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ECPHRASIS NA NARRATIVA DE ÁGUA VIVA E NAS PINTURAS DE FRIDA

Cada página de Água Viva pode ser vista como um quadro: enquanto a escrita conta, a pintura mostra. Em várias passagens, a personagem descreve uma imagem tão minuciosamente que parece que se pode vê-la, ou até senti-la. Isso remete ao conceito de ecphrasis, termo grego que significa “descrição” e que designa um mecanismo de retórica que funcionaria como uma “ponte” entre duas linguagens artísticas, como, por exemplo, a pintura e a literatura. Na ecphrasis, há uma descrição textual tão detalhada e viva, que se tem a sensação de enxergar o objeto descrito, por meio da escrita. Ela tem o intuito de criar uma imagem mental tão marcante quanto seria a do objeto, se estivesse diante dos olhos do leitor.

A ecphrasis é uma técnica utilizada desde a Antiguidade, quando palavras, frases, signos verbais já eram usados para sugerir imagens mentais. Etimologicamente, de acordo com Alfred Com, o termo ecphrasis (ou ekphrasi) é uma transcrição do grego “ek” (fora de) e “phrasis” (frase, expressão). Segundo o autor, esse termo tem sido traduzido simplesmente como "descrição" e, originalmente, foi empregado como um conceito da Retórica, designando uma passagem, em prosa ou em verso, em que um objeto era descrito. Contudo, a palavra poderia também significar uma passagem que fornecesse um pequeno discurso atribuído a um trabalho de arte, que não contaria inicialmente com uma descrição.

Um exemplo antigo de ecphrasis é a longa descrição que Homero faz do escudo de Aquiles, na Ilíada. O escudo era em baixo relevo, gravado em metal, e é descrito em detalhes elaborados, que incluem constelações, pastagens, danças e grandes cidades. Segundo Com (2008), a notação visual é tão grande que os críticos dizem que nenhum escudo no mundo real seria capaz de conter todos os elementos mencionados por Homero.

A seguir, um trecho do livro Água viva, que ao ser lido, além de dar ao leitor a possibilidade de imaginar a gruta, também torna possível que ele sinta o que se passa dentro dela:

E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra [...] As grutas são o meu inferno. Gruta sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? Espantosa, espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura tremeluzem pendurados aos ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e pelas paredes. Entre as pedras o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos desde a Pré-história, através de mortes e nascimentos, pareciam bestas ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu. Tudo é pesado de sonho quando pinto uma gruta ou te escrevo sobre ela

[...] Só repetindo o seu doce horror, caverna de terror e das maravilhas, lugar de almas aflitas, inverno e inferno, substrato imprevisível do mal que está dentro de uma terra que não é fértil. (LISPECTOR, 1973, p. 15-16)

A personagem descreve tão minuciosamente a pintura, que praticamente conseguimos ver e sentir o que ela vê e sente ao pintar e ao escrever sobre a gruta. A atmosfera do lugar é pesada, lugar de horror, terror – e, ao mesmo tempo, de maravilhas. Ela conclui dizendo que tem medo porque só pinta o horror. “Tenho medo então de mim que sei pintar o horror, eu, bicho de cavernas ecoantes que sou.” (p. 16) Como dito na seção 6 deste estudo, Lispector pintou uma gruta em 1975, mas a partir do que escreveu em Água viva em 1973.

Além da escrita de Clarice Lispector, a ecphrasis está presente nas pinturas de Frida Kahlo. No quadro Mi nacimiento, de 1932 (Figura 18), Kahlo pinta como teria sido seu nascimento. Sua mãe, Matilde Calderón, tinha perdido o único filho homem da família poucos meses depois de ele ter nascido e logo depois engravidou de Frida, esperando que nascesse um menino. Matilde teve depressão pós-parto, ao ver que concebeu uma menina, e isso se refletiu sobre Frida durante toda sua vida, uma vez que a mãe não desenvolveu um laço afetivo com ela.

Figura 18: Frida Kahlo, Mi nacimiento, 1932. Técnica: Óleo sobre painel de metal, 30,5x53 cm. Fonte: Historia Arte.

