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O documento Y-Juca Pirama – o índio: aquele que deve morrer e a

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2 A formação do CIMI e as divergências com a política indigenista

2.3 O documento Y-Juca Pirama – o índio: aquele que deve morrer e a

O impasse acerca das posições no interior do CIMI entre a proposta de parceria com a política governamental desenvolvida pela FUNAI ou a ruptura com a mesma, provocou tensão interna no Conselho. Surge por parte daqueles que defendiam o rompimento das relações entre o recém-criado CIMI e os órgãos representantes do governo a ideia de um documento-denúncia sobre a realidade dos povos indígenas.

O documento fruto do grupo no interior do CIMI que discordava dos rumos tomados pela política indigenista brasileira que entre 1970 e 1974 “tentou acelerar o processo de ‘integração nacional’ construindo uma série de estradas que cortavam os parques e reservas indígenas” (DAVIS, 1978, p. 101). Elaborado com objetivo de expor os efeitos traumáticos e desastrosos desse programa de integração, sobre as

30 Para Prezia (1995) os dois primeiros presidentes do CIMI seguiam a linha Salesiana de diálogo e colaboração com o Governo. E um grupo mais avançado optara por denunciar as violências contra os povos indígenas. A crise entre ambos fez o Pe. Jaime Venturelli renunciar em caráter irrevogável. Assumindo em seu lugar o vice- presidente Vicente César. Esta alteração fez com que D. Tomás Balduíno, assumisse a vice-presidência do Conselho, aumentando ainda mais a força progressista, que ainda contava com o retorno do Pe. Iasi da Europa. Iasi foi o primeiro secretário executivo do Cimi, eleito em Assembleia (1975) e fez com Egydio Schwade uma dupla que despertou os olhares dos militares e poderosos da ditadura. Deslocou-se do Norte ao Sul do país identificando e denunciando as graves violações dos direitos dos povos indígenas, especialmente na década “do milagre econômico brasileiro”, e, também da expansão dos massacres às comunidades indígenas em todo país.

tribos indígenas recebe o nome inusitado e provocativo de “Y-Juca Pirama – O índio: aquele que deve morrer”.

A divisão no Conselho era evidente. O segundo presidente do CIMI, Padre Vicente César, defensor da parceria com a FUNAI, não aprovou a ideia e nem o texto assinado por seis bispos e seis missionários, o qual foi fruto da reflexão de um grupo formado por bispos, teólogos e missionários, que estava sob a coordenação do Padre Antônio Iasi Júnior. (SUESS, 1989). O documento “Y-Juca Pirama” deixava clara a postura política e antropológica que marcaria os novos caminhos de uma grande parcela dos missionários católicos, articulados no CIMI.

Por um lado, se intensificava a denúncia da situação de violência, massacres e desrespeito a que estavam sendo submetidos os povos indígenas. Por outro, atacava-se diretamente a falta de compromisso do Estado para com as comunidades indígenas.

Os dirigentes políticos brasileiros, no afã do ‘desenvolvimento’, promovem os interesses econômicos de grupos internacionais e de uma minoria de brasileiros a eles integrada.[...] Em função dessa opção ‘desenvolvimentista’ assim caracterizada é que se constituem os organismos administrativos, como a FUNAI. Muito a propósito vêm as recentes palavras do etnólogo Carlos Moreira Neto, do conselho nacional de pesquisas: ‘O Brasil passa por uma fase desenvolvimentista que pode ter influenciado maleficamente a FUNAI (Y-JUCA PIRAMA. O ÍNDIO: AQUELE QUE DEVE MORRER, 1973). A política indigenista do Estado brasileiro abraçou na primeira metade da década de 1970 uma postura de subserviência à política global de desenvolvimento econômico incrementado pelo regime militar no Brasil. Durante o período em questão a FUNAI atuou mais como cúmplice do que defensora dos interesses indígenas nos processos das frentes de expansão e pioneiras. O trabalho da FUNAI em conjunto com a política de desenvolvimento econômico do Estado brasileiro acelerou ao invés de deter os processos de destruição étnica introduzidos pelas frentes expansionistas no território brasileiro. (DAVIS, 1978, p. 104)

