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DOIS MESES ANTES DA NOITE DO CONCURSO DE PERGUNTAS

No documento Pequenas Grandes Mentiras - Liane Moriarty (páginas 107-126)

IVA O VEEERDE! — exclamou Madeline ao aplicar spray verde no cabelo de Chloe para a gincana.

Chloe e Fred eram “Golfinhos” e estavam no time verde, o que era muita sorte, porque Madeline ficava bem com aquela cor. Quando Abigail estava no primário, o time dela era o amarelo, uma cor que não favorecia.

— Isso é muito ruim para a camada de ozônio — disse Abigail.

— É mesmo? — Madeline examinou a lata de spray. — A gente não consertou isso? — Mãe, não se pode consertar a camada de ozônio!

Abigail revirou os olhos com desprezo enquanto comia o seu muesli caseiro, sem conservantes e à base de semente de linhaça e que diabo mais contivesse. Nos últimos tempos, sempre que voltava da casa do pai, saltava do carro dele carregada de comida, como se tivesse feito provisões para uma viagem à selva.

— Eu não quis dizer que a gente consertou a camada de ozônio, me referia ao problema das latas de spray. A, hã, aquela coisa. — Madeline franziu a testa para o spray de cabelo, tentando ler a inscrição na lateral, mas a letra era muito pequena. Madeline teve um namorado que a achava bonitinha e burra, o que era verdade, ela fora bonitinha e burra o tempo inteiro em que estivera com ele. Morar com uma filha adolescente era igualzinho.

— Os CFCs — falou Ed. — As latas de aerossol não contêm mais CFCs. — Está bem — disse Abigail.

— Os gêmeos acham que a mãe deles vai ganhar a corrida das mães hoje — disse Chloe quando Madeline começou a fazer uma trança embutida em seu cabelo verde. — Mas falei que você era um trilhão de vezes mais rápida.

Madeline riu. Não conseguia imaginar Celeste participando de uma corrida. Provavelmente a amiga iria correr para o lado errado, ou nem notar quando fosse dado o tiro de largada. Ela estava sempre tão desligada.

— Bonnie deve ganhar — sugeriu Abigail. — Ela é uma corredora muito veloz. — Bonnie? — repetiu Madeline.

Ed pigarreou em alerta.

— O que foi? — perguntou Abigail, ríspida. — Por que ela não seria veloz?

— Só achei que ela gostava mais de ioga e esse tipo de atividade. Exercícios não cardiovasculares — disse Madeline, voltando a arrumar o cabelo de Chloe.

— Ela é veloz. Vi quando apostou corrida com o papai na praia, e Bonnie é, tipo, muito mais nova que você, mãe.

Ed riu.

— Você é muito corajosa, Abigail. Madeline também riu.

— Um dia, Abigail, quando você tiver trinta anos, vou repetir algumas das coisas que me disse nesse ano que passou...

A menina largou a colher na mesa.

— Só estou dizendo para você não ficar chateada se não ganhar!

— Sim, sim, tudo bem, obrigada — disse Madeline, apaziguadora. Ela e Ed haviam rido de Abigail quando a filha não tivera intenção de ser engraçada, e nem ela mesma entendia bem qual tinha sido a graça, então acabou ficando encabulada, e, portanto, furiosa.

— Quer dizer, não sei por que você tem tanta rivalidade com ela — comentou Abigail, em um tom cruel. — Não é como se você ainda quisesse estar casada com o papai, então qual é o seu problema?

— Abigail — reprimiu Ed. — Não estou gostando do seu tom. Fale direito com a sua mãe. Madeline fez um pequeno gesto de cabeça negativo para Ed.

— Nossa!

Abigail empurrou sua tigela de café da manhã e se levantou.

Ai, calamidade, pensou Madeline. Lá se vai a manhã. Chloe virou a cabeça, afastando-se

das mãos da mãe a fim de observar a irmã.

— Nem posso mais falar nada! — O corpo de Abigail tremia todo. — Nem posso ser eu mesma na minha própria casa! Não consigo relaxar!

Madeline se lembrou do primeiro acesso de raiva de Abigail, aos quase três anos. Achara que a filha nunca teria um acesso de raiva, graças ao fato de ela ser uma boa mãe. Então, fora um choque ver o corpinho de Abigail agitado por uma emoção violenta. (A menina queria continuar comendo um sapo de chocolate que deixara cair no chão do supermercado. Madeline deveria ter deixado a pobrezinha comer.)

