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Os narradores dos três romances de Milton Hatoum guardam uma inegável semelhança: todos três narram de uma posição a um tempo deslocada e inclusiva. A filha adotiva e sem nome de Relato de um certo Oriente (1989), o enjeitado Nael de Dois irmãos (2000) e o socialmente marginalizado Lavo de Cinzas do Norte (2005) são narradores que tomam parte da história como personagens secundários, que buscam uma identidade ou vocação, que têm acesso mais ou menos limitado aos ambientes, que contam de perto e de longe, que colhem os fatos através dos testemunhos de outros ou das observações que fazem, que pintam a cena de uma decomposição e que, dialeticamente, reconstroem ruínas. É evidente que existem características próprias que os distinguem, mas não é esse o propósito desse tópico.

Nael é filho da criada-índia Domingas com um ou outro dos irmãos gêmeos (Yaqub e Omar) da família de origem libanesa e cujo nome só conhecemos quase ao final do livro. Um ou outro dos gêmeos porque a real paternidade permanece irrevelada ou irrevelável até o fim. Irrevelada ou irrevelável porque o segredo se estende também

ao narrador-personagem ou parece ficar defeso apenas ao leitor. Segredo também para o narrador ou proibido só ao leitor porque...E poderíamos continuar desfiando explicações de explicações, exatamente como faz Nael, ao juntar retalhos de memórias mediante o testemunho de outros, para contar a história de um rastro, de uma casa e da “cidade flutuante”, metonímias, respectivamente, para identidade, família e Manaus.

O tom memorialístico dá sentido à narrativa. A memória é seu elemento primordial. Mas não a memória-hábito, na classificação de Bergson, a memória das ações motoras, dos atos rotinizados, do exercício cultural, e, sim, a imagem-lembrança, a memória do sonho e da poesia, a memória singular, fugidia, esquecível, a memória involuntária de Proust. Aliás, o próprio autor se declara um “proustiano até o tutano. A memória mais fértil para a literatura é a cena que nos vem à mente de um modo súbito e impreciso, que nem faísca.” (apud CHIARELLI, 2007, p. 76).

Um exemplo desta “cena” é proporcionado pela visão de Yaqub quando volta a Manaus depois de uma estada forçada de cinco anos no sul do Líbano.

“No caminho do aeroporto para casa, Yaqub reconheceu um pedaço da infância vivida em Manaus, se emocionou com a visão dos barcos coloridos, atracados às margens dos igarapés por onde ele, o irmão e o pai haviam navegado numa canoa coberta de palha. Yaqub olhou para o pai e apenas balbuciou sons atrapalhados.”(DI, 16, 17)

O sentido da visão e a emoção suscitada deflagram a “memória súbita” e todo um passado retorna:

“Os barcos, a correria na praia quando o rio secava, os passeios até o Careiro, no outro lado do rio Negro, de onde voltavam com cestas cheias de frutas e peixes. Ele e o irmão entravam correndo na casa (...)”.(DI, 17)

Nael conta a história depois que a casa se desfez, se transformou em comércio, na Manaus avassalada pelo “milagre econômico”, mutilada pelo crescimento especulativo. No seu refúgio preservado, no quartinho do quintal da antiga construção, esperou o tempo passar para contá-la. O tempo é o filtro necessário para decantar os acontecimentos verdadeiramente relevantes.

“Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, disse Halim durante uma conversa, quando usou muito o lenço para enxugar o suor do calor e da raiva ao ver a esposa enredada ao filho caçula.” (DI, 244)

Ele reúne as condições ideais para contá-la. Está situado à margem da família e, ao mesmo tempo, é integrante dela. É um “abelhudo” que tem “sede de lembranças”. Dispõe do depoimento das pessoas que participaram ativamente do drama – de Zana, a matriarca; de Rânia, a irmã dos gêmeos; mas sobretudo de Domingas e de Halim, o eterno namorado da mulher (Zana). Por fim, ele busca conhecer qual é sua origem: “Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo. A origem: as origens.” (DI, 73)

Nael é uma testemunha privilegiada das explosivas manifestações emocionais que caracterizam as relações íntimas no seio daquela família e que levaram à sua dissolução. Certificou-se ou soube da paixão cega de Halim por Zana, atrapalhada pelo nascimento dos filhos; do ciúme quase incestuoso de Zana pelo filho Omar e de Rânia pelos irmãos; da rivalidade de proporções bíblicas entre os gêmeos; da violação de Domingas por Omar, o Caçula.

“Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final.” (DI, 29)

“Contava [Halim] esse e aquele caso, dos gêmeos, de sua vida, de Zana e eu juntava os cacos dispersos, tentando recompor a tela do passado.” (DI, 134)

Ver desmoronar esse “pequeno mundo” requer uma prévia reconstrução dele. Para tanto, o relato deve lançar mão da memória para recriar o passado. O relato das lembranças é errático, não é linear, vai e volta no tempo, regride para registrar as peripécias da corte amorosa do tímido Halim à jovem Zana, o início de tudo, para revelar as circunstâncias primeiras do ódio entre os irmãos. Nesse vai e vem, há espaços vazios, não a justaposição perfeita das lembranças, ainda que se tenha sede delas:

“Omissões, lacunas, esquecimento. O desejo de esquecer. Mas eu me lembro, sempre tive sede de lembranças, de um passado desconhecido, jogado sei lá em que praia de rio.”(DI, 90, 91)

Passado que não se reproduz de modo fidedigno, mas é recriado, tecido pela linguagem – “A memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado.”(DI, 91). Ou, nos termos de Benjamin:

“O importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência.”(BENJAMIN, 1994, p. 37)

“As imagens não são armazenadas sob a forma de fotografias fac-similares de coisas, de acontecimentos, de palavras ou de frases. (...) Todos possuímos provas concretas de que sempre que recordamos um dado objetivo, um rosto ou uma cena, não obtemos uma reprodução exata, mas antes uma interpretação, uma nova versão reconstruída do original. (...) a memória é essencialmente reconstrutiva.”(DAMÁSIO, 1996, pp. 127, 128; grifos do autor)

Revolver o passado, para o narrador, é buscar a si próprio, é um modo de dar sentido à vida de quem “só existia como rastro” dos filhos de Zana. Escrever é um poderoso instrumento de definição de personalidade, de afirmação subjetiva. Quem sabe, o par de botas do caipora de “Último capítulo”, a “alma exterior” de Jacobina? A crença na imagem/imaginação que a literatura implica é uma crença salvadora.

Epígrafes são peças que costumam ser obrigatórias nos escritos acadêmicos. Ninguém resiste a elas, por menos que falem para justificar sua presença. Eu, que tampouco resisto, pendurei logo dois brincos, que, se enfeitam, também cumprem certa função: indicam maneiras de narrar.

Ao “leitor ruminante” corresponde o narrador reflexivo, analítico e consciente; ao “desejo de contar passagens que o tempo dissipou”, a memória afetiva, pontual e involuntária. Podemos correlacionar a essa diferença o papel que o tempo desempenha nas duas narrativas, como o faz Benedito Nunes:

“A linguagem rememorativa do narrador, filho da empregada Domingas com um dos gêmeos, mantém com o passado uma relação diferente, que não é a de Esaú e Jacó, em Machado, em cujo romance o tempo tem o mítico papel de velho destruidor. (...) Em Dois irmãos estamos numa vertente rememorativa, proustiana, em que o tempo redescobre o real, redime e purifica a experiência humana.”(NUNES, 2007, p. 218)

Com efeito, em Machado de Assis, o tempo é “cúmplice de atentados”, “ministro da morte”, “rato roedor”, nada redime, ainda em situações em que a feição proustiana da memória involuntária esteja presente, como neste passo de Dom Casmurro, no qual Bentinho é tomado por lembranças de episódios, palavras e incidentes a que não dera maior atenção, mas que passam a ser denunciadores quando se convence da traição de Capitu:

“Lembram-me episódios vagos e remotos, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira não pôs malícia, e a que faltou meu velho ciúme. Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo que me fez rir, uma palavra

dela sonhando, todas essas reminiscências vieram vindo agora, em tal atropelo que me atordoaram...”(ASSIS, 1992, pp.225, 226)

Mas a condição de observadores define um lugar neutro para ambos. A perspectiva cética de Aires o converte ao estado estético-cognitivo da ataraxia ou tranquilidade pirrônica. Adota aquela técnica de espectador de que fala Antonio Candido, e o distanciamento assim obtido faz da narração um registro mais substancioso de vida que a descrição minuciosa do naturalismo. O narrador em primeira pessoa de Dois irmãos participa da história como personagem secundário, quase anônimo, situado, portanto, igualmente num ângulo próprio a observar as tribulações dos personagens tão emocionalmente principais da história.

