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2. PRODUÇÃO

2.2. PRODUÇÃO EM GERAL, RAMOS PARTICULARES DE PRODUÇÃO,

2.2.2. A economia política não é tecnologia

No meio da discussão sobre os momentos do conceito de produção, Marx escreve uma importante frase metodológica que permanece carente de explicação ulterior. “A economia política não é tecnologia65”. Produção é a atividade que consiste em deliberadamente aplicar

uma ideia que o produtor possuía previamente em sua mente ao objeto a partir de regras determinadas causalmente. É aquilo que os gregos chamavam de poiesis. A tekhné é a ciência dos saberes poiéticos. Pertencem a ela todos os saberes humanos que se aplicam para criar, produzir algum objeto (a escultura, a sapataria, no exemplo de Marx, a agricultura, a maquinofatura e etc.). A técnica, portanto, é o saber que orienta os “ramos particulares de produção”. Marx deixou, assim, implícito que a ciência da produção, ou melhor, de cada produção particular, é técnica. Caso houvesse uma “produção universal”, toda a ciência que a determina seria considerada justamente em seu caráter de produção, portanto, técnico. Nesse caso, a totalidade da produção coincidiria com uma produção universal. No entanto, a argumentação vai no sentido de afirmar que a economia política enquanto ciência que explica a produção como totalidade não é – e não pode ser – um saber igual àquele que é aplicado nos

63 A partir da constatação de que o conceito de produção segue a estrutura do “conceito” hegeliano, já é

possível antever os dois momentos do método, a saber, a abstração das determinações e a construção sintética do todo, tal como aparecerão mais a frente na seção “O método da economia política”.

64 Resta ainda salientar que Marx introduz uma outra frase de cunho metodológico no sentido de não antecipar resultados quanto ao aspecto mais metafísico de seu método, nos revelando, no entanto, que Marx percebe que, mesmo sem querer, está flertando com o idealismo especulativo. “A relação que a exposição científica

(wissenchaftliche Darstellung) tem com o movimento real, também ainda não faz parte daqui”. (MARX,

Intro, 2011, p.618, 42).

65 A noção de que a economia é uma ciência que tem a finalidade de aumentar a riqueza é comum aos economistas burgueses. Stuart Mill, por exemplo, remete, por assim dizer, o caráter técnico da ciência econômica, a Adam Smith: “Primeiro, pelo que diz respeito à noção vulgar de natureza e objeto da economia política, (…) a ciência política [e econômica] é uma ciência que ensina, ou professa ensinar, de que maneira uma nação pode ser tornada rica. Esta noção de que constitui a ciência está em algum grau apoiada pelo título e arranjo que Adam Smith deu a seu inestimável trabalho. Um tratado sistemático de economia política, que ele escolheu chamar uma Investigação da Natureza e Causa da Riqueza das Nações”. De modo que com isso, a definição da economia política “parece sujeita à objeção conclusiva de que ela confunde as ideias essencialmente distintas, apesar de estreitamente unidas, de ciência e arte”. No entanto, “a economia política é uma ciência e não uma arte; que é versada nas leis da natureza, não com máximas de conduta, e nos ensina como as coisas acontecem em si mesmas”. Sendo assim, “a economia política nos informa acerca das leis que regulam a produção, distribuição e consumo da riqueza”. (MILL, 1884, p. 297).

ramos particulares da produção realmente existente. A economia política não é tecnologia porque a sociedade não é uma fábrica. O objeto de estudo não é, portanto, a produção universal ou a técnica universal que produziria a tudo, mas a totalidade das relações sociais humanas que orienta a produção e aplicação da própria técnica na história. O que é perfeitamente coerente com a argumentação que Marx vem desenvolvendo até aqui. Se houvesse uma produção universal enquanto tal não seria histórica, mas necessária e deveria estar entre as “determinações essenciais” que “são comuns a todos os tipos de sociedade”. Logo deveria valer como que naturalmente. Essa rejeição de Marx da perenidade das formas de relação entre as técnicas de produção dos ramos particulares nos leva a questão implícita: se a economia política não é tecnologia, o que ela é então? Ora, ela é justamente uma ciência prática. Mais uma vez é necessário recorrer a Aristóteles para compreender a terminologia marxiana.

Para Aristóteles os saberes humanos referentes à verdade da prática são dois absolutamente distintos66. A produção técnica ou arte (tekhné) é uma atividade que resulta em

um produto que se separa da ação e é, este mesmo, meio para um outro fim. Além disso, ela pressupõe uma parte “mecânica”, baseada em verdades da razão necessária. “A arte (tekhné), portanto, como dissemos, é um estado racional concernente ao criar segundo um processo da razão verdadeira” (ARISTÓTELES, 2013, 1139b). A ação prática (prakton), ao contrário, refere-se às ações em que o fim é a própria ação.

