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Do mito à estrutura: uma via para situar o mito negro

3 DO MITO À FANTASIA: UMA LEITURA DO RACISMO

A fim de compreendermos esse enraizamento do mito no contexto de nossa investigação, tornou-se necessário situar o interesse da Psicanálise pelo mito. Segundo Japiassu (1998), a posição vigorosa de Freud em favor da razão e dos procedimentos racionais e discursivos que o conduzem ao conhecimento científico não o levou a descartar a importância do mito. Em seu sentido aparente, articula múltiplas forças psíquicas, mas também “constitui um meio de estruturar e de levar à plena consciência a parte de ‘algo’ que não se integra nas estruturas conceituais” (p. 175).

Compreendendo que a construção mítica está relacionada a um evento distante e esquecido, Japiassu (1998) considera que foi a partir da constatação da persistência de um sentimento que foi transmitido de geração a geração que Freud identificou a história da castração. E, com o retorno à história inaugural da religião, confirmou-se que sobre esse sentimento os homens não guardavam dele a menor lembrança.

Ao afirmar que “o mito aparece como um relato de uma descontinuidade acontecimental exprimindo a continuidade do desejo” (p. 175), Japiassu (1998) considera que o mito individual, a representação pulsional do sujeito, seria uma história do desejo possuindo uma continuidade fantasmática, apesar de uma descontinuidade acontecimental.

Isso nos parece correr em direções opostas, como não articuláveis. Entretanto, o autor considera que mito ou fantasia se fundam num acontecimento distante, esquecido. Um fator que também é considerado por Lévi-Strauss, que reafirma seu valor intrínseco provindo de acontecimentos desenrolados no tempo e por formarem uma estrutura permanente que se relaciona com o passado e com o futuro.

Para Japiassu (1998), o mito de Édipo inaugura o pensamento psicanalítico de Freud, levando-o a abandonar a realidade do traumatismo sexual para construir a realidade psíquica (fantasmática) de que o mito constitui o modelo. Mas, ao abandonar a busca da realidade acontecimental e se interessar pela estrutura fantasmática, “o que Freud conserva do mito é, sobretudo, seu valor exemplar para explicar a origem da sexualidade humana” (p. 176). De acordo com o autor, Freud se preocupou em designar o fundo psicológico do simbolismo mítico, pois para ele é como se o mito cobrisse toda a extensão do psiquismo elucidado pela psicologia profunda, como se todo ser humano estivesse engajado no mito.

Por esse motivo, retomamos a concepção do mito, tal como Lévi-Strauss (2008) o compreende em relação à linguagem no âmbito do fenômeno social e à língua enquanto

elaboração coletiva, além de salientar que as sociedades expressam em seus mitos sentimentos fundamentais como amor, ódio ou vingança. Nesse sentido, o autor entende que os mitos são tentativas de explicação de fenômenos de difícil compreensão. Mas para o momento atual e para o problema que aqui tratamos, é preciso ir além da explicação dada pelo mito.

Segundo Lévi-Strauss (2008) é pela palavra que conhecemos o mito e este pertence ao discurso. É definido por um sistema temporal e seu valor intrínseco é uma estrutura permanente que decorre dos eventos e acontecimentos. Além disso, o mito compreende uma estrutura dupla, histórica e a-histórica, sendo isso o que lhe dá pertencimento simultâneo ao âmbito da fala e da língua, além de uma originalidade com o que o mito se apresenta em relação aos fatos linguísticos. Dessa maneira, o mito pode ser definido como modos de discurso, sendo uma linguagem, trabalhando em um nível muito elevado, em que o sentido consegue se descolar do fundamento linguístico.

Assim, vemos o movimento que Lévi-Strauss (2008) encontra no interior do mito, distanciando do sentido, para afirmar que se o mito possui sentido e pertence à ordem da linguagem, ele também possui propriedades específicas. Como todo ser linguístico, é formado de unidades constitutivas, tal como aquelas que intervêm na estrutura da língua.

Como cada forma difere daquela que a precede por um grau mais alto de complexidade, esses elementos próprios do mito serão chamados de grandes unidades constitutivas – os mitemas.

