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1. Da educação e formação de adultos enquanto roteiro (de desenvolvimento)

1.3. Do não-emprego ao desenvolvimento: uma viagem imperdível

Sobre o desaparecimento do trabalho, se muito haveria a dizer [que muito tem sido dito (vd., por exemplo, de Masi, 1999; Imaginário, 2001c; Imaginário et al., 1998; Méda, 1999; Rifkin, 1997)], aqui apenas se relançarão, reescrevendo, alguns tópicos de discussão que se crêem essenciais à integração crítica do objecto em análise.

Em primeiro lugar, cabe referir que o problema não é totalmente retratado se só se analisar as situações de falta de emprego — e, portanto, de desemprego —, esquecendo uma infinidade de outras formas de não-emprego que configuram, todas elas, “situações de exclusão social ou, pelo menos, de risco de exclusão [,] em que o vínculo com o sistema social designado por ‘mercado de trabalho’ se encontra quebrado ou é frágil” (Costa, 1998: 58). De facto, como bem lembra Bruto da Costa, o “quadro só se completa quando o desemprego é analisado a par com um conjunto de outras situações de emprego precário, tais como o emprego com contrato a termo, a tempo parcial involuntário, sem contrato (o chamado sistema do ‘recibo verde’), de baixos salários, com más condições de trabalho e segurança, etc.” (p. 59). Também Machado Pais alerta para as fragilidades do mercado de trabalho actual: “A vivência precária do emprego e do trabalho envolve modalidades múltiplas de ‘luta pela vida’ que compreendem trabalho doméstico, eventual, temporário, parcial, oculto ou ilegal, pluri-emprego, formas múltiplas de desenrascanço a que a linguagem comum se refere com as sugestivas expressões de ganchos, tachos e biscates” (Pais, 2001: 7). Ora, se o mercado de trabalho é um arco-íris de segmentações, do branco ao negro, passando pelo rosa ou

azul (op. cit.), no caso de muitos aprendentes45, ele é apenas sem cor! É o mercado da subsidiodependência, do “papa-cursos”46, da sobrevivência e, novamente, das

exclusões.

Dito isto, convirá fundamentar a adjectivação da viagem a realizar entre o desemprego e o desenvolvimento. É imperdível, julga-se, por uma razão de sobrevivência individual e colectiva, já que “manter vivos os desempregados” (Silva, 1984, in Mendanha, 1994: 101) é mesmo o problema.47 A solução poderá passar por deixá-los morrer ou alimentá- los, como refere Agostinho da Silva (op. cit.), ou proporcionar-lhes oportunidades de desenvolvimento multidimensional (cognitivo, afectivo e comportamental…) que lhes permita aceder a outras oportunidades de educação e formação, desenvolver as competências-chave necessárias ao exercício dos diversos papéis (pessoais, sociais e vocacionais) e, afinal, exercer controlo sobre as próprias vidas e sobre o meio envolvente.

Não se trata, de facto, de deixá-los morrer, arremessá-los para situações-limite de exclusão social, cortar-lhes (ou deixar que se rompam, entrem em ruptura e, até,

45 Neste texto utilizar-se-á “preferencialmente o conceito de ‘aprendente’, que se afigura traduzir mais

fidedignamente a situação do (e a atitude a promover no) adulto em aprendizagem e, justamente, na perspectiva da aprendizagem ao longo da vida.” (Imaginário, 2001a: 3)

46 Expressão utilizada por uma aprendente de um curso da UniNorte traduzindo a necessidade de, no

futuro, (tentarem) fazer um curso após outro!

47 Recuperando as palavras de Balzac, “esse é o problema que se propõem resolver neste instante [os

milhares de desempregados] que se encontram [nessa] situação. [Imagine-se], pois, os esforços que [terão] de fazer e o encarniçamento do combate… Terão de se comer uns aos outros, como aranhas num pote, visto não [haver tantos] lugares disponíveis. [Terão de] penetrar nessa massa de homens como uma bala de canhão ou insinuar-se nela como uma peste.” (Balzac, 1834/1973: 122-123)

desliguem irreversivelmente!?) os vínculos à sociedade, o “acesso a um conjunto de sistemas sociais básicos” e, portanto, negar-lhes “o exercício pleno da cidadania” (Costa, 1998: 14)? Com efeito, “estar desempregado não é só estar privado da fonte normal de rendimento. Também é perder um dos vínculos mais importantes de ligação à sociedade, à rede de relações interpessoais que o emprego proporciona e, ainda, ao sentimento, que do mesmo advém, de participar na vida económica do país.” (p. 57)

