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e libertos: perfil ocupacional dos presos

No documento João José Reis - Rebelião Escrava No Brasil (páginas 195-200)

“Deixa que logo você há de procurar negro no canto e não há de achar, e você mesmo é quem há de botar ca­ deira no ombro. ”

Palavras de um afncano carregador de cadeiras a um freguês bêbado, cinco dias antes da rebelião.

O trabalho do negro movimentava a cidade de Salva­ dor e seu porto de exportação. As atividades econômicas ur­ banas empregavam tanto escravos como libertos, que se nniam

nas ruas no desempenho das mais diversas ocupações. Por isso, quando falamos de trabalho dos africanos, a referência não é exclusivamente ao trabalho escravo. Este último tem sido privilegiado pelos pesquisadores, talvez por ter deixado marcas mais profundas na história e na documentação dispo­ nível. Aqui o quadro é ampliado. A devassa de 1835 reuniu dados sobre os indiciados no levante que nos permitem tam­ bém falar do trabalho dos libertos. Não só a participação em grupos étnicos e religiosos garantiu solidariedade e identidade coletivas entre os africanos. O ambiente do trabalho também teve esta função, inclusive permitindo aprofundar identidades étnico-religiosas tradicionais, que serviram de combustível à rebelião.

Os africanos enchiam as ruas da cidade, trabalhando ao ar livre como artesãos, lavadeiras, alfaiates, vendedoras am­

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bulantes, carregadores de água, barbeiros, músicos, artistas, pedreiros, carpinteiros, estivadores e carregadores de cadeira. Quase todos os visitantes estrangeiros se surpreendiam com a multiplicidade de ocupações exercidas exclusivamente por ne­ gros livres e escravos. Surpreendia-os que uma sociedade con­ trolada pelo branco pudesse ser tão completamente depen­ dente do trabalhador negro. Kâtia Mattoso encontrou 42 pro­ fissões e ofícios entre os 582 escravos de uma amostra que estudou, e Maria José Andrade listou 89 a partir de um nu­ mero bem maior de 6974 escravos. Eles faziam de tudo. Isto certamente deu aos escravos urbanos uma visão de mundo mais ampla, inclusive fazendo-os explorar as possibilidades de alforria individual e mobilidade òcupacional.1

As relações escravistas na cidade se caracterizavam pelo sistema de “ganho” . O “ganhador” escravo era obrigado a dar ao senhor, por dia ou por semana, uma quantia previa­ mente acertada. Qualquer excedente era apropriado pelo es­ cravo, e os senhores em geral respeitavam essa regra, embora nenhuma lei a garantisse. No entanto, o sistema de ganho es­ tava longe de ser uma dádiva senhorial. “Na cidade , escre­ veram Spix e Martius em 1817, “é tristíssima a condição dos que são obrigados a ganhar diariamente uma certa quantia (uns 240 réis) para os seus senhores; são considerados como capital vivo em ação e, como os seus senhores querem recupe­ rar dentro de certo prazo o capital e juros empregados, não os poupam” . A cota variava de uma ocupação para outra e de­ pendia também da idade, saúde e outros atributos individuais dos escravos. O elemento principal nos cálculos dessa cota era provavelmente a produtividade média de cada ocupação no mercado. Andrade dá alguns exemplos de cotas para o ano de 1847: um carregador de cadeira pagava 400 réis por dia, o mesmo que um sapateiro; eram seguidos de outros carregado­ res e estivadores que pagavam 320 réis ao senhor. A escrava Rachel, lavadeira, pagava apenas 240 réis, a cota média for­ necida trinta anos antes pelos viajantes alemães.2

(1) Kátía Mattoso, “Os Escravos na Bahia no Alvorecer do Século XIX”, Re­

vista de História, n? 97,1974, pp. 125-126; Andrade, “A Mão-de-Obra Escrava em

Salvador”, p. 117.

(2) Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, vol. 2, p. 141; Andrade, “A Mão-de- Obra Escrava”, pp. 118 e 120.

Os senhores recuperavam o capital investido num escravo apos tres anos de trabalho produtivo. Era um excelente inves­ timento em época de prosperidade econômica, quando se di­ namizava o mercado de trabalho dos ganhadores. Nas épocas de baixa, continuava a compensar porque os escravos em geral se auto-sustentavam — comiam, vestiam-se e muitas vezes mo­ ravam com recursos próprios.

