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Os retratos de Germânico César e de Domício Corbulão apresentam vários pontos de contato. Evidentemente, porque foram ambos comandantes militares sob o Principado, mas também porque alguns pontos de sua conduta e história se assemelham. Ambos exerceram suas carreiras nos limites romanos da Germânia, ambos garantiram a seu respectivo princeps o título de imperator. Seu prestígio e reputação custaram-lhes a vida e isso demonstra que “a uirtus do bom comandante era do imperador”. O retrato dos dois comandantes ilustra as consequências que a uirtus ocasiona num período em que só o príncipe, o imperator, podia dispor da gloria militaris, tendo sua inveja despertada quando o outro rivalizasse com ele. Com efeito, todos esses elementos também estabelecem relações com o retrato de Agrícola em suas funções militares, o que reafirma a lógica imperial quanto aos homens que, pela uirtus, obtiveram reputação e glória militar.

A despeito dos pontos negativos que se encontram em Germânico e Corbulão, acreditamos que seus respectivos retratos ilustram homens de uirtus, embora essa seja reescrita de diferentes maneiras. O conjunto vocabular que vimos na composição dessas duas personagens aponta majoritariamente para uirtutes imperatoriae semelhantes, mas veem-se algumas diferenças que agregam nuanças às suas condutas. Em Germânico, a presença de fauor, comitas e ciuile ingenium reveste sua uirtus de características republicanas que deveriam ser essenciais ao princeps, mas que se perderam. Embora nele sejam ainda exemplo, contribuem para o perigo. Ali, vimos também a importância que Tácito confere ao obsequium, mas em menor medida do que vimos nos contextos senatoriais. Ou seja, embora Germânico seja pintado como os antigos republicanos e traga consigo virtudes que remetem a essa época, há o reconhecimento do momento presente pela ideia do obsequium, da modestia.

Em Corbulão, suas virtudes revelam um éthos em grande medida colado a modelos passados. Tácito não usa o termo uirtus no singular para se referir a ele, mas o

75 ASH, 2006, p. 373-4: “Where Lucullus is strict, Corbulo is relentlessly cruel, and where Lucullus sacrifices his own personal glory to save Roman lives, Corbulo puts his own reputation above everything else”.

vocabulário de seu retrato é uma forma de reescritura desse mesmo conceito ou, pelo menos, da uirtus-uirilis, para usar os termos de Balmaceda, tendo em vista os demais caráteres que temos observado. Com efeito, sua imagem é fortemente ligada ao passado, quando comparado aos comandantes Luculo e Pompeu. Germânico, por sua vez, é equiparado a Alexandre, reforçando não só o valor do passado, mas sua pertença à dinastia. Essas imagens, pensamos, reforça que a uirtus que Tácito representa por meio das personagens faz referência a um passado que só pode ser rememorado e não praticado no presente. Podemos chamar a atenção para o fato de que a uirtus de Germânico muitas vezes foi associada à memória e a de Corbulão, por outro lado, enunciada primeiramente a partir de qualidades aparentes, mas também sempre relativas a um tempo que se foi. Nesse sentido, uma tal uirtus associada ao passado, ainda que manifestada por eles em sua época, encontra cada vez menos a possibilidade de acontecer na realidade presente do Principado. É aí que virtudes utilizadas apenas no retrato de Agrícola entram em ação:

abstinentia, moderatio, constantia (nomeada apenas em relação a ele), por exemplo. As

qualidades da restrição fazem parte da expressão e reescritura da uirtus que se permite representar à medida que se avança o Principado, e possibilitam acomodar a uirtus de um general republicano ao regime imperial.

