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5. As Fontes e as Trajetórias da Criatividade na Inovação Cervejeira 132

5.2. Dominando Tecnologias Cervejeiras 138

  “Como diz a história  

Aquele que tem   Um barco pronto pra zarpar   Tem que saber partir.”   Toninho Horta      

Aprender novas técnicas cervejeiras faz parte do cotidiano de todos os       produtores dos casos selecionados. A análise de Franz Meussdoerffer (2009, p.       27-29) demonstra como o domínio e o desenvolvimento das técnicas cervejeiras       ampliaram os estilos produzidos. E como a cada dia surgem novos estilos, novos       métodos, novos equipamentos, se acrescentam insumos inusitados e novos       processos são incorporados nas práticas cervejeiras. Dell'era, Marchesi e Verganti       (2010) demonstram como a inovação depende do impulso tecnológico, mas que o       desenvolvimento e apropriação tecnológica são frutos do desenvolvimento funcional       dos produtos ao responder significativamente às necessidades dos clientes, sendo       que uma forma eficiente de desenvolver esse domínio, seria por meio de parcerias      

externas. Os psicólogos Teresa Amabile e Michael Pratt (2016, p.14) apontam o       desenvolvimento técnico como processo relevante no exercício das práticas de       criatividade, pelo trabalho em se adquirir o domínio técnico das tarefas. Nas       microcervejarias estudadas, se apropriar de novas técnicas é parte importante do       trabalho cervejeiro. Como forma de contribuir com esse trabalho aprimoram os       equipamentos e a organização das fábricas. As microcervejarias criativas       normalmente contam com laboratórios para análises biológicas e físico-químicas, de       modo a aumentar as possibilidades de controle sanitário e explorar as       potencialidades de novos insumos. Existe também a troca constante de experiências       com outros produtores sobre as incursões tecnológicas.   

 

No caso da Verace, além do laboratório de análise, existe uma cozinha de       teste, que eles denominam de nano. A nano seria praticamente uma cervejaria       dentro de outra, com um tribloco que pode brassar duas receitas ao mesmo tempo, e       quatro fermentadores com uma capacidade de produção maior do que algumas       microcervejarias menores que existem no estado. Essa estrutura da Verace permite       tanto desenvolver novas técnicas como realizar diversas práticas experimentais.     

Ao dominar novas técnicas cervejeiras existe um aprendizado em relação ao       domínio dos equipamentos cervejeiros. A cervejaria Verace tentou explorar o       universo das cervejas ácidas, mas ao migrar a receita da cerveja Abaporu já testada       na Nano para a cozinha principal, houve um problema no processo de acidificação.       Se esperava do método utilizado uma acidificação mais rápida, como ocorreu nos       testes da receita na cozinha da Nano.   

 

A demora do processo de acidificação vinha do aquecimento da resistência       que provocava um calor desnecessário, fazendo com que não ativassem os       lactobacilos. Dessa maneira descobriram uma peculiaridade da cozinha maior, que       dada à sua parede tripla e sua característica hermética não necessitava de ligar o       aquecimento, pois o lactobacilo acidificava o mosto melhor com um tempo maior na       temperatura ambiente interna da cozinha fechada. Como era a primeira vez que se       fazia esse tipo de receita acidificada, os produtores de cerveja não sabiam desta      

peculiaridade do equipamento, e ao ligar a resistência não ativavam os lactobacilos       inoculados. A partir desta experiência se adquiriu o conhecimento de como       funcionava o equipamento, adequando toda organização de produção respeitando       as condições nas quais o equipamento favorecia os lactobacilos. Desde então, todas       as receitas acidificadas começam sua produção na sexta-feira à tarde para otimizar       o uso da cozinha, sendo que o restante do processo de brassagem pode ser       realizado na segunda de manhã. Com essa organização aprendida, a cozinha não       trava a produção de outras receitas, por utilizar o fim de semana para acidificar       corretamente as cervejas ácidas; então uma produção que ocuparia três dias a       cozinha principal teve sua ocupação regularizada com as demais receitas       produzidas durante a semana.   

 

A técnica de coolship consiste em, após o processo de mostura, despejar o          67       mosto em um tipo de recipiente na forma de uma piscina de cerveja, sendo que esta       técnica é tradicionalmente usada na produção de cerveja belga. É um recipiente       amplo, aberto e plano no qual o mosto se esfria. A alta proporção entre superfície e       massa permite um resfriamento mais eficiente. E assim, durante o processo de       resfriamento, a microbiota natural do ar inocula a cerveja. Logo de manhã ela é       transferida para barris de carvalho francês, onde ocorre toda a fermentação e       envelhecimento, em geral entre um a três anos. Esta técnica é muito tradicional na       produção do estilo lambic na Bélgica, e comum nas cervejarias norte-americanas.     