Daniel Piza assinala a “obliquidade” como ponto de semelhança entre os dois narradores:

“O narrador de Dois irmãos é um agregado de uma casa libanesa, filho de uma cabocla que vive ali de favor. É esse ponto de vista meio assimilado, meio deslocado que dá a ‘obliqüidade’ machadiana do livro: por sua condição, o narrador é o único capaz de olhar com algum distanciamento para o passado e reconstruir a memória daquele conflito fraternal.”(PIZA, 2007, p. 20)

Mais do que a obliquidade, no entanto, mais do que a maneira indireta e sinuosa de dizer, maneira adequada à literatura, o que os une são as faltas, as lacunas, as ausências. “Metade da arte narrativa está em evitar explicações.”(BENJAMIN, 1994, p. 203). O vazio deixado pela ausência de explicação amplia a possibilidade do intérprete, exprime a complexidade do real, recusa a divulgação do inominável. Que o “leitor ruminante” trate de preenchê-lo, “[e]xplicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar (...) melhor é ler com atenção.”(EJ, 74); ou não, pois como diz Halim, “[c]ertas coisas a gente não deve contar a ninguém.”(DI, 134). Se a vida é atravessada por lacunas, silenciada por segredos que se guardam para sempre, por que fazer da ficção uma decifradora de enigmas?

De fato, o narrador de Dois irmãos parece guardar para si a notícia que a mãe, antes de morrer, lhe dá sobre quem é o pai dele:

“Guardou [Domingas] até o fim aquelas palavras, mas não morreu com o segredo que tanto me exasperava.”(DI, 245)

Porventura, não lhe agradaria ter como pai uma pessoa tresloucada, ou alguém que pudesse vinculá-lo ao “mundo das mercadorias, que não era o [s]eu, nunca tinha sido.”(DI, 262).

“A loucura da paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e todos neste mundo não foram menos danosas do que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez de sua ambição calculada.”(DI, 263, 264)

Do mesmo modo, a voz narrativa em Esaú e Jacó não pode penetrar em certos arcanos, não dispõe de dados, não assevera a verdade:

“No secreto do coração, lá muito ao fundo onde não penetra olho de homem.”(EJ, 101);

“Não afirmo nada a tal respeito.”(EJ, 211); “Era difícil atinar com a verdade.”(EJ, 208)

Tais exemplos não negam a onisciência do narrador, mas indicam a complexidade da personalidade humana, o relativismo da perspectiva cética. Reiteram a precariedade das afirmações categóricas, o entendimento de que a verdade é sempre conjetural, como está na crônica de A Semana de 3 de março de 1895:

“Mas que há neste mundo que se possa dizer verdadeiramente verdadeiro? Tudo é conjetural.”(ASSIS, 2008, p. 1153)

Outro ponto mais os liga: ambos se distanciam da prosa de cunho naturalista, ou hiper-realista, ou regionalista. Em Dois irmãos, “[a] narração converte a natureza numa experiência interior, e o estranho em sensações íntimas, pessoais e universais.”(VIEIRA, 2007, p. 171). Em Esaú e Jacó, seria mais cômodo para o narrador trocar as sensações inexplicáveis que definem Flora pelo relato assimilável, superficial e preciso de

“contar as rendas do roupão da moça, os cabelos apanhados atrás, os fios do tapete, as tábuas do teto e por fim os estalinhos da lamparina que vai morrendo... Seria enfadonho, mas entendia-se.”(EJ, 222)

Emprega-se aqui, como vimos, a mesma ironia da célebre crítica a Eça de Queirós e à “nova poética”, a qual só chegaria à perfeição quando pudesse determinar o número exato de fios de um “lenço de cambraia” ou de um “esfregão de cozinha”.

O trabalho de elaboração da linguagem é um traço comum aos dois autores. Enfim, não apontam com o dedo, fazem sentir.

Ah, sim, lembram-me agora as origens daquelas palavras iniciais. Vieram de São Bernardo, quando Paulo Honório declara, antes de mim, que vai fazer um capítulo só para tratar de Madalena.

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