• Nenhum resultado encontrado

Anexo I Prontuário médico Caso 3c

2.2 Documento, materialidade, multiplicidade e agência autônoma

A noção de materialidade documental trabalhada por Frohmann também é fortemente influenciada pelo aparelho metodológico desenvolvido por Foucault em Arqueologia do saber. Frohmann toma a construção teórica foucaultiana sobre a materialidade do enunciado para construir sua proposta conceitual sobre o que fazem os documentos.

Para entender esta apropriação, é necessária uma breve visita às elaborações foucaultianas para acompanhar como este elabora a noção de materialidade. Trataremos aqui o método arqueológico como sinônimo de análise do discurso de Foucault, pois sua proposta é interrogar as condições de possibilidade da emergência de uma formação discursiva até que se possa chegar às suas regras de constituição.

31 Caberia colocar, como ponto de partida, o alerta de Foucault de que o discurso não tem um princípio de unidade; não há uma regra geral, universal e atemporal para a sua formação. A organização de um discurso não é presidida por um modo constante de enunciação, ou por sua relação com o objeto a que se refere. Falar de discurso é falar do sistema de formação de regularidades discursivas.

As regras que caracterizam um discurso como individualidade se apresentam sempre como um sistema de relações. São as relações entre objetos, entre tipos enunciativos, entre conceitos e entre estratégias que possibilitam a passagem da dispersão à regularidade. (MACHADO, 2009, p. 148).

Negar a unidade de uma formação discursiva é reconhecer que lhe é própria uma dispersão. Não há uma coerência visível e horizontal entre os elementos que a compõem e, sim, lacunas, falhas, desordens, superposições, incompatibilidades, trocas e substituições. Sua descrição busca a singularidade da formação de seus elementos (FOUCAULT, 2015, p. 85).

Por sistema de formação é preciso, pois, compreender um feixe complexo de relações que funcionam como regra: ele prescreve o que deveria ser correlacionado em uma prática discursiva para que esta se refira a tal objeto, para que empregue tal ou tal enunciação, para que utilize tal ou tal conceito, para que organize tal ou tal estratégia. Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é, assim, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática. (Ibidem, p. 88)

A formação discursiva determina as regularidades que tornam possível a emergência de um discurso. Este conjunto de regras anônimas (sem autor), históricas, determinadas no tempo e no espaço, é que determinará as condições de existência de um discurso em uma dada área social, econômica ou geográfica (ibidem, p. 146).

Foucault denomina como discurso um conjunto de enunciados que se apoiam no mesmo sistema de formação discursiva (ibidem, p. 143). “[O] discurso é constituído por um conjunto de signos, enquanto enunciados, isto é, enquanto lhes podemos atribuir modalidades particulares de existência” (ibidem, p. 131).

O discurso oferece aos enunciados um campo de estabilidade, condição que garante sua existência e materialidade. Este campo de estabilidade, condição de inscrição do enunciado, caracteriza a função enunciativa, os esquemas de utilização, o emprego, as estratégias e os papéis nos quais o enunciado será articulado (ibidem, p. 126).

32 A materialidade repetível que caracteriza a função enunciativa faz aparecer o enunciado como um objeto específico e paradoxal, mas também como um objeto entre os quais os homens produzem, manipulam, utilizam, transformam, trocam, combinam, decompõem e recompõem, eventualmente destroem. (FOUCAULT, 2015, p. 128).

O enunciado se materializa quando é inscrito e reinscrito em micropráticas institucionais – práticas legais, penais, educacionais etc. - que lhe dão massa. A materialidade não só atribui massa ao enunciado, mas também um status. Define as regras de sua transmissão, possibilidades de uso ou reutilização; o poder do enunciado de causar efeitos, sua energia.

Chamaremos “enunciados” a modalidade de existência própria desse conjunto de signos [frase ou proposição]: modalidade que permite ser algo diferente de uma série de traços, algo diferente de uma sucessão de marcas em uma substância, algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar dotado, enfim, de uma materialidade repetível. (Ibidem, p. 130-131).

Frohmann considera que os documentos são enunciados materializados porque é através deles que os enunciados circulam. O documento, aqui, é o meio – não confundir com suporte – através do qual os enunciados entram em sistemas de relações com pessoas, instituições e práticas sociais, uma vez que não poderiam circular em meio etéreo (FROHMANN, 2007a, p. 8).