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APÍTULO

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VIRTVS EM TEMPOS DE GUERRA

As Histórias apresentam uma série de personagens cujos retratos ilustram a percepção taciteana quanto ao estado do Império romano após a morte de Nero. A caracterização nesta obra acaba por trazer características e condutas muito particulares sobretudo por causa do contexto narrativo: a guerra civil de 69. Dos cinco livros que nos chegaram, os três primeiros se referem aos eventos deste ano, que compreendem desde a assunção de Galba como imperador ao início do principado flaviano.1 Por isso, destaca- se na obra a figura dos generais e seus exércitos, cujo papel na busca pelo poder imperial é decisivo.2 Temporalmente iniciando-se com o consulado de Servílio Galba e Tito Vínio, o cenário narrativo das Histórias se fragmenta pelos espaços do Império que Tácito descreve nos capítulos introdutórios do primeiro livro, apresentando os respectivos comandantes de cada província.3 Sabe-se que Vitélio encabeçava a Germânia inferior;4 Licínio Muciano comandava quatro legiões na Síria.5 Na Judeia, encontrava-se Flávio Vespasiano, que administrava três legiões.6 Essas figuras estavam diretamente envolvidas na disputa pelo principado após a morte de Galba, engendrada por Oto. Junto a essas personagens, sobressaem-se ao longo da narrativa os chefes militares: Cecina Alieno, Fábio Valente e Antônio Primo, sendo os dois primeiros legados das legiões germânicas e, portanto, subordinados a Vitélio e o último, legado das tropas flavianas. É o retrato dessas personagens que analisaremos neste capítulo, levando em consideração o vocabulário empregado pelo historiador e o que ele nos diz sobre a manifestação da uirtus nesse cenário.

Antes de entrarmos na análise propriamente dita, é importante notar que a organização deste capítulo se distingue de alguma forma dos anteriores. Essa breve introdução demonstra a quantidade de personagens que foram peças fundamentais durante a guerra civil e, de fato, os livros que nos chegaram focam, sobretudo, no contexto

1 Sobre a organização da obra, Ash (2009, p. 88); Syme (1958, p. 145 e ss.), e os comentários de Ash (2007); Damon (2003); Chilver, (1979). Veja-se sobre o período da guerra civil do ano de 69 d.C., Cosme (2012), e sobre as digressões quanto às formas de governo nessa obra, vide Silva (2015).

2 Ash (1999) desenvolve uma minuciosa análise sobre a imagem e o papel dos exércitos nas

Histórias.

3 TAC., Hist., 1.8-11.

4 Hordeônio Flaco era encarregado da Germânia superior, um homem sine constantia, sine

auctoritate. TAC., Hist., 1.9.1.

5 Além disso, Tácito relata que Tibério Alexandre comandava tropas na África e Clódio Macro, no Egito. TAC., Hist., 1.11.1-2.

marcial. À exceção dos livros 4 e 5, há poucos momentos em que o foco narrativo está no que acontece em Roma, sobretudo, no senado. No intervalo de um ano, a narrativa se desloca por diversos espaços do Império para mostrar a disputa pelo poder, que muda de mãos a cada período de uns poucos meses. Isso significa que os imperadores nesse espaço de tempo são também retratados enquanto governadores e chefes militares. Eles, ainda que reconhecidos como princeps pelo senado, atuaram nos campos de batalha, diferentemente dos príncipes da dinastia Júlio-claudiana, cuja glória militar advinha do sucesso dos cônsules e procônsules. Com efeito, Tácito considera que, na realidade do ano de 69 d.C., príncipes poderiam ser feitos em qualquer lugar que não em Roma. Considerando essa especificidade, analisaremos os retratos dos imperatores Galba, Oto, Vitélio e Vespasiano, a fim de observar a caracterização daqueles que buscaram reinar sobre o império.

Tendo em vista as questões acima, organizaremos o capítulo em três seções, a saber: a. retratos de Galba, Oto e Vitélio; b. retratos dos legados de legião Fábio Valente e Cecina Alieno; e c. retratos do legado Antônio Primo e dos governadores Muciano e Vespasiano. Essa configuração parece dar conta de introduzir e refletir sobre a imagem de Galba, Oto e Vitélio, que disputaram o poder no intervalo de um mês, saindo vencedor Vitélio. Com esses retratos, podemos observar a caracterização daqueles que asseguraram sua vitória, isto é, Fábio Valente e Cecina Alieno. Por fim, analisaremos o retrato do exército flaviano, composto por Antônio Primo, Muciano e Vespasiano, do qual será o império, dando início, assim, a uma nova dinastia.