texto de Esteves (que estudaremos melhor na sequência) ele também expõe duas razões para expressar que a teoria da motivação moral no Cânon não é pré-crítica (ESTEVES, 2009, p. 43-5).

agir. O problema desta forma de liberdade prática é que um agente sempre será dependente de um estímulo sensível para levar a cabo sua ação. Isto significa que qualquer possibilidade dele pensar uma liberdade contra-causal estaria vedada. E uma liberdade nesses termos é o que se exige de uma ação racional no verdadeiro sentido incompatibilista, isto é, uma liberdade em termos absolutos, com total independência para iniciar uma nova série de fenômenos. Por sua vez, tudo a que chega Allison é a uma liberdade relativa ou mesmo comparativa, mas não a uma liberdade incompatibilista, de modo que a afirmação kantiana, de que a supressão da liberdade transcendental aniquilaria toda a liberdade prática, é procedente e só faz sentido quando aplicada a um conceito de liberdade genuinamente incompatibilista. Por isso, conclui Esteves, há uma falta de clareza por parte de Allison quanto ao que significa liberdade em sentido incompatibilista na interpretação da liberdade prática (ESTEVES, 2009, p. 63-4).

A partir dessas considerações de Esteves, podemos antever nas entrelinhas de suas observações que o seu posicionamento é bem divergente daquele de Allison. Assim como Allison, ele supõe encontrar uma solução para a suposta incompatibilidade entre o Cânon e a Dialética, porém Esteves julga que seu conceito de liberdade prática é genuinamente incompatibilista, embora sua proposta seja bastante “caritativa” ao próprio Kant.

4.5. JULIO ESTEVES: A COMPATIBILIDADE ENTRE CÂNON E