Lévi-Strauss (2008) define os mitemas como não sendo assimiláveis, pois situam-se num nível mais elevado, mas sem estes o mito não se distinguiria de qualquer forma de discurso. Cada grande unidade constitutiva tem a natureza de uma relação e todas as unidades constitutivas consistem em relações. Para marcar a diferença entre essas grandes unidades constitutivas e outras, considera que “as verdadeiras unidades constitutivas do mito não são as relações isoladas, mas feixes de relações, e é unicamente na forma de combinações desses feixes que as unidades constitutivas adquirem uma função significante” (p. 227).

A partir dessa condição, Lévi-Strauss (2008) propõe que um mito não pode ser interpretado em um só nível, uma vez que, não existindo explicação privilegiada, encontramos vários níveis de explicação e, por essa razão, não devemos interpretá-lo isoladamente, mas em relação com outros mitos. E esse será um exercício a ser feito a fim de não nos determos apenas no mito sobre o negro, mas compreendê-lo em relação à

branquitude. Ela é definida por Schucman (2012) “como uma construção sócio-histórica produzida pela ideia falaciosa de superioridade racial branca e que resulta, nas sociedades estruturadas pelo racismo, em uma posição em que os sujeitos identificados como brancos adquirem privilégios simbólicos e materiais em relação aos não brancos” (p. 7).

A esse aspecto interpretativo e relacional do mito, Lévi-Strauss (2008) também ressalta que os mitos se transformam de maneira mútua, numa relação que une diferentes planos. Mas as transformações nele operadas afetam a sua armadura, o seu código, a sua mensagem, sem que deixe de existir como tal. Assim, restam duas vias abertas: a da elaboração romanesca e a da reutilização para fins de legitimação histórica. E essa nos parece ter sido a constante de um movimento que procura desfazer a face “romanesca” ou mesmo

“caricatural” em torno do mito negro, a fim de conferir a ele o seu lugar na história, ao mesmo tempo em que provoca rupturas naquilo que se denominou “mito” da democracia racial brasileira, confirmando que um não pode ser pensado sem o outro.

Desse modo, Lévi-Strauss (2008) compreende que há um interesse da Psicanálise em ultrapassar as explicações cosmológicas em relação a problemas de difícil explicação.

Algumas situações já não poderiam mais ser respondidas do mesmo jeito ou permanecerem sem resposta, tendo em vista que cada época se transforma e transforma as questões, as respostas e a maneira de tratá-las.

Considerando que o mito é expressão de algo no interior do discurso, o contexto de nossa investigação partiu da constituição do mito fundante da modernidade. E com a associação entre o colonialismo e a escravidão, produziu-se um processo de inferiorização, animalização e transformação do negro em coisa, a fim de justificar sua escravização. Com o incremento do racismo como tecnologia de dominação, a emergência do discurso em relação ao mito negro permanecerá cristalizando relações de hierarquia racial, segregação, exclusão e morte, sem as quais os privilégios do branqueamento não se sustentariam.

Se a Psicanálise vai além da explicação do mito, Fingermann (2005) considera que a lógica significante é o que permite escrever o que os mitos freudianos explicitaram. Segundo a autora, o mito de Édipo explicitou as pulsões e seus destinos, enquanto em Totem e tabu, pode-se ler as fórmulas e matemas lacanianos como os “discursos” e as fórmulas da sexuação.

A essa proposição, acrescentamos as possibilidades a serem exploradas em Moisés e o

monoteísmo sobre a dimensão da “verdade histórica”, do estrangeiro, da diferença e da identificação, a fim de discutirmos o mito.

Mas se há algo a ser explicitado no mito, Viltard (1996) identifica que o mito ocorre no lugar onde, no sistema simbólico, o gozo sexual não é em lugar algum simbolizado e nem simbolizável. A partir dessa indicação, inferimos que se trata de uma explicitação do gozo.

Isso nos leva a verificar como a Psicanálise lacaniana situa o lugar do gozo no contexto do mito.