O pensamento (nous) por si mesmo, entretanto, nada move, mas somente o

66 Aristóteles discute a diferença entre a tekhné e a práxis no sexto livro da Ética a Nicômaco. Com interesse em entender as virtudes da alma, ele as dividi-las, diferenciando-se de Platão, em virtudes do nous (intelecto) e virtudes morais ou do ethos (caráter). Como Aristóteles especulativamente trabalha enfaticamente com a tese de que o conhecimento é “baseado numa semelhança ou afinidade de alguma espécie entre sujeito e objeto” (ARISTÓTELES, 2013, 1139a) e, como existem coisas que mudam e coisas que necessariamente permanecem invariáveis, a parte racional da alma deve também dividir-se em diferentes espécies, que seriam aptas a conhecer os diferentes objetos. A alma racional possui, portanto, duas faculdades, uma que especula a partir de princípios invariáveis, imutáveis e eternos, e outra que especula a partir de princípios variáveis. Em outras palavras, assim como há objetos com diferentes princípios (necessários e contingentes), também a razão deve ter diferentes faculdades para conhecê-los. A alma racional busca, em suas duas partes, atingir a verdade. O conhecimento científico, a episteme, conhece apenas a verdade das coisas que possuem

necessidade absoluta e que, portanto, existem necessariamente, não tendo sido criadas e nem sendo passíveis de perecimento. (ARISTÓTELES, 2013, 1139b) Nas questões práticas, entretanto, que visa a verdade das coisas contingentes, esta verdade aparece como o fim ao qual a ação se dirige, e a verdade prática é alcançada na medida em que o desejo tem como finalidade o que prescreve a reta razão. Enquanto o saber o nous, a sofia, e a episteme visam as verdades necessárias, o saber prático é, igualmente cindido. “A classe de coisas variáveis abarca tanto coisas produzidas quanto ações praticadas. Mas o produzir é diferente do agir (…) assim, o estado racional concernente à prática difere do estado racional concernente ao produzir; nem é um deles uma parte do outro, pois agir não é uma forma de produzir, nem produzir uma forma de agir”. (ARISTÓTELES, 2013, 1140a).

pensamento dirigido a um fim e vinculado à ação. (…) posto que quem produz algo tem sempre um fim outro em vista, o ato de fazer não é um fim em si mesmo, é apenas um meio e concerne a algo mais, enquanto uma prática é um fim em si, uma vez que bem-fazer é o fim que o [reto] desejo visa. (ARISTÓTELES, 2013, 1139b).

A diferença entre a técnica e a prática, entre a arte de produzir objetos e a ação propriamente dita, é que a técnica – que produz artefatos não naturais mediante o dar forma a uma matéria pela atividade de um outro, que lhe põe uma finalidade por força motriz do produtor e não do objeto produzido – é sempre meio para outro fim, enquanto a prática deve ser fim em si, e, portanto, ética, uma vez que está ligada à virtude e ao bem agir. Nesse sentido, o saber que prescreve os meios para a boa ação prática é superior ao saber técnico, uma vez que aquele é fim em si mesmo, e determina o padrão pelo qual a razão prática age de modo virtuoso. O bom agir prático é, em Aristóteles, entendido como discernimento (phronesis)67, que é a sabedoria prática – que se opõe à sabedoria teórica (episteme e sofia).

Os saberes desse tipo, assim como para Marx, não podem ser uma mera técnica, nem uma ciência do necessário.

O discernimento (phronesis) [sabedoria prática] não é o mesmo que conhecimento científico, como tampouco pode ser o mesmo que técnica. Não é conhecimento científico porque assuntos relacionados à conduta admitem mudança; e não pode ser arte porque o produzir e o agir são universalmente diferentes, posto que o produzir visa a um fim que é distinto da ação prática, enquanto no agir prático o fim não pode ser outro senão o próprio agir, ou seja, agir bem é o fim em si.” (ARISTÓTELES, 2013, 1140b).

Sendo assim, todos os saberes que são atinentes à prática não podem retirar seus princípios de alguma natureza imutável, mas antes trata-se da própria deliberação acerca do que é melhor para os homens. O saber prático deve ser virtude na medida em que calcula não os melhores meios para a produção, mas os melhores fins (variáveis é claro) para a vida. Aliás, mais especificamente, o saber prático é aquele que determina a forma da vida livre do animal político.

Voltando a Marx, podemos dizer, com base na influência aristótélica, que a Economia Política diferentemente das ciências necessárias (metafísica, física, lógica, matemática et al.) não tem a ver com as leis eternas, mas antes está inscrita no tempo humano do possível, do contingente. E diferentemente da técnica, não tira seus princípios daquelas se constituindo como meio para outra finalidade, mas antes retira seus princípios da própria prática. A ciência que trata da produção como totalidade é uma ciência prática, porque trata da vida em comum dos homens mais do que sobre a efetiva produção de qualquer bem em particular que

67 O conceito é costumeiramente também traduzido por Prudência. Para uma melhor compreensão da noção de

mediante a técnica é meio para uma finalidade pontual. A economia não pode, portanto, ser concebida meramente como uma técnica para aumentar a riqueza não de uma empresa, mas de uma nação, mas antes deve ser uma ciência social e histórica das justificações internas das formas de vida econômicas e, por isso, contingentes, produto da liberdade humana68.

2.3. O FIM OCULTO DA ECONOMIA POLÍTICA: AS SUPOSTAS