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4. INSUFICIÊNCIA DO PROCESSO TRADICIONAL BRASILEIRO

4.4. A doutrina brasileira do habeas corpus

O habeas corpus foi o primeiro remédio processual de tutela específica dos direitos e garantias individuais que surgiu no Direito brasileiro. A Constituição Federal de 1891, em seu

art. 72, §22 dispunha: “dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em

iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder”.

Foi a ausência de menção à liberdade de locomoção no dispositivo constitucional que deu ensejo à chamada “doutrina brasileira do habeas corpus”. Em nível infraconstitucional22

, o habeas corpus já havia sido previsto pelo art. 340 do Código de Processo Criminal de 1832, que, de forma mais restritiva, garantia: “todo cidadão que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em, sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de – habeas corpus – em seu favor”23.

Em razão da distinção do tratamento dado ao instituto pela Constituição, a doutrina, também incentivada por Rui Barbosa, percebeu a possibilidade de um alargamento da utilização do habeas corpus, para garantir não simplesmente a liberdade de locomoção, mas também a liberdade individual em sentido mais amplo. Bem da verdade, três correntes de interpretação surgiram.

A primeira, capitaneada por Rui Barbosa, defensor incansável das liberdades públicas, afirmava que com a ampliação dada ao habeas corpus na Carta Republicana, o remédio não estaria mais apenas circunscrito aos casos de constrangimento corporal e que poderia ser pedido e concedido em todos os casos de ilegalidade ou abuso de poder e que resultasse em qualquer tipo de violência ou coação, ainda que meramente moral. Se a Constituição não havia particularizado os direitos, que, com o habeas corpus, queria proteger, estaria claro seu propósito em garantir qualquer direito.

Foi nesse contexto que Rui Barbosa criou a escola anglo-saxônica, que se encarregou de interpretar as instituições constitucionais dos Estados Unidos do Brasil, sobretudo o funcionamento do federalismo político e do sistema judicialista, a partir das normas da América do Norte e da Grã-Betanha (CAETANO, 1975, p. 29).

Arnold Wald (1968, p. 34), também citado por Leyser (2002, p. 39) dizia:

(...) a ampliação do remédio processual não foi mera especulação de jurista romântico, nem teve sentido demagógico. Estava muito intimamente ligada ao desenvolvimento político de nosso povo. Visava assegurar ao Brasil, dentro de certos limites, os respeito aos direitos individuais, restringindo o arbítrio do executivo e dando ao judiciário a função

22 A Constituição de 1824, embora contivesse capítulo relativo aos direitos individuais, por influência da

Declaração dos Direitos do Homem, não contemplou o habeas corpus, que foi introduzido no ordenamento jurídico por lei ordinária.

23 Vale ressaltar que durante o Império, embora limitado a garantir a liberdade física, o habeas corpus foi

empregado não apenas no campo do direito criminal, mas também na esfera cível. Em exemplo de Pontes de Miranda, Talamini (2002, p. 306) se refere a dois interessantes acórdãos em que concedida a ordem para assegurar a liberdade de escravos libertos por meio de cartas de alforrias duvidosas e remetidas às partes interessadas às vias ordinárias para provar que o ato de libertação havia sido indevido.

fiscalizadora da aplicação da Constituição e das leis, que lhe pertence dentro de nosso sistema. A discussão teórica não constituíra, pois, mera figura ou sutileza jurídica, mas tivera destacada repercussão política na realidade viva do Brasil, como posteriormente haveria de suceder com o mandado de segurança, que iria moldar a realidade orgânica de nossas instituições.

A segunda corrente restringia o habeas corpus à exclusiva defesa da liberdade de locomoção.

Já a terceira corrente, intermediária, sustentava que o habeas corpus poderia proteger não apenas a liberdade de locomoção, mas também todas as situações em que a ofensa à liberdade de locomoção fosse meio de afronta a outro direito. Tinha como um de seus defensores mais importantes o Ministro do Supremo Tribunal Federal Pedro Lessa, que trazia a seguinte situação como exemplo no HC 3.567, de 1º/07/1914:

(...) a restrição à liberdade religiosa efetivada mediante proibição de ingresso no templo seria atacável por habeas corpus; no entanto, este remédio não poderia ser utilizado para combater afronta à mesma liberdade de religião que se concretizasse pela destruição de objetos de culto, pois, nessa segunda hipótese, não se cogitaria de violação a direito de ir, vir ou ficar. (citado por TALAMINI, 2002, p. 308).

Diante da ausência de previsão legal pelo ordenamento jurídico brasileiro de outros remédios, específicos para a tutela de direitos de natureza diversa do direito de locomoção, a jurisprudência passou a oscilar entre as teses de Rui Barbosa e de Pedro Lessa, o que se justificava, inclusive, pelo fato de nenhuma outra ação possuir a rapidez e eficiência do habeas corpus.