Apter (1997) dizia que as “nossas sociedades desenvolvidas, prósperas e democráticas, [criaram] um novo grupo dos ‘funcionalmente supérfluos’, dos que não servem para nada, dos excluídos, no verdadeiro sentido da palavra. Os que ‘apenas têm presente’ e para os quais os sistemas de aprendizagem, que exigem a noção de futuro, não fazem sentido” (Imaginário et al., 1998: 49). De facto, ainda que todos os adultos sejam portadores de saberes e de competências, em alguns casos eles são obsolescentes e/ou desajustados, de modo que não satisfazem “os perfis dos profissionais pretendidos pelos empregadores [, existindo em alguns Centros de Emprego] mais de quatro centenas de ofertas de emprego por satisfazer” (Imaginário et al., 1998: 133). Tal constatação implica considerar estes desempregados — durante longos ou muito longos períodos de tempo (a menos que algo seja feito) — arredados de oportunidades de emprego, de participação cívica, de usufruto de uma vida com condições aceitáveis.48

Por outro lado, não estaremos a “alimentá-los”, tornando-os dependentes de subsídios que estão longe de estimular a acção e, ainda mais, a autonomia, mas que apenas

48 E o círculo torna-se vicioso, na medida em que, por um lado, e como dizia Dante, “o nosso saber/ é

extinto depois daquele momento em que/ nos for fechada a porta do futuro” (Alighieri, 1318/1991: 65) e, por outro, a ausência de saber (ao menos reconhecido) parece contribuir decisivamente para que se feche a porta do “futuro”!

favorecem a exclusão “da possibilidade de serem socialmente úteis” (Azevedo, 1999: 30)? E se as elevadas e crescentes taxas “oficiais” de desemprego demonstram a gravidade do problema, não pode sonegar-se que a essas acresce o “número elevado dos desempregados não registados (‘escondidos’ ou, na terminologia mais comum, ‘ocultos’).” (Imaginário et al., 1998: 58)

Então, se queremos “dar-lhes de comer”, não seria mais útil, como alguém disse, ensiná-los antes a pescar, proporcionando-lhes percursos flexíveis, ajustados e integrados de aprendizagem, de valorização pessoal, de reconhecimento dos adquiridos, de escolarização, de qualificação profissional, de aquisição ou consolidação “das competências básicas [e instrumentais] sobre as quais seja exequível, a curto prazo, construir novas capacidades, atitudes e comportamentos” (Imaginário et al., 1998: 60)? Mesmo sabendo que nenhum certificado, diploma ou carteira pessoal de competências será, de todo, uma “garantia”, mas certos de que a sua inexistência aumenta, sobremaneira, as probabilidades de insucesso, as dificuldades de adaptação (Azevedo, 1999; Imaginário et al., 1998). A certificação constitui “um instrumento dotado de um poder social e económico real, […] que se pode revestir de um alto valor de mercado” (Castro, 1998: 16), não surpreendendo, pois, que “70 por cento dos desempregados inscritos nos Centros de Emprego não [tenham] o 7º. ano de escolaridade. E quase metade não [tenham] o 6º.” (Melo, 2000: 10).

Ganhar-se-á em encarar as proliferantes situações de não-emprego como “acontecimentos de vida que põem em crise (estrutural, funcional, emocional) o sistema pessoal pelo que exigem mudanças, constituindo assim tarefas de desenvolvimento” (Campos, 1993: 7). Tais reorganizações psicológicas justificariam, crê-se, o recurso a

intervenções de diversos tipos, onde se destacariam as ofertas de educação e formação adequadas às necessidades, motivações, interesses, experiências, saberes e competências dos aprendentes adultos. Trata-se, afinal, de uma oportunidade (obrigatória) de desenvolvimento, complexificação, construção, reorganização, coesão, cooperação e, finalmente, de combate à exclusão (Brookfield, 2002a, 2002b; Costa, 1998; OECD, 2000b; Santos, 1998).49

49 Como diria William Shakespeare, a questão põe-se em termos de “ser ou não ser, [de] sofrer os tiros

penetrantes da fortuna injusta, ou opor os braços a essa torrente de calamidades e dar-lhes fim com atrevida resistência” (Shakespeare, 1603/1991: 71).