O surgimento da linha Spontaneous da Zalaz foi bem contundente em relação       ao uso do tema. A linha estava nos planos da cervejaria, mas necessitava de uma       oportunidade de execução da técnica coolship, que por falta de tempo ou coragem,         pela falta do domínio, esta técnica era procrastinada pela cervejaria fazenda. Eis que       um incidente de falta de energia na fazenda interrompeu um processo de brassagem       na etapa final da mostura. A interrupção da energia se deveu a uma chuva de       granizo que caiu na fazenda. Sem saber o que fazer no primeiro momento,       desesperados com a possibilidade de prejuízos nas produções de café e pitaya e      

pela falta de energia, da perda do lote cervejeiro surgiu uma ideia inusitada.       Aplicando o tema de produção terroir pensaram em aproveitar a parte de cima do       granizo. Visto que o volume de chuva foi alto, aproveitaram a panela aberta e       jogaram o granizo limpo, resfriando o mosto quente. O Cervejeiro 9 nos relatou que       pensou que como o granizo vem do céu da fazenda, ele também faria parte do       terroir. E continuou declarando que a técnica que até então era procrastinada,       surgia naquele momento uma oportunidade para executá-la. Dessa forma       espontânea, utilizando a fermentação espontânea surgiu a linha no portfólio da       cervejaria chamada Spontaneous.  

 

A partir desta experiência se perdeu o medo em realizar esse tipo de cerveja

       

e foram realizadas outras brassagens utilizando a técnica de coolship . Às vezes um         incidente na produção cervejeira pode proporcionar oportunidade de desenvolver       novas técnicas , como uma falha de maquinário e a criatividade por parte dos       produtores. Um desastre de produção pode vir a se tornar um produto importante na       linha de produção. Um erro ou uma falha são vistos pelos produtores pesquisados       como o aprendizado técnico para realização de novos produtos.   

 

Na linha de fermentação, surgiu recentemente no Brasil - no período de       realização desta pesquisa -         uma cepa de leveduras diferentes provenientes da       Escandinávia. As leveduras Kveik se tornaram moda a partir do ano de 2019 entre       68        os produtores brasileiros, pelas suas características como a tolerância a altas       temperaturas e principalmente por sua fermentação extremamente rápida. Enquanto       a maioria das cepas ales fermentam entre 18-21°C, as cepas de Kveik preferem       temperaturas perto de 32°C. Sendo que em leveduras comuns como as Ales, com a       exceção dos estilos belgas e de trigos que permitem ésteres, esta alta temperatura       resulta em aromas e sabores indesejáveis na cerveja. A história das Kveiks seria       próxima à de outras leveduras como as Farmhouse Ales, porém diferentemente       dessas últimas cepas, as Kveik resultam em um perfil limpo de fermentação,      

68 Kveik e fermentação em altas temperaturas. Disponível em:  

comparado com os frutados, ésteres e condimentos, cravos e fenólicos,       característicos das Saisons.   

 

A principal vantagem desta levedura seria sua rápida fermentação. A       cervejaria Viela possuía um problema em relação à pequena capacidade de       fermentação que a cervejaria possui. A levedura Kveik poderia ser uma solução       interessante, visto que sua rápida fermentação diminuiria a ocupação dos       fermentadores, possibilitando a produção de demais estilos cervejeiros e o aumento       do estoque de cervejas disponíveis em geral. Surgiu na cervejaria Viela o estilo       Norueguesa, onde o Cervejeiro 6, a partir de testes com diversas cepas diferentes       de leveduras kveik tentou aprender como dominar a fermentação para adquirir seus       benefícios na fábrica.  

 

No intuito de compreender o funcionamento dessas leveduras, o Cervejeiro 6,       por meio de um blog de um cervejeiro artesanal norueguês , iniciou os estudos e       69          tentou   realizar receitas de diversas cepas dessa levedura para aprender o       comportamento destas. A fim de dominar a técnica de fermentação no uso dessas       leveduras, o cervejeiro selecionou três tipos tradicionais e realizou algumas       produções com estas diferentes cepas. A história de como adquiriram estas cepas       será melhor retratada no subcapítulo da colaboração entre pares. Um problema       surgido entre as cepas na produção da Viela, adveio       da temperatura da       pasteurização do mosto, no ambiente da fábrica, pois apareceram na bebida a       presença do DMS (dimetil sulfeto), que é um dos off-flavors mais indesejados pelos               produtores de cerveja. Algumas cepas com as técnicas inerentes produziram o gosto       meio cru em demasia , outras favoreceram a presença do DMS. Atualmente as       brassagens deste estilo na cervejaria se concentram em um tipo de cepa, oferecida       pelo seu maior fornecedor, que funcionou de forma mais limpa. Esta foi selecionada       para procurar diminuir cada vez mais a presença do DMS no aroma do copo, por       mais sutil que seja a presença na última produção.   

Mesmo apresentando muitas vantagens com a utilização da levedura Kvetik,

       

algumas leveduras incitam um aprimoramento técnico na utilização das cepas, de       forma a trabalhar melhor no ambiente específico da cervejaria. O produtor cervejeiro       se encontra focado em desenvolver melhor uma técnica que contemple o equilíbrio       de três variáveis: a temperatura de pasteurização do mosto, a esterilização do mosto       e a não fervura do mosto. Dessa maneira o estudo está em adequar uma       temperatura e tempo de cocção que possibilite ao mesmo o trabalho com a       levedura sem produzir aromas indesejáveis e sem permitir microorganismos       patogênicos. Ainda existe um trabalho com mais algumas brassagens para o       aperfeiçoamento da produção e         correção da leve presença dos aromas       indesejáveis. Segundo ele, a adequação desse tipo de fermentação na cervejaria       se encontra na fase intermediária. A ideia de sempre modificar os tipos de cepas é       uma constante na sua forma de trabalhar e a técnica almejada consiste em adquirir a       competência de cocção ideal do malte. Este zelo demonstra que o processo de       adequação e a dominação da tecnologia cervejeira de uma determinada levedura       leva tempo e muito trabalho com diversos testes.