• Nenhum resultado encontrado

Hellegouarc’h argumenta que a uirtus sob a República era um “elemento intelectual e moral da nobilitas”, entendida como um “conjunto de qualidades pessoais de inteligência e da alma que podem criar uma capacidade política”.67 Nesse sentido,

afirma Earl, uirtus é frequentemente associada a qualidades morais como “frugalidade, afabilidade, simplicidade e coragem; honestidade e modéstia, bom senso e prudência”.68

De acordo com essa definição, sabe-se que até determinado momento a manifestação de uirtus era possível apenas pela nobilitas, uma classe que dispunha de

genus, diuitiae e opes, ou seja, origens, riquezas e forças. Além disso, seus membroseram favorecidos pela fortuna; geralmente chegavam a exercer o consulado. No entanto, para isso, essa classe aristocrata deveria demonstrar uirtus, nesse caso advinda não de qualidades pessoais, mas da fama adquirida pelo renome familiar e pelo serviço à República, perpetuados como exempla na tradição encomiástica e louvados nos elogios fúnebres, como já comentamos.69 Como a priori a concepção de uirtus não levava em conta a ideia de virtude como um traço pessoal, excluía aqueles não pertencentes à nobreza. Contudo, ao fim da República, essa ideia será reinterpretada devido à reivindicação dos homines noui pelo acesso ao consulado e, nesse sentido, também pelo direito de se distinguirem pela uirtus, visto que dispunham de virtudes próprias, como indivíduos: as virtudes pessoais passaram a ser mais reconhecidas do que o genus, ou

66 Vale notar que também Salústio, no prefácio de A conspiração de Catilina, considera a escrita da história, carreira que escolheu, uma forma de se tornar ilustre e obter gloria. Vide Scatolin (2015, paginação irregular).

67 HELLEGOUARCH, 1963, p. 242: “l’ensemble de qualités personnelles d’intelligence et d’âme qui peuvent créer une capacité politique”.

68 EARL, 1967, p. 71: “frugality, agreeability, simplicity, and courage; honesty and modesty; good sense and prudence”.

69 Com a reivindicação do consulado pelos homines noui, as virtudes individuais passam a ser mais importantes e a integrarem mais claramente a compreensão de uirtus. Além disso, no Principado, com a presença desses homens no consulado, a ideia de nobilitas perde importância. Vide Earl (1967, p. 49 e ss.). Cf.: BADEL. C. La noblesse de l’Empire Romain: les masques et la vertu. Seyssel: Champ Vallon, 2005.

seja, a linhagem ou a família.70 Cícero evidencia essas questões ao falar de Catão, o Velho, destacando o fato de ele ser nouus, mas um exemplo de industria e uirtus, no primeiro livro do Sobre a república, 1.1: “Na verdade, a Marco Catão, homem desconhecido e novo, por quem, – como um modelo para todos nós que nos dedicamos às mesmas coisas – somos, por assim dizer, conduzidos à ação e à virtude” (M. uero

Catoni homini ignoto et nouo, quo omnes qui isdem rebus studemus quasi exemplari ad industriam uirtutemque ducimur).71

Além dos exemplos citados sobre o enfoque e importância nas virtudes pessoais para a manifestação da uirtus, o discurso de Mário, em Salústio, é outra fonte romana que ilustra essa disputa política e ideológica.72 Citamos um breve trecho que condensa a questão em debate:

Maiores eorum omnia quae licebat illis reliquere, diuitias, imagines, memoriam sui praeclaram; uirtutem non reliquere, neque poterant: ea sola neque datur dono neque accipitur.

Legaram-lhes os antepassados tudo que lhes foi possível: riquezas, imagens, um passado ilustre; virtude é que não lhes legaram e nem podiam; é a única coisa que não se dá nem se recebe de presente.73

Salústio evoca esse questionamento da uirtus da nobreza na obra A guerra de

Jugurta. No longo discurso do general Gaio Mário, cônsul diversas vezes depois que

entrou na carreira política, há diversas acusações à nobilitas, que não faz jus ao título de

uirtus. No excerto acima, Mário evoca elementos característicos dessa classe, já

mencionados, que contribuem para a transmissão de uma gloria maiorum numa mesma família, cuja uirtus torna-se conhecida e um exemplo à posteridade. Nos últimos anos da República, ainda que tenha havido uma alteração da ideia de uirtus em relação à classe social, mantém-se em sua concepção a ligação entre tal qualidade e o serviço à res

publica.74 Sua manifestação só existe, portanto, pela realização de grandes feitos, pela

prova de uma conduta exemplar a serviço do bem público, o que leva à glória. Esses