— Abigail, não há necessidade de ser tão dramática. Acalme-se — disse Ed.

Madeline pensou: Obrigada, querido, porque mandar uma mulher se acalmar sempre

funciona, não é?

— Manhê! Só acho um sapato! — berrou Fred do corredor. — Já vou, Fred — gritou Madeline de volta.

Abigail balançou a cabeça devagar de um lado para outro, como se verdadeiramente perplexa com o tratamento ultrajante que estava sendo obrigada a aguentar.

— Sabe de uma coisa, mãe? — disse ela, sem olhar para Madeline. — Eu ia contar isso para você mais tarde, mas vou contar agora.

— MANHÊÊ! — gritou Fred.

— A mamãe está ocupada! — disse Chloe, aos berros. — Olhe embaixo da cama! — bradou Ed.

— O que é, Abigail?

— Decidi que vou morar com papai e Bonnie.

— O que você disse? — perguntou Madeline, mas ela tinha ouvido.

Há muito tempo temia isso, e todo mundo ficava dizendo: Não, não, isso nunca vai

acontecer. Abigail nunca vai fazer isso. Ela precisa da mãe. Mas Madeline já previra havia

meses. Sabia que aconteceria. Queria gritar para Ed: Por que você disse para ela se

acalmar?

— Acho que vai ser melhor para mim — disse Abigail. — Espiritualmente.

Ela já havia parado de tremer e, com toda a calma, levou sua tigela da mesa para a pia. Nos últimos tempos, começara a andar igual a Bonnie, postura ereta como a de uma bailarina, o olhar fixo em algum ponto espiritual no horizonte.

Chloe contorceu o rosto.

— Não quero que Abigail vá morar com o pai dela! — Ela começou a chorar copiosamente. A pintura verde em suas bochechas começou a escorrer.

— MANHÊ! — gritou Fred.

Os vizinhos iriam pensar que ele estava sendo assassinado. Ed deixou a cabeça afundar nas mãos.

— Se é isso o que você realmente quer — disse Madeline.

Abigail virou-se da pia e seu olhar encontrou o da mãe, e, por um momento, eram só as duas, como tinha sido durante todos aqueles anos. Madeline e Abigail. As meninas Mackenzie. Quando a vida era calma e simples. Elas tomavam café na cama juntas antes da escola, lado a lado, travesseiros atrás das costas, os livros no colo. Madeline sustentou o olhar da filha.

Lembra-se, Abigail? Lembra-se da gente?

A menina virou a cara. — É isso o que eu quero.

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Stu: Eu fui à gincana. Porra, a corrida das mães foi hilária. Perdoe meu linguajar. Mas algumas daquelas mulheres... Parecia que estavam disputando as Olimpíadas. Sério.

Samantha: Ah, bobagem. Ignore o meu marido. Ninguém estava levando aquilo a sério. Eu ria tanto que minha barriga chegou a doer.

____

Nathan tinha ido à gincana. Madeline não acreditou quando deu de cara com ele em frente à barraquinha de cachorro-quente, de mãos dadas com Skye. Justo naquela manhã.

Pais não costumavam ir à gincana, a menos que não trabalhassem ou que seus filhos estivessem especialmente envolvidos em esportes, mas lá estava o ex de Madeline tirando

uma folga do trabalho para estar ali, de camisa polo listrada, bermuda, boné e óculos escuros: o uniforme do Bom Pai.

— Então... isso é uma novidade para você! — exclamou Madeline.

Ela viu que ele tinha um apito pendurado no pescoço. Estava ali como voluntário. Estava se envolvendo. Ed era o tipo de pai que se oferecia como voluntário na escola, mas precisava terminar um trabalho naquele dia. Nathan estava fingindo ser Ed. Estava fingindo ser um bom homem, e todo mundo acreditara.

— Claro!

Nathan sorriu, mas seu sorriso desapareceu quando presumivelmente lhe passou pela cabeça que sua filha primogênita também devia ter participado de gincanas quando estava no primário. Abigail não gostava tanto de esportes, mas tocava violino, e Nathan e Bonnie iam a todos os concertos, sem falta, sorrindo e batendo palmas, como se sempre tivessem estado presentes, como se a tivessem levado de carro àquelas aulas de violino em Petersham, onde era impossível encontrar vaga para estacionar, como se tivessem ajudado a pagar todas aquelas aulas que Madeline não tinha condições de bancar com um ex-marido que não contribuía com um centavo.

E agora ela estava escolhendo ele.

