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O tema do duplo em literatura parece um daqueles temas sempre atuais. Se é assim é porque deve capturar aspectos essenciais da vida. Começando com os gregos, Édipo é um duplo, ao mesmo tempo justiceiro e criminoso, um decifrador de enigmas e ele próprio um enigma. Prossegue tempos afora nas peças de Plauto, Shakespeare, Molière; nos contos de Hoffmann, Poe, Maupassant; nas novelas de Stevenson, Dostoiévski, Wilde.

Essa é uma relação de autores mais conhecidos que versaram sobre o tema. Ela poderia estender-se por tantos outros nomes, mas isso não vem ao caso para o objetivo que temos em vista. Otto Rank talvez tenha sido o pioneiro na empreitada de relacionar obras e autores que trataram do assunto. Sua atenção recai sobre obras e autores do romantismo, mais especificamente do romantismo alemão.

De fato, o romantismo foi o momento em que o tema do duplo mais se desenvolveu. A subjetividade enlouquecida flagrou dentro de si um outro eu, um estranho, um inimigo, um perseguidor, a consciência culpada, em suma, os demônios interiores lutavam por assumir o lugar de um eu que deixou de ser soberano. A abordagem psicanalítica de Otto Rank, um ex-discípulo de Freud, associa de modo direto personagens de ficção e biografia dos escritores, estados mórbidos de uns e outros. A respeito dos últimos,

“They suffered – and obviously so – from psychic disturbances or neurological and mental illness, and during their lifetimes they demonstrated a marked eccentricity in behavior, wheter in the use of alcohol, of narcotics, or in sexual relations.”(RANK, 1971, p. 35)

E começa a desfiar as patologias mentais de que seriam portadores. Hoffmann assim como Maupassant eram produtos de mãe histérica. Jean Paul enfrentou graves traumas psíquicos em sua luta pela expressão criadora. Poe era um dependente químico, viciado em álcool e ópio. Dostoiévski, uma personalidade excêntrica, que sofria de doença histérica com acessos pseudoepilépticos.

A representação do duplo em Esaú e Jacó e Dois irmãos não é a do romantismo. Ao contrário do eu romântico, cindido e ameaçado de aniquilamento por um igual e inimigo que está sempre ao seu encalço, o motivo do duplo nos romances significa uma

abertura para o mundo, “já não significa um empobrecimento, uma nadificação do ser, mas uma possibilidade de enriquecimento.”(BRAVO, 2005, p. 287). O texto de Otto Rank, de todo modo, fixa uma espécie de característica comum às várias formas com que se apresenta, nas quais “the double is the rival of his prototype in anything and everything, but primarily in the love for woman.”(RANK, 1971, p. 75). A rivalidade no amor por uma mulher é uma característica presente tanto em Esaú e Jacó como em Dois irmãos.

Em Machado de Assis a ideia do duplo está associada à diversidade de pontos de vista. O acontecimento tem no mínimo duas faces. Para penetrar neles com mais acuidade é preciso colocar-se em mais de um lugar de observação. Assim, por exemplo, para bem avaliar-se a causa do conflito entre os partidários de Costa Matos e os partidários de Serafim, em Manhuaçu, Minas Gerais, um conflito a carabina e dinamite, que tem produzido um banho de sangue – para avaliar o conflito, como dizia, não basta saber que ele “nasceu de ter sido Costa Marques nomeado delegado de polícia, e, investido do cargo, haver mandado desarmar um empregado de Serafim.” Não, não basta:

“A causa do conflito parece pequena, vista aqui da rua do Ouvidor, entre três e cinco horas da tarde; mas ponha-se o leitor em Manhuaçu, penetre na alma de Serafim, encha-se da alma de Matos, e acabará reconhecendo que as causas valem muito pouco, segundo a zona e as pessoas. O que não daria aqui mais que uma troca de mofinas, dá carabina e dinamite em outras paragens.”(ASSIS, 2008, p. 1281)

É preciso, então, além de ocupar mais de uma “zona”, converter-se nas pessoas. A ideia do duplo está vinculada também à de conversibilidade. A única passagem da Divina comédia que Machado traduz é o canto XXV do “Inferno”, no qual homens transformam-se em serpentes. Outras conversões mais operam-se na obra do autor: o Prudêncio escravo e o Prudêncio algoz de outro escravo, em Brás Cubas; o Rubião herói salvador do menino Deolindo e o Rubião louco – “ó gira!” – escarnecido pelo menino Deolindo, em Quincas Borba.