70 Cf. MARTIN, P. M. Le mos maiorum et l’idéologie popularis. In: BAKHOUCHE,B. L'Ancienneté

chez les Anciens I. La vieillesse dans les sociétés antiques: la Grèce et Rome. Montpellier: Publication

Montpellier 3, p. 155-168, 2003,

71 Tradução de Isadora Prévide Bernardo. Além de Cícero, também Salústio e Tito Lívio descrevem em suas obras essa transformação ideológica acerca da manifestação de uirtus. Vide o estudo de Balmaceda (2017) sobre uirtus nestes dois historiadores e Sarsila (1981).

72 Cf. SECQ, F. An Analysis of Gaius Marius’ Speech in Bellum Jugurthinum 85. Disponível em:

https://www.academia.edu/9254942/An_Analysis_of_Gaius_Marius_Speech_in_Sallust_Bellum_Jugurth inum_85. Acesso em 20.10.18.

73 SAL., Jug., 85.38. Tradução de Antônio Silveira Mendonça.

homens, em geral, serão dignos de exemplo. Ainda que houvesse figuras exemplares ao fim do período republicano, as obras de Tito Lívio e Salústio relatam a corrupção dos valores pessoais e como vícios, como a luxúria e a ambição, tomaram conta da sociedade, que não teve mais medidas na busca pelo poder.75 Nesse contexto, Augusto se apresenta como um grande líder capaz de colocar ordem na casa após os prejuízos da guerra civil.

Ao assumir esse papel, sob o título de princeps senatus, Augusto será honrado com um escudo em que a uirtus se inscreve e a ele pertenceria toda a gloria dela advinda. Como vimos anteriormente, Augusto será dotado de qualidades tradicionais romanas, representando o poder tanto militar, quanto de governo. Com isso, ao longo do Principado desenvolve-se esse sistema em que apenas ao imperador pertence a glória militar e a manifestação da uirtus: é do mais alto líder que se espera a manifestação de um caráter e conduta exemplares. Dessa forma, a aristocracia imperial, seja nobilitas ou homines noui, perde o direito de expressar seu valor nesse novo regime mesmo quando a serviço da res

publica, algo que será acentuado ao longo do Principado. Com efeito, embora a uirtus

estivesse intimamente associada à representação do imperador, outros – parte do senado ou homens militares – também acabavam por demonstrar suas virtudes individuais, uma vez que a conquista da gloria ainda permaneceu sólida na cultura imperial. Assim, aqueles que a alcançavam, punham-se provavelmente em risco, tornando-se uma ameaça à soberania do princeps, ao demonstrar a uirtus que só ele deveria deter. Quando a aristocracia imperial dá provas de seu valor, ela rivaliza com o príncipe romano.76

A obra de Tácito, nesse contexto, lega uma memória sobre a manifestação da

uirtus nesse novo sistema político. Nosso intuito é verificar os procedimentos pelos quais

o historiador representa a uirtus dos agentes atuantes sob o Principado. É notável que os prefácios taciteanos indiquem a importância que o autor confere a esse tema: vê-se a preocupação em dar lugar à memória de exempla uirtutis. Porém, se a uirtus pertencia ao príncipe, como Tácito observa tal valor em outros atores históricos? Nesse sentido, perguntamo-nos, o que é a uirtus na obra taciteana? Com efeito, em Tácito, encontraremos pouco a atribuição direta do termo uirtus a alguma personagem. Entretanto, as considerações que expusemos sobre esse conceito nortearão nossa análise. As proposições ciceronianas sobre a uirtus, por exemplo, bem como os retratos elaborados por Salústio, oferecem recursos de análise na medida em que Tácito parece

75 MARQUES, 2007, p. 183. 76 SAILOR, 2008, p. 52.

lançar mão de um vocabulário republicano para tratar da uirtus. Todavia, nossa tese é de que por meio de um mesmo conjunto lexical, o historiador reescreve a uirtus sob o Principado.

Para verificar tal hipótese, escolhemos como corpus os retratos de personagens secundárias em Tácito. Interessa-nos sobremaneira observar a construção daqueles que interagem com o príncipe e que eventualmente se tornaram um exemplum. No entanto, antes de apresentarmos as personagens que analisaremos, é necessário introduzir algumas questões a respeito das relações que percebemos entre o exemplum, um recurso comum à obra historiográfica antiga, e a uirtus na obra taciteana.