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3.3 Um novo Brasil seco

3.3.1 Do sertão ao litoral: uma viagem

Até hoje quando se fala em viajar pensamos em conhecer coisas novas, pessoas diferentes, lugares nunca vistos. A busca pelo novo é que estimula a viagem,

pois, ao mesmo tempo em que é possível divertir-se, é igualmente possível se aprender. Na primeira metade do século XX, muitos autores de livros infantis didáticos ou não, recorreram às viagens para abordar os conteúdos e as temáticas exigidas para alcançar o que se acreditava necessário para uma boa formação das crianças. Através das viagens os conteúdos didáticos se tornavam menos pesados, visto que esse artifício permitia sua inserção nas aventuras vividas pelos personagens, ao passo que possibilitava a identificação dos leitores com essas situações (LAJOLO, 1987).

O deslocamento do espaço com as viagens utilizadas como estratégia pedagógica é mais conhecido no Brasil pelas aventuras dos irmãos Carlos e Alfredo em Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manoel Bonfim, em que os personagens cruzam o país à procura do pai, que posteriormente se une as crianças com quem vivencia diversas experiências Brasil afora, conhecendo lugares com economias, culturas e geografias diferentes. A medida em que a viagem vai se desenvolvendo através do olhar observador de seus protagonistas, lições de geografia, higiene, história e civismo vão sendo introduzidas de modo a inculcar nos leitores valores específicos como o amor à pátria, a importância da família, a solidariedade, o respeito, ao mesmo tempo em que é proporcionado às crianças a possibilidade de viajar sem sair do lugar por intermédio da imaginação.

O caráter imaginativo assume papel importante nas obras em que as viagens são recorrentes, pois faz com que o leitor abandone sua rotina cotidiana e os modos corriqueiros de aprendizado. Geralmente as viagens se dão por meio de transportes como trem, avião ou navio, que trazem à tona também a modernidade e que remetem à velocidade dos novos tempos. São esses meios que permitem o cruzamento de diversas terras em um curto espaço de tempo e que promovia a dinamicidade da apresentação das lições.

A narrativa das viagens, às vezes em primeira pessoa e às vezes em terceira, como é o caso de João Pergunta, surge como subterfúgio para que os leitores conheçam e aprendam amar o lugar onde vivem, por esse motivo os caminhos a serem percorridos são aqueles que marcam a identidade de um povo e de um lugar. Em João Pergunta, Newton Craveiro dividiu a viagem em duas partes: uma pelo sertão e outra pelo litoral. É preciso prestar bastante atenção nessa divisão, pois, na primeira edição do livro, não há qualquer menção ao litoral nordestino, era como se o Nordeste fosse composto

apenas pelo sertão. Já na segunda edição publicada pela Cia Melhoramentos, há a inserção de uma nova perspectiva de compreensão dessa região.

Na primeira parte da viagem instituída na lição intitulada Uma viagem de trem, chegado o período de retorno as aulas, João Pergunta volta para a cidade com sua família e amigos que se encontravam a passeio na casa do vovô. Através das janelas do trem “na correria doida em que vae” os meninos admiravam a natureza brasileira passando pela zona agrícola com seus milharais, extensas roças de algodão e os lavradores que paravam o trabalho para ver o trem passar: se a beleza e a bucolidade do campo impressionava os meninos, a velocidade e a modernidade trazidas pelo trem também deslumbrava os sertanejos124. Ao atravessar a zona pastoril, João Pergunta e seus amigos apreciavam as várzeas com seus bois, cavalos e rebanhos de ovelhas a pastar. Viam também os vaqueiros vestidos de couro, as fazendas e os currais.

Em tudo para os meninos o sertão era mais viçoso, mais alegre. A viagem ganha tom de saudade, porque na roça tudo era belo e até a pobreza parecia mais bonita, porque, no final das contas, a verdadeira abundância estava lá, era do campo que partia a riqueza que sustentaria o Brasil: “do mato é que vae tudo para a cidade. Vae o boi, vae o algodão, vae o assucar, vae o feijão, vae a farinha... Se não fosse o mato o que seria das cidades?... Desapareceriam. Não sabe que as cidade vivem é do trabalho dos roceiros?” (CRAVEIRO, 1928, p.35). No entanto, era preciso voltar para a cidade, voltar para a escola para aprender a amar e cuidar do Brasil grande, pois se por um lado os meninos ficavam felizes ao ver tantas plantações e criações pelo sertão, por outro, também lhes causava tristeza ver terras onde:

Não há uma roça, não há uma casa, não há um signal de vida (...)

- Bem diz o vovô que no Brasil ainda há muito por fazer- diz João Pergunta. - É mesmo- acrescenta Zé Pretinho- Para encher tudo isso de roçados e fazenda de gados a gente tem é serviço! (Ibidem, p.34)

O olhar sob as terras desocupadas deixava as crianças tristes e ao mesmo tempo cheias de expectativas, ansiosas para crescer e trabalhar pelo Brasil grande. Os meninos tomavam para si a missão de cuidar e fazer produtivas aquelas léguas de terras órfãs. Olhando para o Brasil pela janela do trem, conversavam com ele que parecia

124 Em pesquisa desenvolvida sobre as memórias da instalação da linha férrea no município do Crato em

1926, ponto final da linha férrea de Baturité, Ana Isabel Ribeiro aponta que a novidade do trem no final do século XIX e início do XX estava estreitamente relacionada à ideia de modernidade. Noção que também implicava na compreensão de que aonde chegassem os trilhos se iniciava uma nova época de progresso, em detrimento da que era finalizada. (CORTEZ, 2008, p.28).

