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2 PERIFERIA E PRODUÇÃO CULTURAL

2.2 Uma das periferias de São Paulo: o Capão Redondo

Capão Redondo é um bairro da zona sul da cidade de São Paulo, integrado ao distrito de Campo Limpo cuja extensão é de 36,7 Km² com uma população de 650.000 habitantes e densidade demográfica de 17.486 hab./km². Administrativamente Campo Limpo é também o nome de uma das 32 subprefeituras regionais da cidade de São Paulo e engloba (além do Capão) os bairros Vila Andrade e o homônimo Campo Limpo. Desse contingente, Capão Redondo é a área mais populosa, com 19.759 hab./km², 13,60 km2 de extensão e

população total de 268.729 habitantes25. Em termos comparativos, bairros da zona oeste,

como os da subprefeitura Pinheiros, apresentam variações de densidade demográfica entre 8.171 hab./km² (em Pinheiros) e 5.600 hab./km² (em Alto de Pinheiros). Esse adensamento característico das localidades periféricas fica ainda mais evidente quando comparamos o histórico de crescimento da população entre bairros bem díspares no que tange sua infraestrutura urbana e econômica.

Dados da População Recenseada e Taxas de Crescimento

25 Dados de 2010 extraídos do site da subprefeitura da região:

http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/subprefeituras/dados_demograficos/index.p hp?p=12758. Acessado em 11 de março de 2015.

Figura1: Crescimento populacional segundo dados censitários. Fonte: IBGE/ plataforma Minha Sampa.

O cenário demográfico é inversamente proporcional à infraestutura urbana oferecida, isto é, Campo Limpo reúne 237 favelas, há 15 áreas em risco de desabamento, fator que ainda hoje revela problemas de primeira ordem como déficit habitacional, precariedade dos serviços de coleta de lixo, além da escassez de infraestrutura de consumo coletivo. É marcante na localidade ter-se o acesso a serviços púbicos em especial educação, cultura, lazer extremamente reduzido se comparado às demais áreas da cidade. O baixo incentivo à literatura, por exemplo, apontado por moradores como uma carência óbvia na região, faz sentido quando lemos a informação de que há apenas 0,17%, de livros infanto-juvenis disponíveis em acervo e a oferta no bairro de equipamentos públicos na região corresponde a somente 1,18% do todo da cidade, isto é, há apenas 3 bibliotecas para atender toda a localidade. Novamente, a análise dos dados explicita a situação:

Total de

unidades subprefeitura Unidades na do Campo Limpo Unidades no bairro do Capão Redondo Unidade na subprefeitura de Pinheiros Centros Culturais, Espaços

Culturais e Casas de Cultura 95 1 - 24 Galerias de Arte 195 1 - 127 Museus 129 - - 49 Salas de Cinema 358 23 5 83

Salas de Shows e Concertos 278 - - 145 Salas de Teatro 281 1 - 69 Centros Educacionais Unificados - CEUs 45 5 2 3

Em termos de organização da força de trabalho, concentra quase dez vezes menos empregos formais que bairros como o Itaim Bibi, dos quais a maior parte não ultrapassa quatro salários mínimos.

Historicamente, o bairro do Capão Redondo constitui-se no século XIX, como a Colônia de Santo Amaro e servia de abastecimento agrícola para São Paulo, entendida então como ‘a cidade’. As regiões que hoje designamos como periferia eram áreas rurais abastadas, com chácaras, sertanias e, por vezes, utilizadas como localidade de lazer e refúgio da elite da cidade. Tal situação foi se alterando em decorrência da atividade cafeeira, conforme já citado. Um exemplo de impacto relevante para a configuração daquela localidade são as novas vias ferroviárias que foram substituindo os caminhos já abertos por carroças. Retomando o que foi Figura 3: Distribuição de empregos formais e taxa de renda em regiões de São Paulo. Fonte: IBGE/ plataforma Minha Sampa.

