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Dos habitantes ao poder público: demandas rurais nos requerimentos e ofícios

CAPÍTULO 4 - AS DIVERSAS FACES DAS COLINAS DA REGIÃO NORTE

4.1 Dos habitantes ao poder público: demandas rurais nos requerimentos e ofícios

cidade, mas também a própria população que, mais do que qualquer instância citadina, vivenciava em seu cotidiano as modificações do espaço, bem como ausência de infraestruturas. Das reformas urbanas também emergiam problemas locais, como falta de manutenção em ruas e estradas, oferta de transporte para uns e ausência para outros.

Mas quem eram esses habitantes? Não devemos esquecer que nessa área estavam estabelecidos os “caipiras”, produtores rurais que, em maioria, se deslocavam até a cidade para vender produtos hortifrutigranjeiros no mercado conhecido como “dos Caipiras”.

Para esses, a dependência das estradas e do Tramway da Cantareira era de fundamental.

E como eram esses moradores? São poucas as imagens que mostram esses habitantes ou até mesmo usuários da linha. Duas imagens em especial podem nos dar alguns indícios de como eram esses atores sociais.

Figura 80 - Imediações do Tremembé, por volta de 1920. Na imagem, prováveis moradores da região do Tremembé, próximos à linha férrea Tramway da Cantareira. Podemos verificar que a região era formada por poucas construções e os aspectos rurais prevaleciam no período. Imagem: (GERODETTI; CORNEJO, 2005).

Na imagem acima, ao lado esquerdo, vemos prováveis moradores da região do Tremembé, posicionados ao lado da linha férrea, supostamente aguardando a passagem do trem, próximos ao que parece ser um banco de madeira. Observamos no primeiro plano um casal com um bebê no colo. Os dois aparentemente são negros. O homem utiliza traje social, similar ao usado por bilheteiros, sendo possivelmente um trabalhador do Tramway da Cantareira, uma vez que alguns moradores passaram a trabalhar como bilheteiros nos trens e estações ou na manutenção da ferrovia. A mulher, ao lado direito, utiliza um avental branco por cima da saia, o que indica realização de algum trabalho, fosse doméstico ou em alguma ocupação no comércio. Ao fundo, nota-se a reunião de um grupo de pessoas, entre homens e mulheres. O homem de costas, usando chapéu, parece segurar uma cesta, enquanto o que está ao lado, de camisa branca, encara a câmera.

A paisagem é formada por pequenas casas brancas, sendo uma, ao fundo, na direção dos trilhos, com uma chaminé. Uma linha telefônica se destaca ladeada aos

Bragantina, que ligava a cidade de São Paulo até o “interior”? Seria, talvez, a conexão telegráfica que se irradiava, como de costume, ao redor dos caminhos de ferro?

Algo que chama a atenção, ainda, é a presença da frondosa árvore. Na ausência de uma parada coberta, a sombra da árvore demarcava o ponto de encontro e, nos dias quentes fornecia abrigo.

Outra imagem que nos compete analisar é a de um cartão-postal da estação Cantareira, provavelmente do final do século XIX ou início do XX:

Figura 81 – Cantareira, com o trem chegando na estação. Ao lado esquerdo, um restaurante denominado Fabien, pertencente a Fabien Elichalt. Data: março de 1894. Ao centro, grupo de indivíduos próximos ao trem chegando na estação à direita, com algumas pessoas na plataforma. Imagem disponível em:

https://vitruvius.com.br/index.php/revistas/read/drops/17.118/6616. Acesso em: 11 jul. 2021.

Passemos para dois recortes da estação da Cantareira. Seriam passageiros ou trabalhadores da estação? Observemos:

Figura 82 – Estação Cantareira, da linha férrea Tramway da Cantareira. Imagem disponível em:

https://vitruvius.com.br/index.php/revistas/read/drops/17.118/6616. Acesso em: 11 jul. 2021.

Uma criança encara o fotógrafo, uma mulher, com avental, parece olhar para o homem da sua frente, de chapéu e um tímido sorriso. Os outros dois homens parecem ter parado seus trabalhos para posarem para a fotografia, vide o último, à esquerda da imagem, com as mangas do paletó um pouco acima dos punhos escurecidos. Além disso, uma vassoura, ao lado direito da imagem, parece ter sido encostada para que a fotografia fosse tirada, provavelmente estariam limpando a plataforma da estação, já que uma mancha de água escorre sob os pés do menino. No segundo recorte, reconhecemos duas crianças e três homens próximos à locomotiva, trabalhadores da linha férrea, posando para o fotógrafo.

Figura 83 – Crianças e homens ao lado do trem, na estação da Cantareira. Imagem disponível em:

https://vitruvius.com.br/index.php/revistas/read/drops/17.118/6616. Acesso em: 11 jul. 2021.

Nas três imagens com presença de indivíduos, notamos que se tratava de pessoas simples e trabalhadoras. Não sabemos seus nomes ou reais ocupações. Sabemos que estas imagens podem representar uma micro parcela dos atores sociais desse arrabalde, que expressavam em seus pedidos à edilidade formas de melhoria de condições. Portanto, estar na área rural não significava estar à margem social no que diz respeito às buscas de melhoramentos ou não ter conhecimento do que era novidade na cidade ou em outros arrabaldes.

No entanto, embora as queixas da área suburbana e rural fossem similares – como pedido de energia elétrica e abertura de linhas de bondes, a população rural raramente conquistava suas demandas apenas por abaixo-assinados, sendo que muitas solicitações foram atendidas somente no transcorrer da década de 1920 e 1930.

Esses habitantes solicitavam diversos serviços de obras públicas e particulares, direcionadas tanto para a esfera estadual como municipal. As petições, embora apresentassem anseios sociais, demonstram um caráter de participação maior no sentido de apontar problemas locais à Câmara, causadas por diversos fatores, fossem eles ausência de obras públicas ou falta de manutenção.

