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Dos Manuscritos econômico-filosóficos de Marx à análise ontológica da alienação

No denso estudo Marx: a teoria da alienação, Mészáros (1981) apresenta uma instigante discussão sobre essa categoria central no pensamento marxiano. A existência de uma suposta ruptura entre o jovem e o velho Marx no que se refere ao interesse por essa categoria é de pronto rechaçada por Mészáros (1981, p.23), ao assegurar que: “atribuir o conceito de alienação exclusivamente ao período de juventude é falsificar grosseiramente o „Marx maduro‟ /.../ solapando a unidade e coerência interna de seu pensamento”. Por isso, como justifica o autor, a estrutura da interpretação e avaliação do conteúdo dos Manuscritos econômico-filosóficos é a totalidade da obra de Marx. Essa perspectiva de totalidade deve ser adotada porque muitos elementos presentes nesse texto de juventude tornam-se claros apenas

em referência aos estudos da maturidade. (Interessante observar que, no caso de Lukács, o texto juvenil é que lançou nova luz sobre os escritos maduros e ajudou a esclarecer aspectos fundamentais do pensamento marxiano.). Essa, todavia, não é a única dificuldade ao se estudar os Manuscritos. Mészáros chama a atenção, especialmente, para a forma como algumas dificuldades do texto – por exemplo, a complexidade dos níveis teóricos – são disfarçadas por “formulações que parecem enganosamente simples”. Porém, adverte, “a menos que as formulações aforísticas sejam compreendidas em suas múltiplas interconexões filosóficas, os perigos de uma interpretação errônea são grandes”. (idem, p.13).

Como fatores contribuintes para a dificuldade de compreensão desse texto, Mészáros destaca: a fragmentação própria de uma obra incompleta190, a linguagem e a terminologia empregadas, a complexidade do conceito-chave: alienação e a estrutura dos Manuscritos. Em relação ao primeiro fator, é importante registrar o quanto os trechos isolados, embora relativamente fáceis de compreender, “só adquirem sua plena significação em relação ao sentido da obra como um todo”. Já a linguagem e a terminologia remetem para três tipos de problemas: i) a complexidade da tradução que gera dificuldades insuperáveis, mesmo para o melhor tradutor. Como salienta Mészáros (idem, p.14), “Tudo o que podemos esperar é uma aproximação razoável do original”; ii) a inadequação da estrutura conceitual, considerando a forte presença de tendências de empirismo e formalismo positivistas no campo filosófico as quais provocam uma dificuldade de entendimento das dialéticas categorias marxianas; iii) a ambiguidade terminológica derivada do fato de Marx atribuir novos significados a alguns termos próprios do discurso de seus contemporâneos, como Feuerbach, por exemplo. Porém, a dificuldade mais significativa é aquela relativa à complexidade do conceito de alienação. Já explicitamos essa dificuldade em relação à tradução dos termos alemães Entäusserung e Entfremdung. Entretanto, percebemos outro problema em relação a essa questão. Nos Manuscritos, Marx descreve quatro aspectos principais relativos ao conceito de alienação. Mas, nem sempre os estudos dedicados a esse texto reconhecem a existência desses quatro aspectos, o que compromete a compreensão do conceito como um todo e de cada aspecto particularmente, uma vez que eles são estreitamente articulados. O último fator mencionado por Mészáros, referente à estrutura dos Manuscritos, diz respeito à existência, nesse texto, de “uma estruturação muito mais homogênea do que uma primeira impressão poderia sugerir”. Bem mais do que trechos relativamente soltos, fragmentos e

190 “Os

Manuscritos de 1844” – esclarece Mészáros (1981, p.14) – “incluem extratos de livros, com breves

comentários, notas e reflexões sobre vários tópicos, de frouxo encadeamento, e até uma avaliação mais ou menos completa da filosofia hegeliana”.

observações esparsas, essa elaboração consiste, conforme Mészáros, num “sistema coerente de ideias”, “o primeiro sistema abrangente de Marx”, no qual cada ponto é “multidimensional”, ou seja: “liga-se a todos os outros pontos do sistema marxista de idéias [sic], que as determina tanto como é determinado por elas”. (idem, p.17).

Nessa elaboração juvenil, o conceito marxiano de alienação apresenta quatro aspectos principais. Conforme Mészáros (idem, p.16), são eles: i) “o homem está alienado da natureza”; ii) “está alienado de si mesmo (de sua própria atividade)”; iii) “de seu „ser genérico‟ (de seu ser como membro da espécie humana)”; iv) “o homem está alienado do homem (dos outros homens)”. O primeiro desses aspectos é assim descrito por Marx:

O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa /.../ em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; que quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador. (MARX, 2004, p.82).

Esse aspecto expressa, portanto, a alienação do homem na sua relação com o meio exterior, com a natureza. Marx afirma que o homem nada pode produzir sem a natureza. Sua própria constituição, enquanto ser objetivo e vivente, exige uma contínua interação com a natureza, possibilitada pela mediação do trabalho. No trabalho alienado, todavia, essa relação torna-se não um fator de humanização, mas promotora da desumanização humana. O homem se relaciona com o produto do seu trabalho como algo hostil, no qual ele não se reconhece e, ademais, num objeto que se volta contra o próprio criador e o domina. Porém, não é somente no produto do seu trabalho que se efetiva a alienação do homem. O próprio processo de trabalho, assentado sobre relações pautadas na propriedade privada dos meios de produção, torna-se uma forma de alienação. Sobre a alienação no ato da produção, Marx assinala:

que o trabalho é externo (äusserlich) ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha em, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. (idem, p.82-3; grifos no original).