explorado nesse texto acerca do surgimento das periferias urbanas de São Paulo, também no caso do Capão Redondo, essa alteração urbanística, inaugura um novo ciclo de rentabilidade sobre a terra. Uma consequência marcante dessa inovação foi o processo de adensamento demográfico que passa a transcorrer no bairro a partir da virada do século XIX para o XX. Findado o ciclo do café, nas décadas seguintes de 1940 e 1950, a composição econômica de São Paulo volta-se para a concentração de parques industriais (na famosa região do ABC), o que reconfigura em definitivo a geografia e organização social das regiões até então agrícolas como o Capão Redondo. No período pós 1950, no Capão Redondo, inicia-se o processo de loteamento, que configurou, conforme se buscou apresentar, o início da questão habitacional nas regiões afastadas do centro da cidade, uma vez que tal mecanismo de urbanização se deu de forma desordenada, sem suporte do poder público e muitas vezes de maneira irregular. Sobre esse processo específico a geógrafa Lourdes Carril destaca:

O distrito de Capão Redondo, após a década de 1950, abre suas terras ao processo de loteamentos, pois lá ainda se concentravam as chácaras que foram incorporadas ao crescente mercado. Nele, reproduzir-se-á o modelo de autoconstrução, principalmente destinado às classes trabalhadoras, sendo que os bairros crescem em números (2006, pág. 120).

E ainda

O processo de urbanização da periferia, deixado a cargo da iniciativa privada, foi realizado até a década de 1970 com pouco controle ou ajuda das autoridades governamentais (2006, pág. 84).

A partir da década de 1970, acontece a explosão demográfica no bairro, que passa a servir como cidade-dormitório, sendo ocupada por trabalhadores que serviam de mão de obra fabril, mas que dispunham de pouquíssima infraestrutura urbanística, principalmente no que tange a serviços básicos de saneamento e moradia. Novamente, Lourdes Carril discorre sobre as especificidades do bairro Capão Redondo e nos aponta elementos relevantes para compreender como a região representa hoje o que a própria autora caracteriza como hiperperiferia.

A concepção de hiperperiferia, nesse sentido, significa a formação de bolsões de pobreza compostos por famílias que não puderam pagar pela valorização do bairro urbanizado. Na prática, denota que a população foi sendo empurrada cada vez mais para espaços de miséria, levada à imobilidade espacial devido à falta de recursos financeiros até para pagar o transporte, numa tendência ao confinamento territorial. Como o fenômeno de exclusão faz parte do próprio existir do capitalismo, não sendo, portanto, recente, torna-se necessário explicitar seu significado no período atual, porque estamos

diante de um novo movimento de exclusão social, que na verdade, encampa de forma diversa, um número maior e variado de pessoas, de faixas etárias distintas e de camadas sociais diferentes. São desempregados ou jovens universitários recém-formados que não são (re) incorporados rapidamente ao mercado de trabalho; aonde há toda sorte de escassez e onde moram os mais pobres” (CARRIL,2006, pág. 160).

Nesse raciocínio, ao buscar entender as relações existentes entre a realidade dos bairros periféricos e as iniciativas da Agência Solano Trindade, alguns apontamentos são possíveis. Em primeiro lugar, estamos nos referindo a uma localidade de alta densidade demográfica, socialmente apartada da boa infraestrutura urbana oferecida como privilégio dos que habitam as áreas centrais. Em segundo lugar, somos alertados para a persistência da segregação econômica e social que atinge as faixas mais jovens dessa população, uma vez que não estão incluídos de maneira satisfatória no fluxo produtivo da cidade, mesmo com o aumento dos índices de educação formal, especialmente de nível superior, os empregos formais continuam longe de regiões como Capão Redondo e Campo Limpo.