Em Frida Kahlo la belleza terible, Gérard de Cortanze faz uma descrição do quadro acima:

En Mi nacimiento, una tela pintada en 1932, se ve a Matilde, acostada de espaldas, con las piernas separadas, muerta, dando a luz a Frida, cuyo cuerpo, salvo la cabeza está todavía dentro del útero. Encima de la cabeza de la madre, una imagen de la Virgen de los Dores llorando, atravesada por cuchillos, sangrando y observando al parecer la extraña escena. (CORTANZE, 2015, p. 28)

Outro quadro que representa a falta de afeto entre elas é o intitulado “Mi nana y yo”, de 1937 (Figura 19). Neste quadro há uma mulher sem nenhum afeto, nenhuma relação com Kahlo. Essa seria a representação de sua ama de leite, uma indígena nativa contratada, exclusivamente para amamenta-la. No rosto da ama, há uma máscara funerária pré-colombiana que possui a ideia de representar algo que não a si mesmo, já que a pintora o desenhara com a memória de adulta- por esse motivo, Kahlo se representa com corpo de bebê e seu rosto adulto- e por consequência, não se lembrava do rosto da mulher.

Nos últimos anos de sua vida, a artista leu o livro intitulado Libro de los muertos de los antigos egípcios, no qual uma frase a surpreendeu: “se pare a sí mismo”, ou seja, uma pessoa pare, dá à luz a si mesma. É possível fazer a seguinte interpretação desses dois quadros: Kahlo é a pessoa que dá à luz a si mesma, já que sua mãe não a queria e não tinha afeto por ela.

Pode-se ver, nos quadros acima corpos que representam ações concretas do mundo da pintora. Nele está presente a vivacidade que Kahlo traz do seu mundo para a tela, assim como ocorria na escrita de Lispector; nele consegue-se sentir a distância entre Frida e sua mãe, não apenas vê-la.

Em outro quadro, chamado “Sin esperanza”, de 1945 (Figura 20), Kahlo mostra como ficou depois de muitas cirurgias, acamada e alimentando-se por meio de uma sonda, no quadro representada por um cone de dimensões tão exageradas, que tem de ser sustentado. O cone está em carne viva, saindo de seu corpo, e ao invés de estar sendo alimentada, ela está sendo desnutrida. No cone há comidas inteiras, e não trituradas, além de uma caveira mexicana que representa a morte. Na legenda do quadro, Kahlo escreve: "No resta ni la menor esperanza en mí... Todo se mueve en sintonía con lo que el estómago contiene". Ou seja, não há nada em seu estomago, e as coisas estão caminhando em sintonia com ele, ela está morrendo.

No quadro, vê-se também a paisagem atrás de Kahlo, da qual uma possível interpretação seria: ao redor da cama, há uma lua, que representa a noite, e um sol, que representa o dia, ambos figurando o decorrer do tempo, e Kahlo vendo passar seus dias de vida. O sol e a lua também são símbolos muito presentes nas obras de Kahlo, em sua maioria representam a mitologia pré-colombiana, o sol representa a dor e a lua a feminilidade. No quadro também há a representação de uma paisagem desértica, o solo é infértil, seco, estéril como ela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Coutinho (2013), a literatura comparada tem como marca fundamental a noção de transversalidade, que assegura à área um caráter de amplitude, que garante o seu caráter internacional, interlinguístico e interdisciplinar:

A Literatura Comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico e o estudo das relações entre a literatura, de um lado, e outras áreas do conhecimento e crença, como as artes, a filosofia, a história, as ciências sociais, a religião etc., de outro lado. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana (COUTINHO, 2013, p. 15)

Deste modo, o caráter internacional da presente pesquisa revela-se na comparação de obras de uma artista mexicana com as de uma artista naturalizada brasileira; o caráter interlinguístico, no trabalho com dois idiomas diferentes, o espanhol do México e o português do Brasil; e o caráter interdisciplinar, na mobilização de duas áreas do conhecimento distintas, a pintura e a literatura, tendo como base teórica a psicanálise.

A amplitude do método comparatista permitiu o estudo de culturas e períodos históricos distintos e relativamente distantes entre si. Com isso, o que antes era distante no espaço tempo, foi aproximado e deu a possibilidade a uma comparação. Kahlo, no México, Pós-revolução, abrindo espaço para a cultura nacional; Lispector, no Brasil da ditadura militar, criando espaço para novas sensibilidades, em suas crônicas; as duas sendo peças fundamentais para o desenvolvimento da cultura e das artes de seus países e de seus tempos.

Foi possível construir não só um diálogo entre pintura e literatura baseado na teoria freudiana, mas também entender conceitos como os de "sublimação" e "sujeito cindido", bem como entender o modo pelo qual essas artistas trazem questões do inconsciente com tanta vivacidade para suas obras. Segundo Klinkby apud Santos (2017) as obras de Lispector tornaram-se objeto de estudos muito importantes para aqueles que tentam desvendar os enigmas que envolve a escrita e a linguagem e para aqueles que querem traçar pontes seguras entre literatura e psicanálise. Algo semelhante ocorre com as obras de Frida Kahlo, que constituíram-se objeto de estudo para pesquisadores do Surrealismo e também para psicanalistas.