O recurso à linguagem e a relação do homem com ela permite a Lacan (1953/2008) afirmar que a experiência analítica implica sempre em seu interior à constituição de uma verdade, mas como ela não pode ser dita, existe a possibilidade de que se expresse através de uma fórmula essencial que se denomina mito.

O mito é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição da verdade, porque a definição da verdade só pode se apoiar sobre si mesma, e é na medida em que a fala progride que ela a constitui. A fala não pode apreender a si própria, nem apreender o movimento de acesso à verdade como uma verdade objetiva. Pode apenas exprimi-la — e isso de forma mítica.

Nesse sentido é que se pode dizer que aquilo em que a teoria analítica concretiza a relação intersubjetiva, e que é o complexo de Édipo, tem valor de mito. (Lacan, 1953/2008, p. 8).

Além do valor de mito que tem o Complexo de Édipo, Lacan (1953/2008) também considera que esse valor se encontra em Totem e tabu, mas em Moisés deve-se falar de uma verdade outra, construída, não pensada em seu valor de mito, advertindo-nos ainda que não se deve ter pressa frente ao movimento de acesso à verdade.

O outro aspecto destacado por Lacan (1953/2008) no mito é a existência de um certo número de formações que se originam do vivido e da experiência, encontradas nos sujeitos neuróticos e que necessitam recorrer ou referir ao mito edípico, da mesma forma que outras formações recorrem ao mito do pai primevo e a Moisés, permitindo-lhe verificar que este tipo de formações se encontra no centro da experiência analítica.

A definição de mito para Lacan (1953/2008) compreende a representação objetivada de um gesto que se expressa de maneira imaginária nas relações fundamentais do ser humano numa determinada época. Isso o leva a dizer que o mito se manifesta em nível social, latente ou patente, virtual ou realizado, pleno ou vazio de seu sentido, reduzido à ideia de uma

mitologia. Por isso assegura que podemos encontrar na vida do neurótico todo tipo de manifestação que forma parte deste esquema, podendo-se dizer que se trata de um mito.

Há ainda no mito o que Lacan (1953/2008) denomina sua constelação original, ou seja, as condições de que se vale o sujeito para constituir o seu mito: seu nascimento, seu destino, sua pré-história, suas relações familiares. Mas essa constituição não se dá sem o aspecto fantasmático, o cenário imaginário, a partir do qual o argumento fantasmático aparece como um pequeno drama e, por isso, se denomina mito individual do neurótico.

Essa conceituação permite identificar a impossibilidade de transmissão de uma verdade objetiva. Porém, esse efeito de transmissão de que o mito é portador permite-nos insistir em seu valor para a nossa investigação a partir do contexto colonial e escravagista, a fim verificar quais consequências essa transmissão mítica produziu na definição de lugares e posições sociais de sujeitos negros e brancos na sociedade brasileira.

Em continuidade, verificamos que, para Lacan (1956-57/1995), o que se chama mito, seja ele religioso ou folclórico, em qualquer etapa de seu legado que se o considere, apresenta-se como uma narrativa. Porém, muito se pode dizer sobre essa narrativa. Além de tomá-la sob diferentes aspectos estruturais, assim como tomá-la sob a forma literária, o mito é muito distinto da narrativa, pois demonstra certas constâncias que não estão absolutamente submetidas à invenção subjetiva.

Segundo Lacan (1956-57/1995), o mito tem um caráter de ficção, mas uma ficção que tem uma estabilidade que não a torna maleável às modificações que lhe podem ser trazidas.

Assim, toda modificação implica, por sua vez, uma outra, invariavelmente a noção de uma estrutura e essa ficção mantém uma relação singular com alguma coisa que está sempre implicada por trás dela, da qual ela é portadora. Isto é, a mensagem formalmente indicada, a saber, a verdade. “Aí está uma coisa que não está separada do mito, pois a verdade tem uma estrutura de ficção” (p. 259).