Os dados apresentados por Carril nos apontam, ainda, parte do perfil da população que compõe o Capão Redondo: trabalhadores do mercado informal; com renda igual ou inferior a cinco salários mínimos; a mulher é a principal provedora das famílias o que torna a falta de serviços público, como creches, ainda mais problemática; tem uma concentração de jovens (entre 15 e 24 anos) maior que regiões centrais; e uma população que se autodeclara, em sua maioria, como parda ou branca. Esse cenário de gradativa marginalização a qual os moradores são submetidos tem, dessa maneira, relação com os argumentos e propostas de atuação da Agência Solano Trindade. Logo as atividades do movimento tomam forma com o objetivo central de promover melhorias e a valorização da localidade. Mas não unicamente, pois parte de suas práticas e discurso diz respeito à tentativa de reconexão (ou de criação) com um status de empoderamento e visibilidade de seus agentes. E ainda, no que tange um posicionamento frente ao modo capitalista de produção, têm por preocupação a geração de renda e a inclusão produtiva. Em boa medida, a Solano surge, então, como signatária de um histórico de ação comunitária de luta por direitos, justificado e motivado por essa circunstância de precariedade socialmente construída, de maneira que esse quadro de engajamento político, social e econômico relaciona-se, de forma explícita, com o quadro de surgimento das hiperperiferias.

É por esse contexto que podemos manter a ideia do espaço periférico como um lugar de disputa. Tal argumento torna-se substancial quando se acompanha a explicação de

Lourdes Carril acerca de a favela constituir-se como uma territorialidade nova para aqueles que foram desterritorrializados pelo processo histórico da escravidão e migração, e nesse arranjo de formação das cidades brasileiras, fala-se exatamente dessa população empobrecida, majoritariamente negra e que nunca foi aceita em uma condição real de cidadania na sociedade. Em outras palavras a ideia apresentada pela geógrafa é que as periferias e favelas urbanas, assim como os quilombos coloniais, existem como espaço de resistência e isso se deve ao fato de reorganizarem elementos identitários e de operarem por mecanismos de reterritorialização dessa parcela da população.

No Capão Redondo, já há a segunda geração daqueles que migraram, embora muitos ainda continuem a vir para se juntar aos familiares. As raízes partidas daqueles que vieram, constituíram famílias e tiveram filhos, reconstroem-se nos bairros de periferia, na luta por moradia, trabalho e dignidade. Esse processo atinge a cultura, sobretudo pelo desemprego que, segundo Bosi, é um “desenraizamento de segundo grau’; estar fora do mercado de trabalho destitui a possibilidade do estabelecimento de novas relações sociais, intercâmbios simbólicos e culturais, um novo enraizamento, ainda que com perdas em relação à vivência do passado (CARRIL, 2006, pg. 179).

Nesse sentido, as periferias, a despeito de serem estigmatizadas, no sentido territorial, de escassez e precariedade, também podem ser descritas como uma esfera de (re) atualização dos sujeitos, isto porque, abarca possibilidades de reconstrução identitária e de recolocação do que significa sua existência. Esses procedimentos de reterritorialização correspondem não apenas à tenacidade dos movimentos sociais em torno das questões pragmáticas relativas à melhoria de qualidade de vida nas periferias, mas encontram especial sentido de operação nas estratégias que se utilizam da cultura como instrumento narrativo e prático.

O caminho que se busca percorrer aqui apresenta a concepção de um modo de produção capitalista contemporâneo que, ao incorporar-se às condições do contexto brasileiro, revela características que operam em registro específico de dominação e poder. A correlação entre as forças de organização social complexificam-se em sua quantidade, seu modus operandi e em seus vetores de impacto. Como possibilitador dessa novidade, está a própria esfera da vida que abastece com elementos de construção e (re) construção identitária a produção capitalista da própria vida. Conforme se defende, no caso brasileiro, periferia e práticas culturais tem lugar privilegiado na manutenção desse sistema. Com isso em mente, é indispensável focalizar a investigação nessa cena cultural periférica, da qual a Agência popular de fomento à cultura Solano Trindade reivindica sua origem e baseia sua prática.