O documento “Y-Juca Pirama” foi uma reação dos missionários engajados no CIMI a esse aparelhamento da FUNAI à política desenvolvimentista do governo central. Sua estrutura foi elaborada em quatro partes e dois adendos. As três primeiras partes do documento apresentam um panorama sombrio, mostrando a

situação, as causas e os impasses que viviam os povos indígenas, relatando fatos trazidos pela imprensa e depoimentos de sertanistas, antropólogos, missionários e funcionários da própria FUNAI. (PREZIA, 2003, p. 62)

A quarta parte intitulada “Caminhos de Esperança”, faz vários questionamentos e declara enfaticamente que a finalidade do trabalho missionário não se assenta no processo de civilizar os povos indígenas. E, afirma que:

[...] nós nos propomos, em primeiro lugar, a continuar uma esperançosa luta pelos direitos dos povos indígenas. Mesmo que todos os fatos nos incitem ao desânimo ou ao desespero, fazemos nossa vontade a vontade de nossos irmãos índios de viver e de lutar pela preservação de sua cultura. Não trabalhamos por uma causa perdida, porque se trata de uma causa profundamente humana, pela qual vale a pena até morrer, se preciso for. Seria trair a nossa missão, se nos resignássemos a ser ministros de um Batismo ‘in articulo mortis’ [...] não aceitaremos ser instrumentos do sistema capitalista brasileiro. Nada faremos em colaboração com aqueles que visam ‘atrair’, ‘pacificar’ e ‘acalmar’ os índios para favorecerem o avanço dos latifundiários e dos exploradores de minérios ou outras riquezas. Ao contrário, tal procedimento será objeto de nossa denúncia corajosa ao lado dos próprios índios. Com eles, não aceitaremos um tipo de ‘integração’ que venha apenas a transformá- los em mão-de-obra barata, avolumando ainda mais as classes marginalizadas que, no funcionamento do sistema de produção, enriquecem somente os que já são ricos (Y-JUCA PIRAMA. O ÍNDIO: AQUELE QUE DEVE MORRER, 1973).

“Y Juca Pirama”, segundo relatório de Avaliação do CIMI de 1997, foi um verdadeiro desagrado para o Governo, que apresentava o Brasil como um dos primeiros países do mundo a ter uma legislação para os povos nativos. Apesar de toda a repercussão provocada pela imprensa, tanto no Brasil, como também no exterior, os Boletins do CIMI da época, analisado no arquivo geral do Conselho em Brasília, não apresentaram nenhuma menção ao documento. Isso expõe o quanto o presidente do Conselho em exercício na época possuía amplo controle sobre as publicações oficiais.

Por outro lado, esse mesmo Boletim institucional do CIMI, trazia amplos relatos das visitas do presidente da FUNAI às prelazias do norte do país. Suess (1989, p. 23) afirma que

Na época, o já terceiro presidente da FUNAI, general Ismarth de Araújo, procurava, por um lado, abraçar o Cimi. Vicente César viaja com o general Ismarth à Prelazia do Rio Negro. Thomaz Lisboa, o responsável pelas relações Cimi-Funai, recebe medalha de Mérito indigenista da Funai. Por outro lado, o mesmo presidente da Funai tenta dividir a Igreja missionária. No seminário Funai-Missões, em Manaus, em abril de 1975, Ismarth declara à imprensa que não reconhece o Cimi como interlocutor da Igreja e pressiona missionários, mediante promessas de verbas, para se desligarem do Cimi

A divisão na Igreja missionária era evidente nas ações do presidente em exercício. Padre Vicente César distribuiu nota à imprensa apoiando o veto presidencial no Estatuto do Índio, que proibia as missões religiosas e outras instituições filantrópicas de prestarem serviços diversificados às comunidades indígenas (PREZIA, 2003, p. 63). E, isso, ocorreu momentos depois do lançamento do documento “Y-Juca Pirama”, sem a devida consulta à diretoria31. A nota do presidente em exercício do CIMI, afirmava o seguinte:

O veto ao reconhecimento do direito às missões religiosas e científicas de prestar assistência ao índio foi correto e coerente por parte do Governo: a união não pode sofrer quebra de unidade e limitação em sua ação de tutelar as populações indígenas (BOLETIM DO CIMI, 1974, p. 06).