A maioria das mulheres escravas empregava-se no serviço doméstico ou em ocupações correlatas como costureiras, lava­ deiras e cozinheiras. Mas um bom número delas também tra­ balhava no ganho, eram ganhadeiras. Como tais, se confun­ diam com as negras libertas, também negras de ganho.

O pequeno comércio de rua era quase completalmente dominado pelas ganhadeiras. Durante a época colonial uma série de leis tentaria em vão reduzir as atividades dessas mu­ lheres. Pouco antes do inicio do seculo XIX Vilhena observou, entre preocupado e irritado, que elas praticamente monopoli­ zavam a distribuição de peixes, verduras e até produtos de contrabando. Organizadas em feiras livres chamadas na época de quitandas, elas, nas palavras do ilustrado cronista, “se jun­ tam para vender tudo o que trazem, como seja peixe, carne meia assada, a que dão o nome de moqueada, toucinho, ba­ leia no tempo da pesca, hortaliças etc.” . Através de sistemas engenhosos de especulação de mercado e atravessamento a que chamavam carambola ou cacheteira, as ganhadeiras, muitas vezes aliadas a antigas ou atuais senhoras, controla­ vam a circulação de certos produtos básicos de alimentação na cidade. Quarenta anos após as observações de Vilhena, a si­ tuação parecia a mesma, de acordo com o relato de 1839 do missionário americano Daniel P. Kidder?

Boa parte dos homens escravos (cerca de 16 por cento) também se encontrava empregada no serviço doméstico, mas a maioria, sem dúvida, trabalhava nas ruas como negros de aluguel e de ganho.

Os ganhadores, escravos e libertos, trabalhavam sobre­ tudo como estivadores e carregadores de cadeira. Estes últi­ mos constituíam a mais numerosa categoria' entre os africanos

(3) Vilhena, A Bahia no Século XVIII, vol. 1, pp. 93,127 e 129-130; Daniel P. Kidder, Sketches o f Residence and Traveis in Brazil, Londres, 1845, vol. 2, p. 25.

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empregados nos serviços urbanos. As cadeiras de arruar eram o meio de transporte de pessoas mais comum em Salvador, já que a topografia irregular da cidade não permitia o uso gene­ ralizado de carruagens, e os cavalos eram caros. A vital comu­ nicação entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta era feita por meio dessas cadeiras — um serviço obviamente estafante para

quem nele se ocupava. ^

Os trabalhadores africanos enfrentavam suas tarefas diá­ rias de maneira organizada, com personalidade própria. Isso também impressionou os visitantes estrangeiros:

Números imensos de negros altos, atléticos são vistos andando em grupos de quatro, seis ou oito, com suas cargas suspensas entre eles por pesadas varas. Muitos mais, companheiros seus, são vistos sentados sobre as varas trançando palha ou deitados

nos becos e esquinas dormindo ... Os que dormem geralmente

têm algum sentinela pronto para acordá-los quando são cha­ mados ao serviço ... Como os carregadores de café do rio,eles com frequência cantam e gritam enquanto andam, mas seu modo de andar é necessariamente devagar e comedido, ao con­ trario do passo ligeiro de seus colegas fluminenses. Uma outra Hasw de negros é devotada ao transporte de passageiros numa espécie de liteira chamada cadeira?

A música, o ritmo dos passos, a organização coletiva in­ dicam que os africanos impregnavam o trabalho urbano com elementos de sua cultura. O cantar não significava que eram africanos felizes, escravos cegos à sua situação de explorados. Na verdade, essa atitude diante do trabalho servia tanto para espantar a tristeza da vida como para estabelecer limites à exploração. O inglês James Wetherell, que viveu na Bahia por um tempo como comerciante, apesar de todo seu etnocen- trismo conseguiu nos transmitir impressões interessantes sobre o mundo do trabalho africano:

Durante o tempo em que carregam pesadas cargas pelas ruas, eles cantam uma espécie de coro, uma. maneira bem útil de

avisar as pessoas para saírem do caminho. Este coro consiste geralmente em um dos negros cantar um comentário sobre algo que vê e os outros juntarem-se com um coro ... Embora assim coletivamente os negros carreguem cargas muito pesa­ das, um só homem carregará muito menos que um europeu. E eles são extremamente independentes, prefeririam perder a chance de ganhar um salário do que carregar mais do que eles considerem decente.5

Essa atitude digamos pré-capitalista era também comum en­ tre os vendedores: “preferiam deitar fora a mercadoria, quan­ do esta era de natureza a sofrer rápida deterioração, a vende­ rem por preço inferior ao que lhes convinha” .6 O mercado não ditava sempre a última palavra aos trabalhadores africanos.