Ainda assim, para solicitarem estas demandas, a população rural deveria referenciar em seus pedidos os locais onde deveria haver intervenções do poder público por meio de indicação de logradouros, construções e seus respectivos números, lotes e bairros. Na área rural, um aspecto importante e facilitador para os poderes públicos era a referência dos quilômetros nas estradas devido à falta de outras referências, como numeração de prédios, que muitas vezes não estavam próximos às estradas, mas em meio às chácaras e sítios, ligados até a estrada principal por caminhos particulares não oficializados.

Diante destes pedidos, verificamos que na região Norte, espaço em que chácaras, sítios e pequenas casas eram ladeados por caminhos de terra e distantes entre elas, as estradas e estações do Tramway passaram a ser usadas como referências de localização destes habitantes e de construções110 quando o processo de abairramento na região ainda era incipiente.

Ainda assim, era difícil precisar a localização das construções neste espaço, como nos mostrou o caso de Eloy Motta Gomes, proprietário de um imóvel na área rural, em 1920. Em documento que Gomes assinou, figura a solicitação à Prefeitura Municipal de alvará de alinhamento, na Estrada da Cantareira, Parada Sete (ver imagem com indicação da estação, no capítulo 1), para construção de uma cerca de arame farpado. No entanto, retificou que a estrada referida não era a da Cantareira, mas a de “Sant’Anna”.

A confusão em relação às estradas levou o Diretor da Sessão de Obras a pedir ao requerente que comparecesse para esclarecer a situação do terreno, uma vez que sua localização não era precisa. Após este esclarecimento, o proprietário declarou à secretaria que “o terreno fica na parada 7 pegado a casa do requerente”, e se tornou claro que esclarecimento no jornal O Estado de S. Paulo, em 1915, um morador declarou que “[...] desde a presente data fico à disposição dos amigos em minha chácara, na estação de Mandaqui, onde fixo minha residência”

(19 de outubro de 1915, p. 9).

111 Arquivo Histórico Municipal. Fundo Prefeitura Municipal de São Paulo. Série Obras Particulares. 1920, processo nº 238855AS.

proprietário, levando a mudança dos referenciais pela própria Diretoria de Obras e Viação, provavelmente pela distância do terreno em relação às duas estradas indicadas, a fim de compreender a localização do terreno que seria alinhado. Neste caso, a indicação da Parada 7, nas proximidades do Horto Florestal do governo, foi importante para especificar a posição do imóvel junto à Estrada da Cantareira, bem como a referência à ferrovia Tramway da Cantareira.

Figura 84 – Estrada da Cantareira com estrada para Guapira, atual Avenida Maria Amália Lopes de Azevedo, em 1920. Ao fundo, nota-se uma construção identificada como a antiga fazenda do Tremembé, popularmente conhecida como “fazendinha” e que pertenceu à família Vicente de Azevedo. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo. Acervo Iconográfico. Imagem 2122.

Do mesmo modo, verificamos que determinadas solicitações de infraestruturas pela população rural entravam em confronto com interesses dos poderes públicos, uma vez que determinadas áreas passaram a ter atenção especial dessas esferas.

Um dos documentos consultados no Arquivo Histórico Municipal demonstra bem esta questão, quando um engenheiro pediu à prefeitura, em 1921, para que pudesse fazer,

“a custa própria, o estudo de uma reta que, partindo da estrada do “Pinhão” vai até o alto da Cantareira para servir aos sitiantes da “Samabaia” [sic], cujas terras, cultivadas em grande parte, prolongam-se do alto da Serra da Cantareira até o horto do Governo”.112 De acordo com o solicitante, este estudo para abertura de um caminho na Serra da Cantareira facilitaria o acesso dos moradores à ferrovia e aos mercados consumidores de seus produtos cultivados em pequenas lavouras.

O processo em tela mostra que a atividade pretendida pelo engenheiro também era interessante para a prefeitura, mas ela, no entanto, não concedeu a licença para “estudar a reta” porque atravessava terras particulares e principalmente do governo, alegando que a Procuradoria Fiscal da Câmara não saberia dizer se “por motivos de ordem higiênica, o governo se oporia à travessia de matas destinadas a proteger os mananciais da Cantareira”.113

O processo evidencia a importância da preservação pelo governo estadual das matas na Serra da Cantareira e a preocupação da prefeitura em não conceder uma licença que poderia criar conflitos, mas também demonstra que seus interesses em determinadas situações iam de encontro aos da população moradora da região.

Não eram apenas abertura de caminhos que ligassem às estradas principais ou às estações do Tramway da Cantareira que resumem as solicitações de obras públicas pelos moradores da área rural. A proximidade com a área consolidada como “cidade” e principalmente do bairro de Santana, cujas obras em melhoramentos urbanos aconteciam com maior frequência, levava a população rural a demandar outros serviços, estando entre eles, pedidos para construção de mercados públicos, cemitérios, prolongamento de linhas de bondes, abertura de estradas e iluminação elétrica.114

No entanto, muitas destas solicitações não eram atendidas pelos poderes públicos que, dentre outras alegações, afirmavam que o número de habitantes nesta região era

112 Arquivo Histórico Municipal. Fundo Prefeitura Municipal de São Paulo. Diretoria de Obras e Viação.

Série Obras Particulares, 1922, processo nº 48765P.

113 Ibidem

114 Informações evidenciadas por meio de requerimentos diversos, localizados na Biblioteca da Câmara Municipal de São Paulo. Disponível em: http://www.saopaulo.sp.leg.br/biblioteca/historicos. Acesso em:

13 nov. 2018.

áreas pouco habitadas.