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Edição crítica utilizada e outras edições

9. O texto de Flaco 1 Manuscritos

9.4. Edição crítica utilizada e outras edições

Na nossa tradução utilizámos a edição crítica de Reiter, incluída no vol. VI das

Philoni Alexandrini Opera Quae Supersunt, publicado pela primeira vez em 1915.

Embora datada do princípio do século passado, não possuímos uma reconstituição mais fiável do texto de Flaco. Os Prolegomena ao vol. VI apresentam uma descrição exaustiva dos manuscritos e da história do texto.

Os comentários de que nos socorremos foram o de van der Horst (2003) e o de Box (1939). Este último será talvez o mais importante estudo sobre Flaco produzido durante o séc. XX: pela atenção que dedica aos problemas históricos suscitados pela obra, tendo por base e reproduzindo constantemente fontes primárias, continua a ter valor, embora em alguns aspectos esteja, inevitavelmente, ultrapassado. A edição é bilíngue e o texto utilizado para a tradução é o de Reiter.

O comentário de van der Horst (2003), o mais actual de que dispomos, em muitos aspectos acaba por colmatar as falhas que encontramos no comentário de Box. A sua introdução lida com quase todas as questões vitais para se compreender o contexto histórico e literário da obra. A tradução é, também ela, feita com base na edição crítica de Reiter, embora este autor em determinados passos prefira lições registadas no aparato crítico ou a leitura proposta por outros editores, sobretudo Mangey (1742), o que de

resto se verifica também na obra de Box. A grande desvantagem deste comentário será talvez o facto de a edição não ser bilíngue. Dependemos grandemente desta obra de van der Horst na elaboração das notas da nossa tradução.

Socorremo-nos ainda das traduções anotadas de Colson e de Pelletier, cuja edição crítica utilizada é, em ambos os casos, a de Reiter. A tradução de Colson foi publicada pela primeira vez em 1941, é precedida de uma introdução muito breve e apresenta notas bastante sucintas mas úteis no que se refere a aspectos de crítica textual. É, contudo, muito escassa em notas de cariz histórico e cultural.

A edição de Pelletier, publicada pela primeira vez em 1967, é profusamente anotada. As notas deste autor são muito condicionadas pelas de Box, embora, em muitos casos, o autor acrescente mais informações sobre questões tratadas de forma mais sucinta por Box.

Na sua «Introdução» destacamos a informação relativa ao género do tratado, que, como já referimos, o autor identifica como uma aretalogia, e como tendo por modelos o livro de Ester e o de Macabeus 2.

Importa referir um estudo a que, infelizmente não tivemos acesso, mas cuja importância justifica a sua referência: a monografia conjunta sobre Embaixada a Gaio e

Flaco, da autoria de Clara Kraus Reggiani, publicada em 1967 e intitulada Filone Alessandrino e un' Ora Tragica della Storia Ebraica. Trata-se da tradução (não

anotada) de ambos os tratados, precedida de uma extensa introdução de cento e sessenta páginas. Na parte dedicada a Flaco, de acordo com o que nos diz van der Horst (2003: 43), a autora reflecte sobre a importância dos temas da δική (no sentido de «justiça punitiva») e da πρόνοια («providência divina») na composição da obra, que são utilizados para demonstrar que Deus é o responsável pela punição do perseguidor e que, ao mesmo tempo, vela pelos perseguidos, o que é próprio da estrutura de uma aretalogia. Serão ainda relevantes as suas conclusões acerca do problema da posição ocupada pela Embaixada a Gaio e por Flaco no corpus filoniano, embora a autora não proponha novas soluções em relação às que acima descrevemos. Este estudioso enfatiza, porém, a originalidade da interpretação proposta por Kraus Reggiani para o termo

palinódia, a que Fílon alude no último parágrafo da Embaixada. A autora defende que palinódia é sempre resultado de metanoia (arrependimento, conversão). Desta forma, o

livro ou capítulos do livro que se perderam descreveriam o arrependimento de Gaio pelos males praticados contra os Judeus, o que estabeleceria um paralelo com o arrependimento de Flaco, descrito nos capítulos finais do nosso tratado.

10. Conclusão

No primeiro ensaio do seu livro Sete Noites, Jorge Luis Borges recorda que «somos feitos para a memória (…) ou possivelmente para o esquecimento», mas que, deste facto, há sempre «algo que resta e esse algo é a história ou a poesia». Estas palavras parecem-me tanto mais pertinentes quando pensamos no relato que Fílon nos deixou em Flaco.

Nesta obra, ele fabrica uma imagem para a memória, com tudo o que o acto de moldar implica. Essa imagem poderá ser, e tem sido, exposta, à comparação com outras fontes, suas contemporâneas ou não, que nos deixam pistas sobre os mesmos acontecimentos e que modificam a imagem que o autor quis fixar no tempo.

Deste acto de comparar os diferentes discursos de que dispomos, o que se conclui é que nem sempre o relato de Flaco é imparcial e objectivo. Fílon nunca nos enumera as causas mais profundas que levaram aos actos de violência contra os membros da sua comunidade e ele próprio parece contradizer-se em alguns pontos da narrativa. Em muitos momentos do texto cuja tradução aqui se apresenta, o que restou pertence mais ao domínio da literatura do que ao da história.

Contudo, é certo que alguns dos problemas que Flaco nos coloca seriam da mesma índole se o relato que nos tivesse chegado fosse escrito por um Grego. E, tanto quanto é legítimo emitir sobre esta questão um juízo de valor, é compreensível que Fílon escolha deixar-nos esta imagem, e não o nítido e imparcial relato «do que realmente aconteceu».

Em primeiro lugar, porque o acto de registar «o que realmente acontece» implica sempre que o nosso olhar, e com ele a relação das nossas experiências, das nossas inclinações, do nosso código moral e cultural, se demore sobre os factos, e isso, só por si, basta para subtrair alguma parte de imparcialidade ao nosso relato.

Em segundo lugar, porque Fílon nos fala de acontecimentos seus contemporâneos, de situações que ele viveu de perto, de actos que levaram à humilhação pública e, em alguns casos, à morte de pessoas da sua comunidade, em alguns casos pessoas com quem terá convivido, que se movimentavam nas mesmas esferas que ele. É muito difícil esperar encontrar imparcialidade quando é esta a matéria de que um texto é feito.

Todavia, e talvez justamente porque escreve sobre acontecimentos que lhe são contemporâneos e para um público que pertence ao seu tempo, Fílon em muitos

momentos narra isso que a posteriori continuamente buscamos, «o que realmente aconteceu», descrições que, preservadas em certos relatos, nos podem ajudar a estabelecer com um pouco mais de certeza os factos. Mas o que podemos saber (e isso perpassa em tantos momentos do trabalho que aqui se apresenta) nunca é certo, é sempre limitado.

E contudo, falando-nos de uma hora da história que não nos é assim tão alheia (basta pensarmos nos anos, bem menos longíquos, de 1939 a 1945), Flaco, mesmo não sendo a fiel imagem do «realmente acontecido», é, sem dúvida, um precioso registo do nosso hábito de sermos feitos para a memória.

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