Tanto Wetherell como Kidder encontraram um ritmo, uma ética e uma estética de trabalho desconhecidas para eles. O inglês, aliás, foi longe: comparou a independência coletiva dos trabalhadores africanos na Bahia com o individualismo musculoso, mas submisso, do trabalhador inglês, na Inglater­ ra da economia de salário. Pelo menos em algum nível os afri­ canos conseguiam fazer o que eles consideravam de seu inte­ resse. E parece que não lhes convinha trocar a escravidão pura pela escravidão assalariada. Eles tinham referências históricas próprias de relações de trabalho em suas Ãfricas e foi nessa direção que tentaram modificar o escravismo baiano, pelo me­ nos seu lado urbano.

■ Em muitos aspectos o trabalho africano no Novo Mundo, apesar de mercantilizado, seguiu o ritmo de tarefas a serem cujmpridas, não sendo fundamental a marcação do tempo. O que era diferente da lógica capitalista, em que o trabalhador vende sua força de trabalho por determinado preço, para ser consumida num determinado tempo, não importando para fazer o quê. Na fábrica as máquinas controlam o fluxo de tra­ balho e separam o trabalho da vida cotidiana. Entre os africa­ nos da Bahia parece ter havido “menos demarcação entre ‘tra­

(5) Wetherell, Stray Notes from Bahia, pp. 53-54. O grifo à palavra “eles” é dado no texto original.

(6) J. da Silva Campos, “Ligeiras Notas sobre a Vida Intima, Costumes e Religião dos Africanos na Bahia", Anais do AEBa. , n? 29,1943, p. 294.

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balho’ e ‘vida’ ” , porque “o intercâmbio social e o trabalho estão entremesclados” — tal como sugere E. P. Thompson para o trabalhador pré-capitalista da Europa.7 Isso, obvia­ mente, não eliminava a brutalidade e a estupidez da escravi­ dão, mas limitava-as. Não se tratava, aliás, de um presente senhorial, mas de uma conquista africana no espaço urbano. O senhor podia controlar o resultado do trabalho do escravo, mas este decidia onde, como e com quem trabalhar. Ao lado dos libertos, os escravos africanos organizavam autonoma- mente sua inserção no mercado de trabalho.

O sistema de ganho gerou os cantos de trabalhadores li­ bertos e escravos. Os cantos eram instituições formadas por ganhadores que se organizavam por etnia para ocupar locais específicos da cidade e aí atender ao chamado dos fregueses. Tinham o nome do lugar da cidade onde se reuniam seus ga­ nhadores: canto da Calçada, canto do Portão de São Bento, canto da Mangueira, etc.

Pouco sabemos sobre a estrutura e a dinâmica internas dos cantos. Ê sabido, porém, que cada um tinha um líder que se chamava capitão do canto. Essa designação pode talvez in­ dicar ligação com algum tipo de organização militar na Áfri­ ca. Mas pode também ter algo a ver com a figura do para-

koyi, personagem que administrava as feiras livres em Egba, e

que provavelmente também existia em outros reinos iorubás. Na Bahia, o capitão do canto intermediava a relação do ga­ nhador com o contratador: acertava serviços, estabelecia pre­ ços e pagava aos africanos sob sua liderança. Não sabemos ao certo se eles pegavam peso como os outros. Também desco­ nhecemos o que era exigido destes homens. A experiência no serviço, o estatuto de liberto e o conhecimento dos costumes baianos provavelmente contavam. Havia eleição para o cargo de capitão, mas ignoramos suas regras. Segundo Manoel Que­ rino, “quando falecia o capitão tratavam de eleger ou aclamar o sucessor, que assumia logo a investidura do cargo” . Prosse­ gue este autor com uma descrição da elaborada cerimônia de posse do capitão:

(7) E. P. Thompson, “Time, Work-discipline and Industrial Capitalism”,

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