— Abigail já falou com você sobre... — Nathan contorceu um pouquinho o rosto, como se estivesse se referindo a uma questão delicada de saúde.

— Ir morar com você? — perguntou Madeline. — Já. Hoje de manhã mesmo, na verdade. Ela sentia uma dor física. Como o início de uma gripe forte. Como uma traição.

Ele olhou para a ex-mulher. — E por você...

— Por mim tudo bem — disse Madeline. Ela não lhe daria aquela satisfação. — Vamos ter que resolver a questão do dinheiro — observou Nathan.

Ele pagava pensão para Abigail, agora que era uma boa pessoa. Sem atrasos. Sem reclamar. E nenhum dos dois jamais comentava sobre os dez primeiros anos da vida de Abigail, quando, aparentemente, alimentá-la e vesti-la não custava nada.

— Então você quer dizer que terei que lhe pagar pensão alimentícia agora? — perguntou Madeline.

Nathan pareceu chocado.

— Ah, não, não quis dizer isso...

— Mas você tem razão. É justo, se Abigail vai morar com você a maior parte do tempo — disse ela.

— É óbvio que eu nunca aceitaria seu dinheiro, Maddie — interrompeu ele. — Não quando eu... quando eu não... quando eu não pude... quando esses anos todos... — Ele fez uma careta. — Olha, sei que não fui o melhor pai do mundo quando Abigail era pequena. Eu nunca deveria ter falado em dinheiro. Nossa situação está um pouco apertada no momento.

— É — disse Nathan. Parecia mortificado. — Eu deveria. Tem razão. Embora não valha tanto quanto você... Enfim.

Skye olhou para o pai com seus grandes olhos preocupados, e deu aquelas piscadelas rápidas como Abigail costumava fazer. Madeline viu Nathan sorrir afetuosamente para a garotinha e apertar a mão dela. Madeline o humilhara. Madeline o humilhara enquanto ele estava de mãos dadas com sua filha com cara de menor abandonada.

Ex-maridos deveriam morar em outros bairros. Deveriam colocar seus filhos em outras escolas. Deveria haver leis para evitar situações como aquela. Não era para a pessoa lidar com sentimentos complicados de traição, mágoa e culpa no meio das gincanas dos filhos. Sentimentos como esses não deveriam ser expostos em público.

— Por que você se mudou para cá, Nathan? — Ela suspirou. — O quê?

— Madeline! Está na hora da Corrida das Mães do Jardim! Você está preparada?

Era a professora do jardim de infância, a Srta. Barnes, que estava com o cabelo preso em um rabo de cavalo alto e a pele brilhando feito uma animadora de torcida americana. Tinha um aspecto fresco. Como uma deliciosa fruta madura. Ainda mais madura que Bonnie. Sem pálpebras flácidas. Sem flacidez nenhuma. Tudo em sua vida jovem e alegre era simples e animado. Nathan tirou os óculos escuros para enxergá-la melhor, visivelmente alegre só de vê- la. Ed faria a mesma coisa.

— Manda brasa, Srta. Barnes — disse Madeline.

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Detetive Adrian Quinlan: Estamos investigando os relacionamentos da vítima com todos os pais que estiveram presentes na noite do concurso de perguntas.

Harper: Sim, tenho algumas teorias, na verdade.

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indo, as mães dos alunos do jardim de infância formaram uma fila irregular na linha de largada da corrida. O sol se refletia nos óculos escuros delas. O céu parecia uma imensa concha azul. O mar safira brilhava no horizonte. Jane sorriu para as outras mães. As demais retribuíram seu sorriso. Todas muito simpáticas. Muito sociáveis.

“Isso é coisa da sua cabeça”, garantira-lhe a mãe de Jane. “Todo mundo já vai ter esquecido aquela confusão boba do dia da orientação.”

Jane andara fazendo um esforço enorme para se encaixar na comunidade da escola. Servia na cantina de quinze em quinze dias. Toda segunda-feira de manhã, ela e outra mãe voluntária ajudavam a Srta. Barnes ouvindo as crianças praticarem a leitura. Conversava educadamente na chegada e na saída da escola. Convidava crianças para irem brincar em sua casa.

Mas Jane ainda sentia que havia algo errado. Uma cabeça que virava ligeiramente lá, sorrisos amarelos acolá, o leve cheiro de crítica no ar.

