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Agora... casas

A comunidade Tapiira foi fundada em 1987. Antes disso, havia poucas pessoas morando onde hoje encontramos a maior comunidade do Parque Nacional do Jaú. A grande maioria das pessoas que hoje estão reunidas em torno das comunidades do parque, até então, morava em lagos e igarapés, perto das picadas de seringa, balata e sorva - elementos da mata que constituíam a principal atividade econômica dos moradores da região até a década de 80 aproximadamente. A seringa, como muitos trabalhos demonstram7, foi durante muito

tempo a maior fonte de subsistência daquela população, constituindo e construindo o que dizemos ser o “modo de vida ribeirinho”. “Naquele tempo” - como eles costumam dizer - ou seja, no tempo em que viviam da seringa, era muito difícil a sobrevivência por três motivos principais: 1) quem vive do extrativismo da seringa não tem casa. Vive embrenhado no interior da mata, constrói um “tapirizinho” – que é basicamente um “puxadinho” de palha, em terra batida - e vive à mercê das intempéries do tempo e da floresta, junto com toda a família8; 2) além disso, é uma vida muito solitária que, embora seja apreciada por algumas

7 Neste caso recomendo fortemente SCHMINK, Marianne; WOOD, Charles H. (1992). Contested Frontiers in

pessoas, constitui um forte motivo para que boa parte se aglutinasse em localidades ou comunidades; 3) não havia nenhum tipo de acesso a serviços como escola, comunicação via radiofonia e posto de saúde; 4) para finalizar, os meios de transporte naquela época eram extremamente raros, já que os patrões de seringa só voltavam ao rio de seis em seis meses, quando o período do fabrico da seringa já havia terminado.

Por outro lado, os moradores do Tapiira citaram as seguintes vantagens de se morar em comunidades: a) a possibilidade das crianças estudarem na escola; b) a possibilidade de formação de um posto de saúde, com medicamentos sendo enviados pela prefeitura e formação de um agente de saúde comunitário; c) a possibilidade de formação de um centro (ou sede) comunitário (a), geralmente munido (a) de televisão e motor de luz; d) construção de casas que possam ser mais resistentes às intempéries e que sejam fixas, i.é., que não impliquem mudanças freqüentes, como era o caso das “colocações” de seringa; e e) a sociabilidade permitida pela vida em comunidade que, se por um lado propicia a fofoca, por outros, permite a prática de ajuris9, a troca de experiências sobre vários assuntos da vida

(trabalho, relação amorosa, filhos, etc) e a solidariedade entre vizinhos e parentes.

Uma das razões principais para a formação de comunidades, de acordo com relatos dos moradores, foi a busca pelo acesso a serviços sociais. Através da demanda conjunta, permitida e construída pela formação de comunidades, os moradores tinham maior respaldo junto às prefeituras responsáveis pelo município em que estavam localizados. É importante ressaltar, no entanto, que no caso do Tapiira - e acredito que nas outras comunidades ao longo do rio também tenha sido assim – a formação da comunidade foi resultado da mobilização dos próprios moradores que reivindicavam uma escola para as crianças da região. Não é que se houvessem famílias morando numa mesma área, a prefeitura os presenteava com regalias civilizatórias. Foram os próprios moradores que sentiram necessidade de receber os serviços aos quais têm direito, como eleitores e cidadãos, e que

9 Ajuris são práticas coletivas que servem para realizar alguma tarefa em conjunto para fins particulares. Uma

família convoca o ajuri, seja para roçar, para derrubar ou para plantar a mandioca, e oferece comida para as pessoas que forem convidadas a ajudar, tanto na merenda (antes do trabalho) quanto para o almoço (depois do trabalho da parte da manhã). Geralmente a comida oferecida é peixe frito, cabeçudo batido, feijão e arroz para merenda e para o almoço. Cada pessoa leva o seu instrumento de trabalho, seja ele a enxada ou o terçado – dependendo da atividade que será realizada. A prática do ajuri passou a ocorrer após a constituição da comunidade, pois antes as pessoas moravam afastadas e tanto o ajuri, como outras formas de sociabilidade que atualmente ocorrem na comunidade, antes eram inviáveis.

por eles se uniram e reivindicaram. A história da criação do Tapiira será descrita em detalhes a seguir.

A formação de boa parte das comunidades do Rio Unini coincide com o fim do ciclo da borracha. Foi pela desvalorização do produto brasileiro, a partir da concorrência com a borracha produzida na Malásia, que os “patrões de seringa” deixaram de ir ao rio e fornecer os bens de subsistência, tal como sal, açúcar, café e tabaco às pessoas que deles dependiam para trocar os produtos extraídos da floresta pelos que eram produzidos na cidade. Como não existia mais mercado externo demandando o produto brasileiro, a extração da seringa não era mais necessária e os regatões deixaram de ir ao rio. Os seringueiros, por seu turno, não tinham mais por que continuar com suas atividades de extração de seringa e, por outro lado, precisavam arranjar outro modo de subsistência. Como não tinham mais acesso a alimentos básicos, perceberam que era necessário sair do “interior” – de lagos e igarapés – e buscar recursos na beira dos rios principais, onde existia maior possibilidade de garantir o básico para a alimentação, ficando eles à deriva da passagem dos parcos regatões que ainda circulavam por lá.