O duplo não precisa concretizar-se em personagens. Pode assumir forma simbólica ou figurada como Deus e o Diabo no capítulo “A ópera” de D. Casmurro; a opinião e a realidade no conto “O segredo do bonzo”; o vício e a virtude no Brás Cubas. Por sinal, este último par é a síntese do código que legisla a ética machadiana, das

posições relativas do Bem e do Mal – “o vício é muitas vezes o estrume da virtude”(ASSIS, 1968, p. 123).

Tal código abrange em sua coleção legal a “lei da equivalência das janelas”, um mecanismo compensatório pelo qual a janela fechada de um ato escuso é aberta por uma boa ação, mantendo-se a consciência sempre moralmente arejada.

Fundamenta um modo de perceber o mundo:

“Eu, posto creia no bem, não sou dos que negam o mal, nem me deixo levar por aparências que podem ser falazes. As aparências enganam; foi a primeira banalidade que aprendi na vida e nunca me dei mal com ela. Daquela disposição nasceu em mim esse tal ou qual espírito de contradição que alguns me acham, certa repugnância em execrar sem exame vícios que todos execram, como em adorar sem análise virtudes que todos adoram. Interrogo a uns e a outros, dispo- os, palpo-os, e se me engano, não é por falta de diligência em buscar a verdade. O erro é deste mundo.”(ASSIS, 2008, pp. 1287, 1288; crônica de 14/06/1896)

Pois de tão recorrente, de tão disseminado, o motivo do duplo passa também a ser um princípio, que alguém chamou de “princípio geral de reversibilidade, e que se explica na proliferação de ambivalências dramaticamente inconciliáveis e de dualidades tragicamente irredutíveis.”(SOUZA, 1992, p. 335)

“Princípio de reversibilidade”, “espírito de contradição”, “conversibilidade” – tudo, enfim, que acolha a mesma noção de duplo se concentra em Esaú e Jacó. Constitui certamente aquele “pensamento interior e único” da “Advertência”.

Affonso Romano de Sant’Anna elabora extensa e rica análise sobre o romance, cujo enfoque é a questão do duplo. Ele está presente em todos os planos, o plano da narração, o plano dos personagens e o plano da linguagem; e em cada plano segundo estágios crescentes de complexidade de acordo com o seguinte modelo esquemático: duplicidade ou oposição (A x B), alternância ou ambiguidade (A ou B) e integração (A e B).

Para compreender o esquema e a progressão dos estágios, vamos exemplificar com o plano dos personagens. Pedro e Paulo estão no estágio inicial, cumprem o papel de opositores (A x B). Flora, figura referida aos gêmeos, num primeiro momento está completamente dividida em relação a eles (A x B), mais adiante se vê tomada de uma ambiguidade invencível (A ou B), mas sem conseguir integrá-los (A e B). Isso é o que a diferencia de Aires, estágio final e mais desenvolvido. “Porque se a duplicidade caracteriza Pedro e Paulo, se a ambiguidade dilacera Flora, Aires vai realizar mais plenamente a integração. [A e B]” (SANT’ANNA, 1975, p. 139). “Aires é o único que

alcançou as leis do sistema que pressupunha um jogo de oposições, alternâncias e complementaridade.”(SANT’ANNA, 1975, p. 140).

Como se pode notar pelo emprego dos termos – modelo, função, sistema -, a análise de Sant’Anna é, porém, estruturalista. Por essa abordagem, os elementos do texto se relacionam segundo leis matemáticas; estruturas anônimas tiram aos personagens a liberdade de agir, ou no máximo artificializam o agir, fazem-nos agir como entidades abstratas; é secundária a significação histórica ou estórica da narrativa. É essa ótica que o faz afirmar que “interessado mais na função entre dois elementos A/B, Machado afasta-se do significado deles para reter-lhes a significação”(SANT’ANNA, 1975, p. 127); que o histórico ou estórico em Esaú e Jacó é suporte, “esteio exterior apenas aspectual”, dado conjuntural não estrutural, prende-se à área do significado não do significante; que o duplo, fator estrutural, imbrica-se ao jogo da escrita, é realização lúdica.

