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4 NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM Y

4.2 Para que o palhaço de cada um se revele

4.2.3 E tome preparação!

Desde o início, atentamos que não poderíamos entrar no hospital sem preparação. Amoldada que estava nossa forma de pensar a realidade segundo os critérios das epistemologias do norte, por termos sido ensinados desde a infância nessa lógica, não era surpreendente que o exercício do olhar do palhaço nos fosse espanto do começo ao fim. Fomos atrás de um ator com experiência em palhaçaria que nos iniciasse nesse novo universo.

J: Tinha aula de manhã e de tarde, tinha que estudar para as provas e o Mário propunha para a gente um curso intensivo de 40 horas e final de semana seguidos. A

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gente passava o domingo todo na casa do Rf pulando corda, fazendo dinâmica. Fisicamente cansativo, não é? Na segunda-feira eu ia ter que ir para a faculdade de novo. [...] Todo nosso investimento, olhando hoje, a gente investiu pesado, a gente se preparou pesadamente para fazer as visitas. Por mais que a gente não tivesse consciência de tão preparado que a gente estava naquela época...eu tinha inseguranças, acho que todo mundo tinha, mas olhando hoje, a gente estava muito preparado. A gente pegou um suporte técnico/médico, de quem foi formado nisso [refere-se à coordenadora do projeto que possui especialização em arteterapia]. A gente teve um suporte psicológico para a gente mesmo e para as visitas, para o entendimento das crianças e a gente teve um suporte técnico/artístico com o Mário sobre o que era o palhaço. Tanto na questão teórica como na prática. E eu digo que ele desenvolveu junto com a gente porque ele também não sabia fazer aquilo. Ele era um artista, então ele estava acostumado a lidar com artistas e a treinar artistas. Ele teve que adaptar tudo... e criar uma metodologia de ensino para estudantes de medicina [e uma de psicologia] que não eram artistas e que tinham todas as dificuldades de não ser um artista. Então, se para um artista a técnica do ser palhaço era difícil, para a gente era mais difícil ainda porque a gente tinha que quebrar duas barreiras. A barreira de se tornar um artista e a barreira de se tornar um palhaço, que, no meu olhar, é mais difícil ainda do que ser só um artista porque o artista se coloca enquanto personagem que não existe, que não é ele.

A partir da terceira geração, assumi a preparação dos novos integrantes do Y, com jogos que se basearam nas ideias de Mário Cruz Filho. Fui desenvolvendo nossas próprias técnicas com a ajuda do grupo e dos Jogos para Atores e não-atores de Boal (2004).

As oficinas se dividiam em duas etapas: uma que buscava integrar o grupo e libertar os corpos da mecanização diária, outra que investia em jogos de fazer nascer o palhaço de cada um. Eram quarenta horas divididas em um mês. Geralmente o das férias de junho e julho.

Ao final de cada dia, buscava-se compartilhar um texto que resumisse poeticamente nossas experiências. Revendo agora esses escritos, as cenas ressurgem em um caleidoscópio de sentimentos. Cheguei a confeccionar uma pequena apostila, em 2007, para que gerações futuras pudessem se guiar, a qual denominei de Apostyla Epystolar (ANEXO A). No grupo é de praxe mudarmos o i pelo y sempre que possível nas palavras que queremos enfatizar. A forma semelhante a epístolas, além de ter em mente um destinatário para quem eu narrava as vivências, era em virtude de esse gênero textual ter o mérito de aumentar a intimidade com o leitor:

[Introdução da apostila] Nas epýstolas há relatos aparentemente incoerentes ou incompletos. Fiz de propósito para estimular a ida dos leitores para as próximas ofycynas, para estimular a imaginação também, e para dar margens para outro tipo de transmissão que acontece para além das linhas – nos tons da voz. Queria que ao lado desses textos houvesse o relato oral do que aconteceu. Com os gestos, os olhares, a empolgação da oralidade. Coisa que passa longe dos textos. Assim, qualquer um que não entender o que está escrito vá procurar os relatos de quem viveu. Não vou desconsiderar a importância da fala dos outros que têm condições de fazer tantos outros relatos tão diferentes quanto os que aqui estão.

