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3 A AGÊNCIA POPULAR DE FOMENTO À CULTURA SOLANO TRINDADE

3.2 Economia Solidária e a narrativa de redes

A Economia Solidária surge nos primórdios do capitalismo industrial, como um movimento de organização operária que visa a construir meios para maior autonomia produtiva e financeira. Diante disso, formatos organizacionais foram sendo estabelecidos tendo como pressuposto elementos que se contrapunham ao modelo de maximação do lucro especialmente orquestrado através da separação entre força de trabalho e propriedade sobre o capital. Assim, em oposição à empresa capitalista, estruturou a empresa solidária. Em texto de Paul Singer consta:

O capital da empresa solidária é possuído pelos que nela trabalham e apenas por eles. Trabalho e capital estão fundidos porque todos os que trabalham são proprietários da empresa e não há proprietários que não trabalhem na empresa. E a propriedade da empresa é dividida por igual entre todos os trabalhadores, para que todos tenham o mesmo poder de decisão sobre ela. Empresas solidárias são, em geral, administradas por sócios eleitos para a função e que se pautam pelas diretrizes aprovadas em assembléias gerais ou, quando a empresa é grande demais, em conselhos de delegados eleitos por todos os trabalhadores. A empresa solidária é basicamente de trabalhadores, que apenas secundariamente são seus proprietários. Por isso, sua finalidade básica não é maximizar lucro, mas a quantidade e a qualidade do trabalho. Na realidade, na empresa solidária não há lucro porque nenhuma parte de sua receita é distribuída em proporção às cotas de capital. Ela pode tomar empréstimos dos próprios sócios ou de terceiros e procura pagar os menores juros do mercado aos credores (internos ou externos) (SINGER, 2002, In: Boaventura dos Santos (org.), pág. 02).

Dentro do entendimento das empresas solidárias, estão organizados modelos de funcionamento cooperativista. A cooperativa de produção é sua unidade básica desse formato e expressa na prática de maneira bastante emblemática os preceitos solidários. Há ainda as cooperativas de comercialização, de consumo de crédito e de crédito comunitário. O princípio

central do cooperativismo é instituir um arranjo jurídico que regulamente a tomada de decisão partilhada e para isso evocam outro pressuposto de aplicação da Economia Solidária, a autogestão, que tem por base a autonomia no procedimento produtivo o que implica, em contrapartida, o engajamento dos cooperados no cumprimento das funções necessárias e nos processos de tomada de decisão.

A empresa solidária se administra democraticamente, ou seja, pratica a autogestão. Quando ela é pequena, todas as decisões são tomadas em assembléias, que podem ocorrer em curtos intervalos, quando há necessidade. Quando ela é grande, assembleias-gerais são mais raras porque é muito difícil organizar uma discussão significativa entre um grande número de pessoas. Então os sócios elegem delegados por seção ou departamento, que se reúnem para deliberar em nome de todos. Decisões de rotina são de responsabilidade de encarregados e gerentes, escolhidos pelos sócios ou por uma diretoria eleita pelos sócios […] Para que a autogestão se realize, é preciso que todos os sócios se informem do que ocorre na empresa e das alternativas disponíveis para a resolução de cada problema. Ao longo do tempo, acumulam-se diretrizes e decisões que, uma vez adotadas, servem para resolver muitos problemas freqüentes (SINGER, 2002, pág. 18). A apropriação do discurso e práticas da Economia Solidária, evidenciados pela operacionalização do Banco União Sampaio dentro da União Popular de Mulheres, e o desafio de compor estratégias de fortalecimento de uma produção cultural do Campo Limpo que se mostrava expressiva e demandante, nesse período embrionário de formação da Agência Solano Trindade, encontra um segundo aliado, os modelos colaborativos de organização em rede da juventude. Nesse momento, um coletivo em específico foi crucial para um primeiro desenho de como poderia funcionar a Solano Trindade: o Fora do Eixo. De difícil descrição e causador de grande polêmica acerca de seu modo de funcionamento, esse coletivo surge em 2005 como uma evolução do Espaço Cubo, iniciativa de três anos antes, cujo objeto era compor um arranjo de desenvolvimento da música local na cidade de Cuiabá através, justamente, da moeda complementar Cubo Card. Entretanto, o Fora do Eixo, extrapola em muito o lugar de agente da cena musical independente, tornando-se uma relevante liderança jovem no campo da cultura e das novas mídias de comunicação. O Fora do Eixo foi alvo de alguns estudos acadêmicos, em um deles, a dissertação de mestrado que deu origem ao livro “Aos novos bárbaros: as aventuras políticas do Fora do Eixo” (que justamente expressa a dimensão de representatividade que o grupo teria atingido), lemos:

Disso depreende-se que o Fora do Eixo se propõe a redesenhar as localidades onde atua. Com cultura, ativismo, festa e manejo avançado da comunicação digital. É, portanto, uma lente específica, um modo

de ver, uma tática. Nada no vídeo denota um programa político específico. O programa é fazer. Por fim, a peça audiovisual lista velozmente cidades onde o coletivo está presente, no Brasil e na América Latina: Fortaleza, São Paulo, Piracanjuba e Catalão, entre outras localidades. Encerra-se, após 3 minutos, com: “crescendo e contando (SAVAZONI, 2013, pág. 15).

E na descrição dos momentos chave de consolidação do coletivo, identifica-se, também, a forte inspiração na Economia Solidária.

A primeira reunião destinada a debater essa nova organização ocorreu durante o Festival Grito Rock, em paralelo à festa de carnaval, no ano de 2006. Naquele momento, forjou-se uma parceria entre produtores sul-matogrossenses e seus pares de Rio Branco (AC), Uberlândia (MG) e Londrina (PR), conformando o núcleo de pioneiros do Fora do Eixo. Ainda assim, a rede só iria realizar seu primeiro Congresso em Cuiabá, no ano de 2008, em paralelo ao Festival Calango. Na ocasião, o principal nome convidado a expor suas idéias para o grupo de articuladores foi o economista Paul Singer, então Secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho.

De setembro de 2008, quando foi realizado o primeiro encontro nacional dos coletivos aderentes ao circuito, até agosto de 2013, momento em que a redação final desta dissertação é produzida, o Fora do Eixo percorreu um percurso de crescimento exponencial e consolidação de suas formas de atuação (SAVAZONI, 2013, pág. 18). De sua estrutura macro de organização chama atenção o desenvolvimento do que o grupo caracteriza como simulacros que são, justamente, simulações dos espaços legitimados e de poder, orquestrados com o objetivo de fazer frente a tais estruturas políticas, sociais e econômicas. Foram escolhidos quatro simulacros como norteadores das atividades Fora do Eixo (que também seguem uma complexa e hierárquica normativa de execução): Universidade, Banco, Partido e Mídia. Outro elemento central é terem desenvolvido uma vida coletiva, materializada nas Casas Fora do Eixo, onde toda a estrutura de bens materiais é dividida, inclusive a gestão financeira, que é organizada por um caixa coletivo. Há ainda o Fundo Nacional Fora do Eixo que é formado pela taxa de gerenciamento aplicada a qualquer projeto cultural gerenciado pelo coletivo.

O contexto que explicita a aproximação entre o Fora do Eixo e as ideias de estruturação da Solano Trindade, está na informação de que o primeiro projeto que nomeava a Agência previa que esta fosse incubada38 pelo Fora do Eixo. O projeto não chegou a ser

38 O conceito de incubação é recentemente usado como procedimento de capacitação voltado à aprendizagem de ferramentas gerenciais tendo por método aspectos da Economia e da Administração. Tem sido usual

implementado, mas previa recursos da ITCP-USP através de programa voltado a processos de incubação de empreendimentos culturais e artísticos. O texto do projeto submetido à seleção e disponibilizado no site informa:

Pensando em soluções criativas para os problemas que as atividades culturais da região do Campo Limpo enfrentam como as expostas acima, que explorem o potencial existente na região e que contribuam para amenizar essas dificuldades, a ITCP-USP enquanto coordenadora, em parceria com a UPM e com o Circuito Fora do Eixo (CFE) – entidade que trabalha com redes culturais –, se propõe a desenvolver este projeto.