encará-los de volta e dizer: “vocês estão vendo como sou grande e rico? Estão vendo como ainda tenho tantas terras virgens, onde nunca entrou uma enxada? Pois estas terras são de vocês. Tomem conta delas, plantem, encham tudo de vida e fartura. (Ibidem, p.36)

A viagem não terminava ali na janela do trem, mas ganhava continuidade sob outro formato. O amor pelo Brasil se deslocava do real para o mundo da fantasia que conferia ao país o privilégio de ser elemento presente no imaginário das crianças. Depois de tudo que haviam vivenciado, nos sonhos dos meninos o Brasil grande ganhava estatuto de desejo e os pequenos “movendo os lábios com um ar de riso” sonhavam com ele. Desse modo, trabalhar e desenvolver o Brasil deixava de ser tarefa ou missão imposta para se transformar em sonho, com toda a beleza que os sonhos têm.

A lição que se segue a Viagem de Trem é a intitulada O Nordeste Brasileiro, cujo título substituiu o da lição O Brasil Seco da primeira edição. Essa alteração, além de pequenas modificações e alguns termos, é a única transformação significativa, pois amenizava a visão do Nordeste como terra seca, imagem forte na primeira edição do livro. Apesar de Craveiro ter continuado conceituar o Nordeste como a “terra dos caboclos e das secas”, sua definição passou a apresentar maior amplitude com a introdução da lição de nº 9 nomeada Uma viagem por mar.

Essa segunda viagem não ocorre literalmente em um navio ou em algum barco à semelhança do que acontece na viagem realizada por trem. Sua importância consiste menos pelas informações trazidas na lição e mais pelo caminho traçado pelo autor para desenvolvê-la. No início dessa lição, João Pergunta afirma que após a aula sobre o Nordeste Brasileiro125 já não conseguia mais enxergar o Brasil como uma grande extensão de terra imensa e uniforme, mas que o via recortado por regiões diferentes, cada uma com suas particularidades. O Nordeste se afigurava como espaço desafiador ao mesmo tempo que sofredor126, o que fazia João Pergunta desejar cada vez mais conhecer melhor a sua terra.

125 Não é necessário explicar novamente o entendimento de Newton Craveiro sobre o Nordeste. Isso já foi

realizado anteriormente ao explorarmos as quatro características que diferenciam o Nordeste das outras regiões brasileiras, apresentada no primeiro tópico desse capítulo.

126 É interessante que a ambiguidade pela qual se entendia ao Nordeste, se estendia também ao próprio

nordestino. Sobre essa questão Nívia Trindade Lima afirma que há uma certa dificuldade em se caracterizar o sertanejo, devido a obras que cristalizaram uma visão desses sujeitos como indivíduos que mudam de personalidade dependendo do contexto: daí a imagem ambígua de Hércules-Quasímodo, pois de acordo com as circunstancias ele oscilaria da fragilidade à força, da monstruosidade ao caráter

Em meio as perguntas constantes do aluno, a professora não viu outro meio de falar mais sobre o Nordeste senão por uma segunda viagem, dessa vez feita pelo mar. Para isso, D. Luiza leva para classe diversos cartões postais com imagens das capitais nordestinas. Salvador, Maceió, Natal, Fortaleza, Aracaju, Recife, São Luiz127, todas foram percorridas através das imagens e do imaginário das crianças que, acompanhando a fala da professora, imaginavam como eram bonitas e como poderiam ser as cidades até então desconhecidas, ao mesmo tempo em que apontavam os sujeitos ilustres saídos de cada uma delas.

A cada parada D. Luiza falava do progresso, do povo laborioso, das belas edificações, dos portos. O Nordeste deixava de ser apenas sertão, com roças e criação de animais, para ser também cidade com equipamentos urbanos, se desenvolvendo rapidamente, como o trem da viagem anterior. Os meninos maravilhados com o que aprendiam se surpreendiam com a diversidade que o Nordeste possuía:

- Como é grande o nosso Nordeste! Disse João Pergunta.

- Sim, disse a mestra, grande e belo! Devemos amal-o e trabalhar pelo seu engrandecimento. (CRAVEIRO, 1928, p.44)

O discurso elaborado sobre o Nordeste segue o mesmo princípio do presente nas lições sobre o Brasil, mas com uma diferença. Na primeira edição, as lições que abordam temáticas históricas iniciam do menor para o maior, isto é, apesar de apresentarem rapidamente o descobrimento do Brasil, eram mais focadas na história do Ceará. Porém, na segunda edição a atenção maior recai sobre o “Brasil grande” e em segundo lugar sobre o Nordeste, pois antes de se reconhecerem nordestinos, os meninos deveriam se reconhecerem como brasileiros. A lição Brasil Verdadeiro é a responsável por essa tarefa de apresentar às crianças sua pátria, pois apresentava os vinte estados pertencentes ao Brasil na época, chamando atenção para toda a extensão de terras que ainda precisavam ser colonizadas. Temos aí, mais uma vez, a emergência do trabalho como objetivo principal para o progresso, arregimentado pela educação por meio da construção de cidadãos saudáveis em todos os sentidos.

heroico. TRINDADE, Nívia Lima. Euclides da Cunha: O Brasil como Sertão. In. BOTELHO & SHWARTZ. Um enigma chamado Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p. 109.

127 Teresina é a única capital que os meninos não visitam, tendo D. Luiza explicado que ao contrário das