Ocioso dizer a essa altura que as formulações aqui contidas não esposam a tese estruturalista. Há um substrato ideológico no qual se assenta a temática do duplo. E asseverar isso não é, evidentemente, desmerecer do engenho artístico que integra a ideia.

O figurino estruturalista não veste a obra machadiana. De resto, tentar enquadrar qualquer figurino teórico à sua obra será sempre um ato de força. Ainda que aqui e ali algum insight interpretativo pareça-lhe cair bem, como, no caso de Esaú e Jacó, o estruturalismo, cuja razão argumentativa opera por meio de oposições, no fim ele se revelará especioso – ela escapa, não se enquadra, é refratária, surpreende a cada leitura, nunca se lhe descobre um centro de uma vez por todas. Daí a profusão desigual de sua fortuna crítica, misturando credos e ideologias de todos os tipos.

Em Dois irmãos, como disse, o motivo do duplo também significa uma abertura para o mundo. Na medida em que a rivalidade entre os gêmeos representa uma diversidade de pontos de vista, ela concorre para uma ampliação de perspectivas. Já em Relato de um certo Oriente, a história de outra família de ascendência libanesa é contada sob diferentes perspectivas, depoimentos diversos são consolidados por uma só voz narrativa. Em Cinzas do Norte, Lavo e Mundo figuram respectivamente a imagem da permanência ao lugar de origem e da fuga libertadora em demanda da vocação artística. O empresário Jano é o elo entre dois mundos; como o deus bifronte, é o

homem de dupla face: uma volta-se para a exploração dos produtos amazônicos, a outra remete-os para o exterior; é uma espécie de Yaqub mais rude e mais rústico.

O duplo tem sido tema constante em sua obra, constructo de elaboração consciente:

“- Um tema primordial para mim é a alteridade, o olhar sobre o outro, que pode ser o estrangeiro, mas também o outro de nossa própria identidade, o nosso duplo (...). O duplo é um tema existente desde o romantismo, mas é extremamente contemporâneo. Em qualquer sondagem sobre identidade você vai se deparar com a sua própria face num espelho quebrado e embaçado.”(apud KRAPP, 2009, p. 3)

Se os dois livros tratam do duplo, se um deles se reporta ao outro de modo explícito mediante uma frase comum a Rânia e a Flora – “assim tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa ao mesmo tempo” -, proveitoso seria se pudéssemos estabelecer entre ambos um cruzamento de personagens e situações. Era uma forma de conjugá-los num diálogo vivo. Mas a par desse diálogo assim proporcionado, naturalmente duplos existem num mesmo romance, e que também é preciso considerar, como por exemplo Plácido e a cabocla do Castelo ou Domingas e Zana.

Foi feita alusão acima à possibilidade de confronto não só de personagens como igualmente de situações. Talvez se acuse de impróprio o paralelo, uma vez que situações via de regra envolvem personagens e a carga significativa delas é dada pela ação dos personagens. Mas é que as ações combinadas, o modo como eles interagem, acabam por compor um quadro que ultrapassa a ação particular de cada um deles, se impõe por si mesmo.

Já fizemos um cotejo entre situações dessas, em que um dos gêmeos – Pedro e Yaqub – finge dormir enquanto o outro – Paulo e Omar – saboreia intimamente a vitória sobre o rival. Há ainda mais duas, pelo menos, que prestam-se à comparação. A de Esaú e Jacó trata da primeira briga dos gêmeos aos sete anos. Terminam por se reconciliar ao preço de doces, beijos da mãe e passeio no carro do pai. Mas Natividade não deixa de adverti-los, instando para que não briguem. “Estão entendendo?”:

“Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, e deu igual resposta. Enfim, porque esta mandasse, abraçaram-se, mas foi um abraço sem gosto, sem força, quase sem braços; encostaram-se um ao outro, estenderam as mãos às costas do irmão, e deixaram-nas cair.