Foi justamente neste momento que grande parte dos seringueiros começou a cultivar a mandioca, não tanto para o próprio consumo (o que, na maioria dos casos já era comum, mesmo na época da seringa), e mais para a venda ou troca por rancho. Já que a atividade que praticavam já não era mais rentável, ou, melhor dizendo, não encontrava mais demanda e, portanto, não permitia a troca por produtos comercializados, eles começaram a produzir farinha de mandioca – produto que foi bem recebido pelos regatões. Desta forma, eles passaram de uma atividade eminentemente extrativista, para uma atividade agrícola, também voltada à subsistência. Vale dizer, entendemos subsistência como qualquer atividade que é considerada pelos moradores como aquela da qual dependem para a aquisição de rancho ou “artigos de estiva”, como: açúcar, café, arroz, óleo e sal.

Evidentemente, a passagem da seringa à farinha não ocorreu de forma clara e simultânea para todas as pessoas que moravam na região. Aliás, ainda hoje, vemos pessoas que vivem basicamente do extrativismo, seja da seringa, do cipó ou da castanha. De qualquer maneira,

podemos afirmar de forma segura que o fim do ciclo da borracha foi o grande responsável pelo aumento da produção de farinha de mandioca no rio Unini. A comunidade estudada ilustra muito bem esta afirmação.

De acordo com as histórias de vida recolhidas no Tapiira, praticamente todas as pessoas que estavam com idade ativa na época do ciclo da borracha, trabalharam, ou com balata, ou com sova, ou com seringa. As exceções, em grande medida, eram pessoas que trabalhavam com atividades que subsidiavam a extração da seringa, como regatear no rio ou mesmo, vivendo em Manaus, trabalhando em firmas de beneficiamento da borracha. Algumas pessoas que na época desta pesquisa moravam na comunidade e que vieram de outras regiões do Estado do Amazonas, como do Purus, do Juruá, ou mesmo de outras regiões do rio Unini relatam que também trabalharam com a seringa durante o período em que havia comprador para o produto. Outras, ainda, contam que, durante este período, estavam em Manaus, estudando, trabalhando em casa de família como empregada doméstica, ou prestando serviços de pedreiro. Houve uma pessoa que relatou ter participado do garimpo do ouro, trabalhando como cozinheira. Freqüentemente, as pessoas cambiavam entre uma atividade e outra, tendo sido, por exemplo, seringueiro, regatão e pedreiro. Atualmente, na comunidade estudada, todas as pessoas trabalham primordialmente com o cultivo da mandioca e o feitio da farinha, ainda que alguns tenham outras atividades que complementem a renda familiar10.

Os relatos sobre a vida da seringa demonstram uma certa ambigüidade em relação à vida da roça. Ao mesmo tempo em que frisam as dificuldades e a falta de mantimentos que a primeira onerava, muitos relatos assumem um certo saudosismo pelo trabalho da seringa, que seria menos “pesado” do que o da roça. Segundo eles, enquanto a renda gerada pela venda da farinha lhes permite comprar “nossas coisinhas”, a renda gerada pela seringa não permitia nem a aquisição de roupas para o uso cotidiano. Neste sentido, ainda que o trabalho da roça seja reconhecido como mais penoso (desde o processo de derrubada da mata ou capoeira, passando pelo plantio, pela colheita, pelo transporte à casa de farinha, até o feitio mesmo da farinha, sobretudo o processo de torra) ele gera maior renda.

Outro fator importante no que diz respeito à organização social do grupo é que, enquanto a extração da seringa podia ser feita por uma só pessoa, e não mais que isso, o cultivo da

mandioca e produção da farinha são atividades que permitem o trabalho em grupo. E assim, o trabalho que passou de um local isolado e afastado na época da seringa para um local de convívio e vizinhança com o cultivo da mandioca, reflete também uma forma de trabalho que ora era isolada e solitária, para um que possibilita a ajuda comunitária e as relações de reciprocidades através dos ajuris11.

Uma das características do cultivo da mandioca e produção da farinha e que a seringa demonstrou com muito mais veemência, até agora, são as influências do mercado sob a demanda do produto. Enquanto no caso da seringa a atividade foi praticamente extinta por conta da produção estrangeira do produto, no caso da farinha os moradores convivem com uma oscilação de seu preço muito grande que, segundo eles, tem a ver com a sua baixa ou alta produção em outros locais do estado sem, no entanto, extinguir a atividade. Para se ter uma noção, durante a viagem que realizamos em fevereiro de 2003, para o pré-campo desta pesquisa, o preço da farinha girava em torno dos R$50,00/saca e, no período mais recente em que estivemos, isto é, até maio de 2005, o produto não conseguia ser vendido por mais de R$35,00/saca12.