Alguns exemplos da utilização do habeas corpus naquele contexto são trazidos por Arnord Wald, são eles: em favor dos bicheiros e meretrizes, a fim de impedir o exame de livros comerciais e o segredo da escrita comercial, para garantir a liberdade profissional e o exercício de cargos públicos eletivos, a fim de permitir a prática de culto espírita, para garantir direito de reunião, a fim de reformar sentenças, para permitir a mulher que seguisse o marido em seu domicílio não obstante a oposição dos seus pais (citado por REMÉDIO, 2009, p. 167). Outros exemplos, citados por Talamini (2002, p. 307), foram: combater indevidos cancelamentos de matrículas em escola, assegurar a realização de comícios eleitorais, fazer circular jornal, e, uma ordem obtida pelo próprio Rui Barbosa em seu favor, para, como parlamentar, poder publicar seus discursos no Congresso também em outros jornais, que não o Diário Oficial.

A ausência de menção à liberdade de locomoção no dispositivo referente ao habeas corpus da Constituição de 1981 e a sua conseqüente utilização na tutela de outros direitos levou Sidou a sustentar que o mandado de segurança nasceu nessa Constituição e não na Constituição de 193424.

Os Tribunais, com o tempo, porém, diante da crescente demanda dos casos submetidos à apreciação do Judiciário com ampliação do habeas corpus a outros direitos individuais, passaram a enfrentar o assunto com cautela, voltando a limitar sua utilização aos casos de violação à liberdade de locomoção.

Por fim, as discussões sobre o âmbito de cabimento do habeas corpus esvaziaram-se na Reforma Constitucional de 1926, que deu nova redação ao §22º do art. 72, nos seguintes termos: “dar-se-á o hábeas corpus sempre que alguém sofrer, ou se achar em iminente perigo de sofrer, violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de

locomoção”. A Constituição passou, portanto, a restringir expressamente seu âmbito de

cabimento à proteção da liberdade de locomoção.

Parte da doutrina, sem recursos argumentativos diante da clareza do texto constitucional, buscou ressuscitar a tese da utilização dos remédios possessórios para tutela de direitos pessoais, o que, todavia, não mostrou muito êxito. A restrição do habeas corpus à sua função histórica tornou urgente a criação de outro remédio constitucional que preenchesse a lacuna deixada pela destruição que a reforma constitucional tinha operado sobre a obra jurisprudencial até aí realizada (CAETANO, 1975, p. 29).

24 “De quanto ficou exposto sobre a consagração constitucional do habeas corpus, pode-se induzir que o primeiro constituinte republicano erigiu um instituto protetor dos direitos coletivos cimentado em histórico suporte, filiando-se assim ao sistema monista da garantia dos direitos sem buscar modelos nem se inspirar na contribuição alóctone. Não se limitou a elevar o habeas corpus de sua condição de remédio penal a recurso constitucional. Criou um instituto em defesa da liberdade pessoal e, consequentemente, de todos os demais direitos que por meio dela se exercitam, o qual exigia naturalmente curso célere, e neste propósito, neste único propósito, aplicou-lhe o nome prestigioso, marcado inequivocadamente pela característica da celeridade. Se é certo que ninguém jamais entendera de aplicar o habeas corpus a não ser para proteger a liberdade corpórea, também não admite desacordo sério afirmar ao lado de Kent que todo constrangimento à liberdade do indivíduo equivale, aos olhos da lei, à prisão, qualquer que seja o meio utilizado para efetivar a coação. Não cremos tenham-se excedido os constituintes republicanos do fim do século passado utilizando o nome do habeas corpus para o garantidor brasileiro da liberdade. Short-Mellor definem o habeas corpus – „processo legal que se aplica para fazer valer sumariamente o direito de liberdade pessoal, quando ilegalmente restringido, processo extensivo a todos os casos de prisão ilegal, por ordem de autoridade pública ou violência de um particular‟.

Do enunciado só é possível concluir que a liberdade pessoal é um continente, conceito amplo, capaz de ser restringido ilegalmente inclusive, conceito restrito, por prisão. A filosofia em que o princípio assenta é velhíssima. Já sentenciava Venulejo, nos Interdictorium (D., 43.29.2): „Não se diferenciam muito dos escravos aqueles a quem não se dá a liberdade de ir por onde queiram.‟.

Portanto, à luz do entendimento extraído dos próprios mestres de idioma inglês, o habeas corpus pode ser ampliado na medida em que se exija dele garantir a liberdade individual. Apenas o que não pode é ter restringida a condição sumária em seu deferimento.” (SIDOU, 1989, p. 170).

O problema só seria superado com a Constituição de 1934, com a criação do mandado de segurança. Nas palavras de Theodoro Júnior (2010, p. 5), em determinada fase histórica, o direito constitucional brasileiro assumiu a consciência de que não apenas o direito de ir e vir era merecedor da tutela por um remédio jurisdicional específico contra as arbitrariedades dos agentes do Poder Público, também era necessária a reparação imediata e enérgica das violações de outros direitos, a par da liberdade pessoal.