“De noite, na alcova, cada um deles concluiu para si que devia os obséquios daquela tarde, o doce, os beijos e o carro, à briga que tiveram, e que

outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, como um romance ao piano, resolveram ir à cara um do outro, na primeira ocasião. Isto que devia ser um laço armado à ternura da mãe, trouxe ao coração de ambos uma sensação particular, que não era só consolo e desforra do soco recebido naquele dia, mas também satisfação de um desejo íntimo, profundo, necessário.”(EJ, 100)

Agora a cena de Dois irmãos. Após cinco anos, Yaqub volta do Líbano. Tem 18 anos. A família prepara uma pequena recepção festiva para comemorar a sua volta. Omar não está presente, chega depois:

“‘Obrigado pela festa’, disse ele, com um quê de cinismo na voz. ‘Sobrou comida para mim?’

‘Meu Omar é brincalhão’, Zana tentou corrigir, beijando os olhos do filho. ‘Yaqub, vem cá, vem abraçar o teu irmão.’

“Os dois se olharam. Yaqub tomou a iniciativa: levantou, sorriu sem vontade e na face esquerda a cicatriz alterou-lhe a expressão. Não se abraçaram. Do cabelo cacheado de Yaqub despontava uma pequena mecha cinzenta, marca de nascença, mas o que realmente os distinguia era a cicatriz pálida e em meia- lua na face esquerda de Yaqub. Os dois irmãos se encararam. Yaqub avançou um passo, Halim disfarçou, falou do cansaço da viagem, dos anos de separação, mas de agora em diante a vida ia melhorar. Tudo melhora depois de uma guerra. “Talib concordou, Sultana e Estelita propuseram um brinde ao fim da guerra e à chegada de Yaqub. Nenhum dos dois brindou: os cristais tilintando e uma euforia contida não animaram os gêmeos. Yaqub apenas estendeu a mão direita e cumprimentou o irmão. Pouco falaram, e isso era tanto mais estranho porque, juntos, pareciam a mesma pessoa.”(DI, 24, 25)

As duas cenas retratam o caráter irreconciliável da rivalidade entre os irmãos. As mães tentam harmonizá-los, instando para que se abracem. Mas Pedro e Paulo se abraçam “quase sem braços”; Omar e Yaqub trocam um frio e protocolar aperto de mãos. Até aqui as semelhanças.

A cena de Dois irmãos é mais densa, mais carregada de tensão, maior nela o peso do constrangimento. Podemos pensar em algumas razões para isso. Primeiro, a ainda ingenuidade infantil dos sete anos de Pedro e Paulo; e a consciência mais amadurecida dos 18 anos de Omar e Yaqub. Segundo, o ambiente íntimo, puramente doméstico, envolvendo apenas mãe e filhos, num caso; e no outro, a presença de pessoas estranhas ao meio familiar. Por fim, a ausência de um narrador onisciente que descreva os sentimentos de Omar e Yaqub enquanto eles se encaram, cabendo ao leitor deduzir por trás dos gestos esquivos a sobranceria e o ressentimento.

Outra diferença está no comportamento das mães em relação aos filhos. Natividade age de maneira equilibrada, dirigindo-se aos dois, concitando-os imparcialmente ao abraço. Já Zana é assimétrica no modo de agir, desculpa a

inconveniência de Omar, beija-o nos olhos, atribui a Yaqub a responsabilidade do abraço, iniciativa que se esperaria do outro, pois a Yaqub, como centro da recepção, é que seriam devidos os cumprimentos.

A terceira e derradeira diferença tem relação com o caráter da rivalidade entre os irmãos. A rivalidade que desune Pedro e Paulo, se num primeiro momento parece ser resultado de cálculo, “laço armado à ternura da mãe”, revela em seguida sua feição verdadeira – “satisfação de um desejo íntimo, profundo, necessário”. Não é cálculo, é fatalidade. É de ordem, por assim dizer, ontológica. Constitui a natureza do ser, não está presa a determinações secundárias. É condição originária, não deriva de um propósito.

A rivalidade que opõe Omar e Yaqub é marcada, literalmente marcada, se mostra à superfície. Note-se que a pequena mecha cinzenta no cabelo de Yaqub – “marca de nascença” – seria perfeitamente bastante para distingui-los, “mas o que realmente os distinguia era a cicatriz”. Não é um traço de nascença que separa os irmãos, é um sinal físico artificial, feito de fora. A preferência materna pelo Caçula, a primeira agressão de Omar, a viagem forçada de Yaqub para o Líbano, seus atos calculados de vingança, a última agressão de Omar – são todos acontecimentos que giram em torno da cicatriz. A cicatriz é fruto de acontecimentos e geradora de acontecimentos, risco na face que se imprime no espírito.