Dessa forma, o presente estudo aponta diferenças e semelhanças entre essas duas grandes artistas, seja em relação às suas obras, seja no que concerne a suas vivências pessoais. Ademais, Kahlo e Lispector compartilhavam do gosto pela escrita e pela pintura e traziam para as ambas as áreas aquilo que estava por trás de seus pensamentos, o "não dito", abrindo caminho

para uma nova interpretação e expressão da realidade. Essa nova expressão da realidade tornava as duas artistas sujeitos cindidos, fragmentados.

Segundo Herrera, 2011, Kahlo era obcecada por sua doença; e, consequentemente, por sua imagem, que foi mudando ao longo das diversas cirurgias. A maioria das cirurgias a que se submeteu não eram necessárias, mas ela queria modificar a imagem que enxergava no espelho. Essa obsessão que Herrera descreve pode ser vista como Transtorno Dismórfico Corporal (TDC), um distúrbio que distorce a visão que a pessoa tem de si mesma: ao se olhar no espelho, ela vê defeitos que não existem, ou se incomoda exageradamente com certas características físicas, o que a leva, na maioria das vezes, a procedimentos estéticos.

Kahlo nunca esteve satisfeita com seu corpo e sempre se viu rachada, quebrada, ferida, retratando essa percepção em seus quadros, que são como espelhos que ela criou para si mesma. Lispector, ao escrever sobre as máscaras, também cria diversas personas, nunca satisfeitas com seus rostos, ou amedrontadas de mostrá-los para o mundo, que se escondem com máscaras de maquiagem, máscaras sociais, máscaras psicológicas, que constroem corpos maleáveis e diferentes, que podem ser desmontados e remodelados, trazendo diversas identidades para uma só pessoa.

Essa característica da escrita lispectoriana remete ao Manifesto ciborgue – ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX (1985), ensaio da bióloga e filósofa norte-americana Donna J. Haraway. O ciborgue, para ela, seria uma criatura composta por máquinas e organismo, em uma mescla de realidade e ficção. Os polos homem/mulher e organismo/máquina, antes opostos e estanques, tornar-se-iam complementares e maleáveis. As concepções tradicionais de corpo não seriam mais estabelecidas, o que possibilitaria uma visão mais ampla e integrada das discussões sobre gênero e sexualidade, bem como das várias identidades que um indivíduo possa ter, já que não aboliria as fronteiras entre elas.

Kahlo e Lispector foram duas artistas completas, que inspiram milhares de pessoas nos dias atuais. Mulheres que fizeram muito por seus países, em momentos de construção de identidade nacional. Kahlo, por um México mais latino, menos centrado nos padrões europeus; Lispector, com seus questionamentos sobre a existência e os aspectos mais íntimos do ser.

REFERÊNCIAS

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BATCHELOR, David; FER, Briony; WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: a arte no entre-guerras. São Paulo: Cosac Naify. 1998.

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BURRUS, Christina.Frida Kahlo: pinto a minha realidade. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

COM, Alfred. Notes on ekphrasis, 2008. Disponível em < https://poets.org/text/notes-ekphrasis> Acesso em: 13 de março de 2020.

CORTANZE, Gérard de. Frida Kahlo: la belleza terible. Adaptado por Núria Petit Fontseré. 5.reimp. Buenos Aires: Paidós, 2015.

COUTINHO, Eduardo F. Literatura Comparada: reflexões. Rio de Janeiro: Editora Annablume, 2013.

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HARAWAY, Donna; KUNZRU Hari; TADEU Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Tradução Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

IANNACE, Ricardo. Retratos em Clarice Lispector: literatura, pintura e fotografia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

KAHLO, Frida. O diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo. Tradução de Mário Pontes; introdução de Frederico Morais. 5º ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a.

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MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017

PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão e post scripitum. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

SANTOS, Ray et al. Literatura e psicanálise: a presença do inconsciente na escrita de Clarice

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<https://eventos.set.edu.br/index.php/enfope/article/view/5076> Acesso em: 13 de março de 2020.

SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector: figuras da escrita. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012.

TIBOL, Raquel. Frida Kahlo en su luz más íntima. México: Random House, 2005. ______. Escrituras de Frida Kahlo. México: Lumen, 2007.

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