Não é nada demais, ela ficava dizendo a si mesma. Era bobagem. Não havia por que se apavorar. Aquele mundinho de merendeiras e mochilas, joelhos esfolados e rostinhos encardidos não tinha qualquer relação com a feiura daquela noite quente de primavera, a luz embutida no teto que mais parecia um olho observando-a de cima, o nó em sua garganta, as palavras sussurradas insinuando-se em seu cérebro. Pare de pensar nisso. Pare de pensar

nisso.

Jane acenou para Ziggy, que estava sentado nas arquibancadas com as crianças do jardim de infância sob os olhares atentos da Srta. Barnes.

“Você sabe que eu não vou ganhar, certo?”, dissera ela para o filho aquele dia durante o café da manhã. Algumas daquelas mães tinham personal trainers. Uma delas era personal

trainer.

— Em suas marcas, mães! — exclamou Jonathan, o simpático pai que não trabalhava e tinha ido com eles ao Disney On Ice.

— De quantos metros é essa corrida, afinal? — perguntou Harper.

— Aquela linha de chegada parece estar bem longe — opinou Gabrielle. — Por que não vamos todas tomar café em vez de correr?

— Aquelas são Renata e Celeste segurando a faixa de chegada? — perguntou Samantha. — Como elas se safaram dessa?

— Acho que Renata disse que...

— Renata tem canelite — interrompeu Harper. — Pelo que parece, dói muito.

— Todas nós devíamos nos alongar — sugeriu Bonnie, vestida como se fosse dar uma aula de ioga, com uma camiseta amarela escorregando do ombro enquanto ela languidamente levantava um pé e o puxava para trás até encostá-lo na coxa.

— Ah, aliás, Jess? — começou Audrey ou Andrea.

Jane nunca conseguia decorar o nome dela. A mulher chegou pertinho de Jane e falou em um tom de voz baixo, confidencial, como se estivesse prestes a revelar um grande segredo misterioso. Jane estava acostumada. No outro dia, ela se aproximara, baixara a voz e perguntara: “Hoje é dia de biblioteca?”

— É Jane — corrigiu. (Ela não tinha o direito de se ofender.)

— Desculpe — disse Andrea ou Audrey. — Olha. Você é a favor ou contra? — A favor ou contra quê? — perguntou Jane.

— Senhoras! — exclamou Jonathan.

— Cupcakes — disse Audrey ou Andrea. — A favor ou contra? — Ela é a favor — respondeu Madeline. — Sua repressora.

— Madeline, deixe ela responder — insistiu Audrey ou Andrea. — Ela me parece uma pessoa muito consciente da importância da saúde.

Madeline revirou os olhos.

— Hã, bem, eu gosto de cupcake — revelou Jane.

— Estamos fazendo uma petição para proibir os pais de mandarem cupcakes para a turma inteira no aniversário dos filhos — informou Andrea ou Audrey. — Vivemos um surto de obesidade, e dia sim, dia não, as crianças estão comendo doce.

— O que não entendo é por que essa escola tem tanta mania de petições — disse Madeline, irritada. — É uma atitude de confronto. Por que a pessoa não pode simplesmente fazer uma sugestão?

— Senhoras, por favor! — Jonathan ergueu a pistola de largada. — Cadê Jackie, Jonathan? — perguntou Gabrielle.

As mães estavam meio obcecadas pela mulher de Jonathan, desde que ela havia sido entrevistada no bloco sobre economia do noticiário noturno alguns dias antes, parecendo assustadoramente segura e inteligente ao falar sobre uma fusão de empresas, chegando a botar o jornalista em seu lugar. Além disso, Jonathan era muito bonito, de uma maneira que lembrava George Clooney, então as referências constantes à sua mulher eram necessárias para deixar claro que elas não tinham notado sua beleza e não estavam dando em cima dele.

— Ela está em Melbourne — contou Jonathan. — Parem de falar comigo. Em suas marcas! As mulheres andaram até a linha de largada.

— Bonnie parece uma profissional — comentou Samantha quando Bonnie se agachou na posição de largada.

— Eu quase nunca corro hoje em dia — disse ela. — Correr é muito agressivo para as articulações.

Jane reparou em Madeline olhando para Bonnie e enterrando com firmeza a ponta do tênis na grama.

— Chega de conversa fiada, senhoras — esbravejou Jonathan. — Adoro quando você é autoritário, Jonathan — disse Samantha.

— Preparadas?

— Isso é muito angustiante — confessou Audrey ou Andrea a Jane. — Como as pobres crianças lidam com o...

A pistola disparou.