Enquanto a primeira característica expressa a alienação no produto do trabalho, a segunda traduz-se pela auto-alienação do homem, sua alienação no processo de trabalho. Esse ato fundamental na produção da vida humana e na constituição da sua sociabilidade revela-se

como uma fonte de desumanização. A própria atividade executada não proporciona qualquer satisfação ou engrandecimento ao homem, significa apenas um meio para satisfazer suas necessidades genuínas. A abstração da força de trabalho e sua transformação em mercadoria – criando para o homem a possibilidade de vendê-la – torna o trabalho apenas um meio de satisfazer carências e não um fim em si mesmo.

Em relação à terceira característica, é importante, inicialmente, assinalar o quanto o caráter genérico do homem é enfatizado por Marx. “O homem é um ser genérico (Gattungswesen), não somente quando prática e teoricamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do restante das coisas, o seu objeto, mas também” – continua o filósofo alemão – “quando se relaciona consigo mesmo como [com] o gênero vivo, presente, quando se relaciona consigo mesmo como [com] um ser universal, [e] por isso livre”. (idem, p.83-4; grifo no original). Nesse sentido, o filósofo acrescenta: “O engendrar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica é a prova do homem enquanto um ser genérico consciente, isto é, um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser genérico”. (idem, p.85; grifos no original). A atividade humana vital, o trabalho que realiza a mediação do homem com a natureza e possibilita a edificação de um mundo humano, distingue não apenas a atividade do homem e aquela realizada pelo animal – enquanto este se limita a produzir em conformidade com sua espécie, seguindo determinações biológicas, o primeiro produz universalmente –, mas, sobretudo, a sua forma de relação com o gênero, sua afirmação como ser genérico. O trabalho alienado, porém, aliena do homem o próprio gênero humano, pois, “Faz-lhe da vida genérica apenas um meio da vida individual. Primeiro, estranha a vida genérica, assim como a vida individual. Segundo, faz da última em sua abstração um fim da primeira, igualmente em sua forma abstrata e estranhada”. (idem, p.84; grifo no original). Mészáros (1981, p.16) refere-se a esse aspecto como “a alienação da „condição humana‟ no curso de seu aviltamento através de processos capitalistas”.

A quarta característica é a consequência daqueles três primeiros aspectos – a alienação do objeto, a autoalienação no processo de trabalho e a alienação do gênero – agora referidos à relação do homem com outros homens. Esta última aparece como consequência das três primeiras, como assinala Marx (idem, p.85-6):

uma consequência imediata disto, de o homem estar estranhado do produto do seu trabalho, de sua atividade vital e de seu ser genérico é o estranhamento do homem

pelo [próprio] homem. Quando o homem está frente a si mesmo, defronta-se com ele o outro homem. O que é produto da relação do homem com o seu trabalho, produto

de seu trabalho e consigo mesmo, vale como relação do homem com outro homem, como o trabalho e o objeto do trabalho de outro homem. (grifos no original).

Sintetizando o que expomos até aqui, concordamos com a seguinte assertiva de Mészáros: “Assim, o conceito de alienação de Marx compreende as manifestações do „estranhamento do homem em relação à natureza e a si mesmo‟, de um lado, e as expressões desse processo na relação entre homem-humanidade e homem-homem, de outro”. (1981, p.17; grifos no original). A exposição desses quatro aspectos esclarece o significado da alienação em Marx: “O trabalho, que deveria ser uma propriedade interna, ativa, do homem, em consequência da alienação capitalista se torna exterior ao trabalhador /.../”. Essa mudança produz, inevitavelmente, uma transformação também no significado da objetivação, pois, “A objetivação em condições nas quais o trabalho se torna exterior ao homem assume a forma de um poder estranho que enfrenta o homem de uma maneira hostil”. (idem, p.141; grifos no original). Aqui, sem dúvida, se apresenta um dos pontos fundamentais para a mudança conceitual operada no universo lukacsiano: a distinção entre objetivação e alienação, levando à compreensão de que nem toda objetivação produz alienação.

Outro ponto importante que extraímos da análise de Mészáros sobre a teoria da alienação em Marx refere-se a um aspecto central dessa teoria: “a afirmação da superação, historicamente necessária, do capitalismo pelo socialismo, uma concepção liberada de todos os postulados morais abstratos encontrados nos escritos de seus antecessores imediatos”. Esses “postulados morais abstratos” também se encontram na elaboração lukacsiana de 1923. Como percebemos, sua proposta de superação fundamentava-se num messianismo utópico e idealista, cuja base concretamente tangível estava definitivamente ausente desde o início. Bastantes diferentes são os termos nos quais o tema é tratado por Marx. Como explicita Mészáros (idem, p.61):

A base de sua [de Marx] afirmação não foi simplesmente o reconhecimento dos insuportáveis efeitos desumanizadores da alienação – é claro que subjetivamente isso teve um papel muito importante na formação do pensamento de Marx –, mas o profundo entendimento da base ontológica objetiva do processo, que não foi percebida pelos seus predecessores. (acréscimos nossos).

A percepção dessa “base ontológica objetiva do processo” resulta, para Lukács, numa verdadeira reviravolta de seus conceitos e concepções. Especialmente, sua compreensão acerca da alienação sofre os efeitos do impacto avassalador produzido pela leitura dos Manuscritos de Marx. Aqueles pontos de distinção entre a concepção de alienação presente em História e consciência de classe e em Para uma ontologia do ser social, reiteramos, encontram sua raiz justamente na impostação ontológica possibilitada por esses escritos

marxianos. Na sua obra póstuma, o complexo da alienação é examinado à luz de uma perspectiva ontológica, revelando características e peculiaridades completamente ausentes do universo conceitual de 1923. Passaremos ao exame dos aspectos centrais da concepção de alienação contida na Ontologia.