Vamos agora à outra situação. A de Esaú e Jacó está no capítulo XLVI (“Entre um ato e outro”) e corresponde a uma das várias digressões do texto. Já a mencionamos no capítulo “Dos romances” para caracterizar o jogo cênico da ficção. Enquanto a história dá um salto no tempo, o narrador aconselha o leitor a manter-se como no teatro, conversando entre um ato e outro, sem ir aos bastidores:

“Enquanto os meses passam, faze de conta que estás no teatro, entre um ato e outro, conversando. Lá dentro preparam a cena, e os artistas mudam de roupa. Não vás lá; deixa que a dama, no camarim, ria com os seus amigos o que chorou cá fora com os espectadores. Quanto ao jardim que se está fazendo, não te exponhas a vê-lo pelas costas; é pura lona velha sem pintura, porque só a parte do espectador é que tem verdes e flores. Deixa-te estar cá fora no camarote desta senhora. Examina-lhe os olhos; têm ainda as lágrimas que lhe arrancou a dama da peça. Fala-lhe da peça e seus artistas. Que é obscura. Que não sabem os papéis. Ou então que é tudo sublime. Depois percorre os camarotes com o binóculo, distribui justiça, chama belas às belas e feias às feias, e não te esqueças de contar anedotas que desfeiem as belas, e virtudes que componham as feias. As virtudes devem ser grandes e as anedotas engraçadas. Também as há banais, mas a mesma banalidade na boca de um bom narrador faz-se rara e preciosa. E verás como as lágrimas secam inteiramente, e a

realidade substitui a ficção. Falo por imagem; sabes que tudo aqui é verdade pura e sem choro.”(EJ, 146, 147)

A cena de Dois irmãos é perto do fim do livro. A casa está vendida, a família desfeita e Rânia trata de providenciar a mudança para seu bangalô, a que Zana resiste até quando pode:

“Poucos dias depois, um caminhão estacionou em frente da casa e os carregadores fizeram a mudança para o bangalô de Rânia. Zana passou a chave na porta do quarto, e do balcão ela viu a lona verde que cobria os móveis de sua intimidade. Viu o altar e a santa de suas noites devotas, e viu todos os objetos de sua vida, antes e depois do casamento com Halim. Nada restou na cozinha nem na sala. Quando ela desceu, a casa parecia um abismo. Caminhou pela sala vazia e pendurou a fotografia de Galib na parede marcada pela forma do altar. Nas paredes nuas, manchas claras assinalavam as coisas ausentes.”(DI, 252)

Nas duas passagens temos um objeto comum – a lona – a encobrir ou descobrir a realidade. Nos dois casos, a forma como se dá o vínculo entre lona e realidade diz muito da natureza dos romances.

Em Esaú e Jacó, a lona é um objeto ambivalente: tem uma face que se volta para o espectador e outra que se vê por trás da cena; de um lado jardim verde e florido, de outro lado lona velha; de uma parte ilusão ficcional, de outra parte armação de cenário. Todo o capítulo XLVI é digressivo, uma das digressões metalinguísticas do livro, em que o narrador reflete sobre a arte de compor e ler romances. Ele exorta o espectador- leitor a manter-se dentro da expectativa da ficção, a ficar aquém do espaço de representação, nada além da linda ilusão do jardim. Suporíamos, então, a só defesa de uma visão ou leitura ingênua se no interior da mesma exortação não se advertisse sobre a lona velha atrás do proscênio. Isso é feito mediante o recurso da preterição, figura retórica própria à manifestação da ambiguidade, que consiste em tratar de um assunto ao mesmo tempo que se afirma que ele será evitado: “Lá dentro preparam a cena (...). Não vás lá. (...) Quanto ao jardim que se está fazendo, não te exponhas a vê-lo pelas costas.”

Talvez não seja exagero dizer que estão aqui reunidos, em outros termos e condições, a galhofa e a melancolia – jardim florido e lona velha; leitura ingênua e sentimental; arte espontânea e refletida.

Em Dois irmãos, a lona não encobre a pungente realidade de um mundo que se esboroou, sem nenhuma circunstância de permeio, sem contemporizações, sem atenuantes, sem nada para entreter a total desolação. Zana vê os objetos de estimação

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