As críticas contra o Governo e a FUNAI contidas no documento “Y-Juca Pirama”, não tardou a acarretar uma série de atos repressivos contra missionários. Dom Pedro Casaldáliga e Padre Antônio Iasi foram proibidos de entrar em áreas indígenas. O enrijecimento por parte do governo aos grupos progressistas da Igreja Católica que abraçava em nome dos direitos humanos a defesa de grupos oprimidos sociopolítico e economicamente se tornava evidente. Para Dussel (1982, p. 288)

O Brasil [foi] sacudido por três fatos de tal magnitude [...] o primeiro foi o assassinato do padre Rodolfo Lunkenbein; o segundo foi o do padre João Bosco Penido Burnier e o terceiro o sequestro do bispo Adriano Hipólito.

A postura do secretariado executivo do CIMI em encaminhar os relatórios das visitas à FUNAI como também aos jornais de grande circulação nacional deixaram

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O que se percebe é que a grande discussão dos primeiros anos de existência do CIMI era se o mesmo colaboraria ou não com o Estado. Parte defendia a tese que o regime militar estava no caminho certo com a política rumo ao desenvolvimento e progresso do país. Já a outra questionava e criticava abertamente a política integracionista do regime militar.

os militares e latifundiários irritados. As denúncias eram amplamente divulgadas, quando não sofriam censuras. A imprensa amordaçada pelo regime militar abria espaços para as atividades da Igreja nas divulgações das denúncias que surgiam em âmbito nacional.

O foco de tensão na década de 1970 se voltou para a região de fronteiras. As políticas de desenvolvimento e integração da Amazônia que rasgaram a floresta com a abertura de estradas como a Transamazônica, a Belém-Brasília, a BR 364, a BR 174 e a Perimetral Norte expuseram a fragilidade dos povos indígenas. “Povos como os Waimiri-Atroari, Yanomami, Arara, Parakanã, Cinta Larga e Nambikwara, entre muitos outros, foram duramente atingidos, inclusive por expedições de extermínio com participação do poder público”. (HECK; LOEBENS; CARVALHO, 2005, p. 239)

As constantes investidas contra os povos indígenas eram divulgadas pelo CIMI. Nas décadas 1970 e 1980 foi grande o espaço dedicado à atuação do CIMI por parte da imprensa, onde circulava intensas críticas à atuação da FUNAI. A questão indígena tornou-se uma bandeira de luta contra a ditadura militar e grande fonte de informação para os jornalistas que davam ressonância às denúncias acerca das investidas do grande capital sobre as comunidades indígenas (BITTENCOURT, 2003). A reação do governo consistia em acusar o clero de ser “uma corporação infiltrada de comunistas e subversivos” (IASI JÚNIOR, 1976).

A tensão entre Igreja e Estado começou a gerar preocupações por parte de alguns bispos progressistas. As dificuldades surgiam no campo de ação das pastorais sociais dentro e fora da Igreja. Entre os missionários indigenistas as constantes denúncias deixavam os militares incomodados. Diante dessa situação, uma comissão de bispos vinculados ao CIMI procurou, desde a fundação do Conselho, assegurar a autonomia que lhe possibilitasse uma ação ágil e eficaz. Para evitar que os missionários ficassem desassistidos pela instituição Igreja, na Assembleia dos Bispos ocorrida em 1977 foi aprovada a inclusão do CIMI como órgão anexo à CNBB.

A Assembleia dos Bispos, porém reunida em abril de 1977 optou por um caminho mais respeitoso das pessoas e da instituição, decidindo que também os membros do CIMI participassem na busca dos mecanismos desta ligação. O resultado final foi o fortalecimento deste serviço aos índios pelo respaldo da CNBB sem nenhuma

quebra de sua caminhada, de suas linhas de ação, sem cassação de seu pessoal engajado. Mais do que isso, a CNBB assumindo o CIMI assumiu naturalmente a causa indigenista que, ao invés de ser objeto da aventura heroica de uns poucos missionários tornou-se a causa da própria igreja (RELATÓRIO do SECRETARIADO do CIMI, 1975-1979).

O relatório dessa discussão no qual culminou com a inclusão do CIMI à CNBB foi amplamente debatido nas Assembleias do CIMI. Alguns membros do Conselho quanto da CNBB temiam que a relação e/ou anexação tirasse-lhes a autonomia de ação junto às comunidades indígenas. No entanto, o entendimento final caminhou no sentido de garantir a autonomia e fortalecer os laços junto à Igreja Católica. (SUESS, 1989)

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