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Thea: Eu tenho algumas hipóteses sobre o que pode ter acontecido, mas prefiro não falar mal dos mortos. Como digo às minhas quatro filhas: “Se não tiverem nada agradável a dizer, não digam nada.”

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eleste conseguia sentir a força de Renata na outra ponta da faixa de chegada, e tentava igualar a pressão do seu lado, só que se esquecia de se concentrar em onde estava e no que fazia.

— Como vai Perry? — gritou Renata. — Ele está no país?

Sempre que aparecia na escola ou em eventos escolares, Renata fazia questão de não falar com Jane nem Madeline (que adorava isso, mas a pobre Jane nem tanto), só que sempre puxava assunto com Celeste, em um tom defensivo e ofendido, como se Celeste fosse uma velha amiga que tivesse agido mal, mas com quem Renata houvesse decidido agir com maturidade.

— Está ótimo — berrou Celeste do outro lado.

Na noite passada tinha sido por causa dos Legos. Os meninos haviam espalhado Lego pela casa toda. Ela deveria ter mandado que eles catassem tudo. Perry tinha razão. Era mais fácil que ela mesma arrumasse tudo quando os dois estivessem dormindo, em vez de brigar com eles. O choro. O drama. Ela simplesmente não tivera forças naquela noite. Era preguiçosa. Uma péssima mãe.

“Você está transformando os meninos em crianças mimadas”, dissera Perry.

“Eles só têm cinco anos”, retrucara Celeste. Estava sentada no sofá dobrando as roupas lavadas. “Ficam cansados depois da escola.”

“Não quero morar em um chiqueiro”, reclamara Perry, chutando as peças de Lego no chão. “Então cate você”, respondera Celeste, cansada.

Pronto. Foi assim que tinha começado. Ela mesma provocava. Toda vez.

Perry se limitou a olhar para ela. Então ficou de quatro e recolheu todas as peças de Lego do tapete, colocando-as na grande caixa verde. Ela continuou dobrando as roupas, observando-o. Será que ele ia catar tudo mesmo?

Perry se levantou e levou a caixa até onde ela estava.

“É simples: mande os garotos catarem, ou cate você, ou pague a porra de uma empregada.” Em um gesto rápido, ele virou a caixa inteira de Lego na cabeça dela, em uma torrente violenta e ruidosa.

A surpresa e humilhação a fizeram arfar.

Celeste se levantou, pegou um punhado de peças de Lego do colo e jogou-as na cara dele. Viu? De novo. A culpa era dela, que agia feito criança. Era quase engraçado. Quase um pastelão. Dois adultos jogando coisas um no outro.

Ele lhe deu uma bofetada na cara com as costas da mão.

Ele nunca a esmurrou. Jamais faria uma coisa tão bruta. Ela cambaleou, e seu joelho bateu na mesa de vidro. Celeste recuperou o equilíbrio e voou para cima dele com as mãos em

garras. Perry a empurrou para longe com uma expressão de nojo. Bem, por que não? O comportamento dela dava nojo.

Então ele foi se deitar. Ela arrumou o Lego e jogou no lixo o jantar intocado.

Seu lábio estava machucado e dolorido naquela manhã, como se uma afta estivesse se formando. Não era suficiente para provocar comentários de ninguém. Tinha batido o joelho na lateral da mesa de centro, por isso estava rijo e doído. Não era muito grave. Não era nada, na verdade.

Perry estava alegre de manhã, assobiando enquanto fazia ovos cozidos para os meninos. “O que houve com o seu pescoço, papai?”, perguntara Josh.

Havia um fino arranhão vermelho na lateral do pescoço, onde Celeste devia tê-lo atingido. “Meu pescoço?”, Perry pôs a mão no ferimento e olhou para a esposa com um olhar divertido. Era o tipo de olhar secreto que os pais trocam quando os filhos fazem um comentário inocente e engraçadinho sobre Papai Noel ou sexo. Como se o que ocorrera na noite passada fosse um acontecimento normal da vida de casado.

“Não foi nada, amigão”, disse ele a Josh. “Eu estava distraído e bati em uma árvore.”

Celeste não conseguia tirar a expressão de Perry da cabeça. Ele tinha achado aquilo engraçado. Engraçado mesmo, como se não fosse nada demais.

Ela pressionou um dedo no lábio dolorido. Aquilo era normal?

Perry diria: “Não, nós não somos normais. Não somos o Sr. e a Sra. Padrão, gente

No documento Pequenas Grandes Mentiras - Liane Moriarty (páginas 107-126)