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Os três primeiros dias, geralmente, eram movimentados pelo pular de cordas. Todas as gerações passaram por essa experiência. Tanto que se tornou um símbolo não apenas de passagem, de entrada, mas de união. Ser do Y era ter pulado de corda. O mais importante era a solidariedade de conseguir vencer os desafios propostos, de tal forma, que se um errasse, todos teriam que começar de novo. O primeiro desafio era abdicar da prioridade do verbo vencer para assumir a primazia da totalidade grupal. Ninguém era colocado para fora se falhasse. A insatisfação com o companheiro era inútil. Só chegariam ao final se aprendessem a trabalhar em grupo, estimulando-se uns aos outros.

O primeiro momento era sempre de alongamento e o segundo de brincadeiras infantis, ambos trazidos pelos membros do grupo. O objetivo era de fazer com que eles se sentissem protagonistas e começassem a assumir a espontaneidade do ato de brincar. Sem se darem conta, já iam rindo de si e uns dos outros na alegria que o palhaço vive.

Os jogos que praticávamos tinham o objetivo de nos fazer acordar cada parte do corpo adormecida pela hegemonia do olhar, da fala e da mão. Portanto, havia o momento de ficarmos cegos, o de emudecer, o de nos amputar. Importava sentir a realidade com outras partes do corpo. É uma verdade fisiológica que as palmas das mãos apresentam muito mais corpúsculos nervosos de percepção tátil leve e de pressão do que as costas, e que os olhos possuem uma especialização fina de cones, bastonetes e um sistema acurado de discriminação de perspectivas. Uma zona considerável dos giros cerebrais que cuidam da parte sensório- motora, o homúnculo de Penfield, é destinada para a mão, a boca e o rosto. Entretanto, o que almejávamos era expandir o corpo. O mundo deveria nos transpassar para nos reencantar. Assumir a porosidade de nossos corpos. Era o que B, que entendeu bem os propósitos das oficinas, faz C perceber:

A: O C falou muito a respeito da potência do olhar dentro da interação. O palhaço traz outras potências pra vocês?

B: Os poros, né, os poros... É porque... eu não sei muito bem como desenvolver, mas eu lembrei muito da capacitação do nosso corpo cheio de poros e que a gente deve preencher os espaços. Estar em todo lugar e perceber tudo e pra isso não basta só a visão... e usar o nosso corpo. E não só, eu não sei explicar direito, mas, não só os sentidos convencionais: o tato, a visão... é um sentir corporal como um todo. Sabe, não tem a dinâmica de ocupar os espaços, que a gente fica, tipo, se fazendo assim... e a gente sabe que, fisicamente, é impossível que a gente ocupe todo aquele espaço, mas a nossa energia parece que transcende da gente e que eu realmente acredito que aquele espaço está inundado de alguma coisa, entendeu. Eu acho que... é isso que eu sinto. E ao mesmo tempo que o nosso corpo se alarga demais, ele fica muito fácil de se penetrar e de que coisas sejam percebidas.

C: Interessante o que tu falou, à medida que alarga o corpo é mais fácil penetrar? B: É.

C: E o trabalho do palhaço de movimentos, de movimentos amplos, exagerados, será que isso não é um mecanismo de deixar as coisas entrarem? Entendeu?

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B: De estar em todo lugar pra que mais coisas possam penetrar. Aumentar a superfície.

C: Tentando pegar tudo. Você pega um sorriso bem aqui, uma tristeza bem ali. Gostei desse paralelo

Treinávamos captar o ritmo do outro, qualquer outro, fosse o homem, fosse o vento ou uma sacola displicente que passasse inocente entre nossas pernas. Não era capturar, tornar cativo, aprisionar, mas apreender, ser absorvido por esse ritmo. Não era entender. A razão é lenta demais para decifrar a realidade. Se é válida essa forma de enxergarmo-nos — o ser esponja —, também o é esse verbo que vou utilizar: viríamos a aprender a nos embeber de tudo. Não para ficar pesado, mas para flutuar com ela. É o que a física referenda: se um corpo assume uma densidade igual ao do meio em que está, facilmente se desprenderá do chão.

Embora também houvesse os momentos de assumir o ridículo, esse treinamento de ser leve no espaço não era a tentativa de imitar o sublime, mas de conhecer as possibilidades do corpo que transcendem as injunções da gravidade cotidiana. Veremos, ao analisar as formas com que o ocidente pensou o riso, que poucas fazem jus a essa vivência da leveza, enxergando o risível sempre na sua face negra, punitiva e crítica.

Os jogos para entrar no estado de palhaço giravam em torno da palavra experimentação. Feito uma mulher moderadamente vaidosa antes de sair para um encontro romântico, íamo-nos vestindo de caretas, marchas, jeitos de entortar o tronco, fletir a pelve, repousar ou movimentar os braços, mas também calçar sapatos, pôr camisas, gravatas, chapéus.