Além disso, Lacan (1956-57/1995) considera que o mito possui um caráter inesgotável, estando mais próximo da estrutura que de todo conteúdo. Dessa maneira, ao compreender os mitos, em sua ficção, ressalta que estes não visam a origem individual do homem, mas à sua origem específica, sua criação.

Ao identificar uma relação de contiguidade dos mitos com a criação mítica infantil, Lacan (1956-57/1995) afirma que a formalização isola nos mitos elementos ou unidades cujo

funcionamento estrutural é, comparável, àquele isolado pela linguística, a essas unidades denominadas mitemas. São esses mitemas que permitem ordenar os elementos de um mito, pois o alinhamento que permitem construir forma a sequência do mito, assim como o retorno destes elementos obriga a ordená-los, não numa só linha, mas numa superposição de linhas dispostas como numa partitura. Assim,

o mito se lê num sentido, mas seu sentido, ou sua compreensão, surge à superposição dos elementos analógicos que voltam sob formas diversas, a cada vez transformadas, sem dúvida para realizar um certo percurso que vai do ponto de partida ao ponto de chegada, e que faz com que algo que no começo parecia irredutível se integre no sistema. (Lacan, 1956-57/1995, p. 283).

Além dessas condições, Lacan (1960-61/2010) identifica na função do mito as transformações que operam segundo certas regras e que por esse motivo têm um valor revelador. Essas regras demonstram a mesma espécie de fecundidade que as matemáticas e reafirma que é disso que se trata na elucidação dos mitos. Estes são figuras desenvolvidas que são referíveis, não à linguagem, mas à implicação do sujeito capturado na linguagem, no jogo da fala.

Esse aspecto estrutural do mito será discutido por Lacan (1970/2003), pois sua compreensão é de que seguir a estrutura é certificar-se do efeito da linguagem. Essa é a sua tese central – o inconsciente estruturado como uma linguagem – e que lhe permite afirmar que a linguagem se produz a partir de relações tiradas do real. Dessa maneira, se Lévi-Strauss diz que o mito é intraduzível. Para Lacan, isso significa que não importa em que língua sejam colhidos. Os mitos são sempre igualmente analisáveis, por se teorizarem a partir das grandes unidades pelas quais uma “mitologização” definitiva os articula.

Longe de constituir uma teoria explicativa do mito, dado que nem a explicação é a sua condição essencial, para a Psicanálise, as unidades constitutivas do mito – mitemas – representam a via pela qual se pode chegar mais perto do real. Não se trata de criar um conjunto de explicações, mas fazer uso do recurso interpretativo fornecido por essas unidades constitutivas, dado que esses mitemas são mais próximos do real.

Assim, a concepção do mito para a Psicanálise permite-nos formular interpretações acerca do mito negro, bem como da ideologia do branqueamento, do racismo e do genocídio da juventude negra. Interpretações que tocam esse ponto indizível, irrepresentável do real a que fomos levados pela experiência da colonização, da escravidão e do racismo.

A confirmação dessa concepção do mito que extrapola a explicação encontra suporte naquilo que Mbembe (2018b) identifica ao longo da era moderna quanto às duas noções –

“África” e “negro” – que foram mobilizadas em processos de fabricação de sujeitos raciais.

A execração é a marca preponderante desse processo, cujo atributo consiste em pertencer a uma humanidade à parte, execrada, relegada à condição de dejeto humano. O autor afirma que, como recursos míticos, a África e o negro não servem apenas para sustentar um limite insustentável, mas também por constituírem duas categorias marcadas pela ambivalência, pela repulsa e pelo incisivo gozo perverso.

Se há algo que não é passível de explicação, mas requer uma interpretação, podemos considerar o que propõe Mbembe (2018b) sobre a redução do negro ao espectro da humanidade ao se desprender da forma-escravo. A condição de espectro só é conferida em uma transformação pela destruição. Portanto, o mito sobre o negro não é uma explicação sobre a constituição do negro, mas permite uma interpretação sobre essa representação que se criou em relação ao negro. Adiante, continuaremos essa análise interpretativa com os mitos psicanalíticos.

3.2 O mito em Psicanálise: uma chave de leitura para a escravidão, o racismo e o