A noção de “meio”6 empregada por Frohmann não remete a uma concepção fisicalista do documento, mas à ideia de que os documentos funcionam como plataforma discursiva de enunciação autorizada e reconhecida institucionalmente. Diz o autor:

Percebemos assim que os objetos aos quais propomos estender o conceito de “documento” desempenham algumas das mesmas funções significativas, têm alguns dos mesmos efeitos significativos e exercem

6 A aplicação do termo meio pode ser mais bem entendida a partir da teoria dos meios de Talcott Parsons (1969). A teoria explica como dinheiro e poder são usados enquanto meios da ação teleológica na sociedade moderna. O dinheiro torna-se um meio de exercício do poder porque gera obrigações de participação em um sistema coletivo. Ou seja, existe uma vinculação obrigatória a regras de um sistema de troca (economia/mercado) que regulam as interações mediadas pelo dinheiro. Para o autor, uma expressão destes tipos de obrigações é a aceitação da autoridade advinda do dinheiro, que permite que pessoas e organizações ocupem posições dentro de um sistema de trocas, possuindo ou não o poder para “ativar” essas obrigações (PARSONS, 1969, p. 228). Frohmann não faz nenhuma referência à teoria parsoniana, nem a nenhuma apropriação dos seus conceitos. Fizemos esta referência para eliminar qualquer dúvida sobre o uso do termo meio como “suporte ou veículo da informação”. Frohmann não desconsidera a dimensão física do documento, mas o que ele chama de materialidade vai além disso. Diz respeito ao poder que o documento tem de exercer sua autoridade institucional dentro de uma assemblage.

33 alguns dos mesmos poderes significativos, como itens que aceitamos sem dúvida como documentos. (FROHMANN, 2009, p. 299).

A materialidade de um documento não se reduz à sua existência entitativa no espaço e no tempo. Vai além; é definida pelas práticas socioinstitucionais que lhe dão massa, inércia ou resistência. O documento só se torna uma plataforma discursiva de enunciação – lócus da enunciação – porque é produto de técnicas documentárias institucionalizadas reconhecidas socialmente.

É importante esclarecer também que a materialidade do documento não significa que, enquanto objeto físico – coisa – ele seja uniforme. Os documentos são múltiplos; “eles se apresentam em muitas formas, são feitos de diferentes tipos de material e possuem vários tipos de propriedades institucionais e culturais” (FROHMANN, 2007a, p. 2, tradução nossa).

Just as information’s uniformity underwrites its immateriality, documentation’s multiplicity underwrites its materiality. The matter of documents takes many forms, not just in the variety of the physical properties of documents, but in the different kinds of mass or inertia exercised by them, which can be understood, analogously to the way matter is conceived in modern physics, as more than mere physicality. Documents gain mass or inertia by their institutional roles, which manifest both affordances and resistances. Documentation counters information’s immateriality with the variety of the materialities of documents and their effects. (Ibidem).

Frohmann se preocupa em reafirmar a multiplicidade dos documentos para demarcar a diferença entre o documento e a informação. Segundo o autor, a informação é concebida pelo modelo “informação e comunicação”7 como “substância uniforme independente do meio que a transmite e do conteúdo que é transmitido” (Ibidem).

Outra característica do documento diretamente relacionada à materialidade e à multiplicidade é a de que eles podem exercer agências autônomas. Ao contrário da informação, substância mental, o documento não depende da agência humana para existir materialmente e produzir efeitos. Isto não quer dizer em absoluto que o documento não é um fenômeno social, e, sim, que o documento não depende de um autor.

Foucault defende que alguns tipos de discurso são desprovidos de autor. “Uma carta particular pode ter um signatário, ela não tem autor; um contrato pode ter um fiador, ele não tem autor. Um texto anônimo que se lê na rua em uma parede terá um redator, não terá um

34 autor” (FOUCAULT, 2001, p. 247). Entretanto, esses discursos são providos da “função autor”.

A “função autor” é “característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 247). À semelhança de Foucault, Frohmann usa o conceito de agência autônoma dos documentos para dizer que “importantes efeitos documentais não podem ser atribuídos à consciência dos indivíduos humanos” (FROHMANN, 2007a, p. 7, tradução nossa).

A noção de agência autônoma dos documentos será trabalhada em detalhe a partir do conceito de documentalidade, cunhado por Frohmann.