Contava sempre com a ajuda de algum integrante a mais que me dava apoio ou me substituía quando precisava faltar. A isso se devem os relatórios do sexto ao oitavo dias escritos por uma das integrantes, que me conta ter passado a noite anterior elaborando os exercícios e, o dia da oficina, enfrentando sua timidez de lidar com um grupo. Mostrei-lhe, agora, o que havia escrito (ANEXO A). Ela admirou a força que a animou à época para construir todos aqueles três turnos.

Ao penúltimo dia, costumava entregar a missão da maquiagem a outra integrante, que sempre se sobressaiu nesta arte, pelo menos a mim.

Após escolhidos mais ou menos a maquiagem e o figurino, era hora de apresentar- lhes o nariz, que é um tipo de máscara.

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As máscaras, de um modo geral, têm a função de propor ao ator um desafio estruturante. As máscaras da commedia dell’arte10 dão padrões sob os quais o ator pode se mover no jogo da improvisação, sempre limitada pelas possibilidades delas. Contudo, o nariz, máscara libertária, propõe um desafio de desestruturação. Os padrões de gestos escorregam do corpo, porque sem utilidade. É preciso encontrar o novo:

Quando o ator entra em cena com o seu nariz vermelho, seu rosto apresenta um estado de disponibilidade sem defesa. Ele acredita que possa ser recebido com toda a simpatia pelo público (do mundo), e é surpreendido pelo silêncio que o acolhe, pois se considerava uma pessoa importante. Sua reação humilde desencadeia no público pequenos risos [...]. O clown é aquele que “faz fiasco”, que fracassa em seu número, e a partir daí, põe o espectador em estado de superioridade. (LECOQ, 2010, p. 215)

B fala sobre o nariz e a angústia de encontrar o palhaço:

No desenho eu tentei botar um nariz, entre aspas, que é um espaço em branco, e uma nuvem, porque eu gosto muito de nuvem, gosto muito de céu, e gosto muito de imaginação, que me permite isso, me permite ser branco, que é todas as cores, ser tudo, e me permite colocar tudo que eu tenho vontade de colocar, e experimentar várias coisas em mim. E, ao mesmo tempo, esse sentimento reflete no meu palhaço uma angústia muito grande, porque eu não tenho nome, eu não tenho uma roupa, eu não sei quem eu sou quando eu visito, entendeu?

J fala um pouco mais sobre a liberdade que o branco de B sinalizava:

Do nariz ser essa ponte, de ser essa coisa que se abre para um novo caminho, para a gente viver e colocar para fora o símbolo que nos permite ser o que a gente é dessa forma dilatada e sem nenhuma restrição ou sem nenhum limite no sentido positivo de limites.

Tudo na vida pode virar motivo de jogo em cena. E o corpo do ator faz-se instrumento desse jogo tanto mais exposto quanto menor é a máscara-nariz. Todavia, há uma proposta que vale como uma dica para qualquer palhaço: explorar o que há de mais ridículo em você, particularmente na sua forma corporal e no espaço que o circunda. Corpo: pernas finas, longilíneo, obeso, cabeça chata. Ambiente: quarto miúdo cheio de obstáculos ou salão enorme completamente vazio. Tudo é mote para um jogo de palhaço. Era o que tentávamos praticar após colocar o nariz.

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Gênero de comédia teatral, de caráter popular, originário da Itália, existente desde o século XVI, mas cujo apogeu se deu, na Europa, em torno do séc XVII e cuja ação, de gestos estereotipados sob personas fixas, é sempre improvisada, embora os enredos sigam padrões que se repetem; algumas das personas (o Arlequim, a Colombina, o Pantaleão, o Doutor, etc.) usavam mascaras, que ainda hoje dão forma a alguns foliões carnavalescos (FERREIRA, 2012; PAVIS, 2007).

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O último sol que nos via treinando antes da primeira grande visita testemunhava nossos medos, inclusos os meus. E ao final da apostila, um pedido:

Perdão ao Y se não fiz deles os melhores palhaços. Uma voz me sussurra que eu nunca poderei fazer. Essa tarefa não é minha. Mas, dá aquela coceira de possuí-la. Se eu fosse Deus, eu o faria, assim, numa luz. Faria? Deixaria assim que eles perdessem toda a boniteza do conseguir?