Entendendo empreendimentos culturais não apenas como grupos que produzem e comercializam arte, mas sim como espaços que geram renda a partir de todos os tipos de atividades artísticas, as três entidades, juntamente com as iniciativas culturais já atuantes na região, visam entender e construir meios para alcançar sua sustentabilidade e também para promover a sustentabilidade de outras iniciativas que possam surgir no futuro.

Para isso, o projeto, além de potencializar as ações que já ocorrem na comunidade, busca viabilizar estratégias de fomento à cultura através da consolidação da Agência Popular de Fomento à Cultura Solano Trindade (Projeto disponível na internet pelo link www.fusp.org.br, acessado em março de 2016).

Nesse sentido, a nova, porém, já fortemente reconhecida e apropriada pela União Popular de Mulheres narrativa sobre economia solidária (a partir, sobretudo, da existência do Banco), ganha um novo lugar de funcionamento nessa juventude que se aproxima da instituição em busca de financiamento das suas atividades culturais e que identifica as premissas do colaborativismo e da autogestão com o discurso contemporâneo da articulação em rede cuja origem e modelo de operação relaciona-se com o contexto das NTICs surgidas nos anos 1970. Além disso, na ótica do grupo, a capacidade de organização e articulação nacional do Coletivo Fora do Eixo, é bastante animadora quanto aos novos meios de transformação social e, além do mais, a ideia de proporem um modelo alternativo de produção cultural encontra sinergia com os anseios e demandas da UPM e desse novo contingente de jovens, agentes culturais e midiáticos envolvidos em seu funcionamento.

Então, especialmente aterrado em uma das maiores periferias do Brasil, esse cenário organiza-se em um arranjo específico em torno da cultura. Na prática, as ações da Solano Trindade foram sendo organizadas a partir da defesa dos direitos culturais de segmentos marginalizados – especialmente identificados como oriundos de matriz negra-

propor a adaptação dessas ferramentas a processos produtivos das artes e expressões culturais. Parte das políticas exercidas pelas pautas da Economia Criativa, por exemplo, se utilizada dessa proposta.

africana e indígena e, empatizados com o contexto urbano, sob a nomenclatura de povos de periferia. Mais uma vez, aspectos de construção identitária são mobilizados como ativos políticos. Com isso, os agentes da Agência atualizam o espectro de disputa política e social, ao mesmo tempo, que vão construindo o espaço de legitimidade para si próprios. Cria-se, dessa maneira, um escopo complexo de atividades, um sistema de argumentação e um mecanismo de produção subjetiva entrelaçados em si e partir dos quais a Solano Trindade se desenvolve e formata suas operações práticas. Assim, busca-se evidenciar o cenário e contexto urbanos específicos ao surgimento da Agência que a partir do reconhecimento da economia solidária como ferramental propício ao fomento da geração de renda nas periferias e reafirmando o campo das práticas culturais como elemento de uso político, almeja tornar real um modelo de produção e circulação de bens e serviços culturais que repliquem as práticas solidárias e que ainda qualifique o lugar social da juventude particularmente vulnerável à violência. O efeito que se pode observar dessa sucessão de nexo que cria a proposta da Agência Solano Trindade é a amplificação da ideia de um sujeito periférico que tem por ação central mobilizar o lugar da cultura como ferramenta de transformação social e de autossuficiência. A pergunta chave que se procura seguir no olhar adensado sobre suas práticas é, por sua vez, que elementos estão presentes de forma implícita e explícita nas relações e discursos articulados pela Agência que podem complexificar essa busca de autonomia.·