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A perspectiva comparada se encontra presente nos mais diversos campos das ciências humanos e sociais, inclusive no campo da Educação e da História e impõe uma série de desafios e reflexões na formulação de estudos e investigações científicas que se propõem

dialogar com as formulações teórico-metodológicas próprias da perspectiva comparada, em consonância com formulações teórico-metodológicas desses outros campos do conhecimento.

Como já elencado por diversos autores (CAVALCANTE, 2008; NÓVOA; 1998, 2009; SCHRIEWER, 2009; FERREIRA, 2008, 2009), a comparação nesses campos ora se aproxima e se entrelaça numa dinâmica inter e transdisciplinar, ora se distancia e se isola, em seus campos disciplinares, sendo nesse (in)constante movimento que o campo da comparação se mostra relevante nas investigações em educação e história comparada.

Segundo João Barroso (2009), a comparação no campo da educação nunca foi tão utilizada, em diferentes contextos e para diferentes finalidades. Dois são os motivos para esse crescimento da educação comparada enquanto disciplina e campo de investigação: (1) o aumento da regulação transnacional, dirigida para o desenvolvimento de bases de avaliação educacional em âmbito internacional, criando e fomentando sistemas, indicadores e padrões globais de qualidade educacional; e, (2) os debates e reflexões críticas na academia que buscam postular a exigência de “cientificidade”, através de uma complexidade tanto das teorias como dos métodos, afastando-se de um “pragmatismo utilitarista” político comparado. O autor ainda complementa que a Educação Comparada é permeada por diversos paradoxos: se por um lado, a comparação visa produzir conhecimentos generalizados que englobem o fenômeno educacional de modo sistêmico e pragmático, de outro, permitem visualizar os fenômenos educativos inseridos e inscritos dentro de processos históricos específicos.

Para António Nóvoa, a Educação Comparada se consagrou através dos estudos inter- nacionais dos sistemas educativos, como já mencionado por João Barroso. Porém, António Nóvoa (2009, p. 24-25), com base nos estudos de Anthony Giddnes e Jüger Schriewer, afirma que a educação comparada “[...] necessita romper com seu espaço de referência, o Estado nacional, alargando sua investigação na direção do infinitamente grande, relativo ao processo de globalização, e do infinitamente pequeno dos fenômenos locais.”. Isso significa que o campo da educação e história comparada possui diversas dimensões analíticas, assim o investigador pode ousar na mescla dessas dimensões, traçando itinerários comparativos locais, regionais, nacionais e internacionais, realizando assim conexões entre essas dimensões.

A Educação Comparada, enquanto campo de saber-poder, como bem aponta Foucault, organiza-se em centros e periferias, construindo “[...] práticas discursivas que consagram sentidos e definem limites.” (NÓVOA, 2009, p. 24). Assim, o destacado papel da Europa enquanto produtora de conhecimento e exportadora de modelos educacionais, grandes intelectuais e teorias para o “resto” do ocidente, acabou produzindo “[...] um pensamento

dominante e marcadamente eurocêntrico, que silencia a respeito da história dos outros.” (CAVALCANTE, 2008, p.248).

É sobre a história dos outros, daqueles outros que não puderam e não tiveram suas histórias contadas, que a educação e história comparada possibilitam aos investigadores contar tais histórias, além de que, “[...] o outro é a razão de ser da educação comparada: o outro serve de modelo ou de referência, que legitima ações ou que impõe silêncios, que se imita ou que se coloniza.” (NÓVOA, 2009, p. 24; 1998).

Buscando compreender como a educação comparada se constituiu ao longo do tempo, António Nóvoa toma como base a noção de campo científico, elaborada por Pierre Bourdieu para desenvolver seu pensamento, com base em:

1) situar o campo científico no interior do campo de poder, com o qual ele estabelece sempre uma relação; 2) analisar a estrutura interna do campo, isto é, a estrutura das relações entre as posições que os diferentes grupos ou indivíduos ocupam nela; 3) analisar o habitus dos que ocupam essas posições (NÓVOA, 2009, p. 27-28).

Utilizando a noção de campo, António Nóvoa posiciona seu olhar sobre a Educação Comparada não como uma disciplina, mas como um campo de conhecimento que envolve disputas entre seus agentes formadores. Baseado em Jürgen Schriewer, busca delinear uma distinção entre a reflexão reformadora internacional e a ciência da educação comparada.

A comparação no campo da educação foi fortemente influenciada pelo desenvolvimento das ciências sociais. Desse modo, tanto a pedagogia como a educação comparada foram constituídas através de diversos conflitos e tensões entre a sociologia e a psicologia, dois campos do conhecimento que, no início do século XX, eram compostos por uma série de tradições, culturas, políticas e, principalmente, projetos científicos muito diversificados. Nesse sentindo, o fazer de uma história da História da Educação Comparada de modo linear e numa visão progressista e evolucionista é inviável, pois múltiplas são as divergências que permeiam a formação/construção de uma disciplina (NÓVOA, 2009).

Jürger Schriewer (2009) nos mostra como se deu a influência das ciências sociais na Educação Comparada. Antes de adentrar no campo da educação, Jürger Schriewer apresenta a constituição da comparação no âmbito das ciências sociais que foi influenciada historicamente a partir de: (1) dos estudos em anatomia compara (ciências da vida) representado pelos trabalhos de George de Curvier no século XVIII; (2) quando, no final do século XIX, foram definidos os princípios da metodologia compara nas ciências sociais, alicerçadas nos trabalhos

de Émile Durkheim; e, (3) nos fins do século XX, com a abertura dos questionamentos das hipóteses fundamentais do método comparado.

Com a abertura para os questionamentos sobre o método comparado nas últimas décadas do século XX, vale ressaltar que há um esforço para clarificar e diferenciar “práticas reformadoras de aperfeiçoamento de ensino” e “práticas científicas de produção de conhecimento sobre os problemas educativos” (NÓVOA, 2009, p.28). De modo geral,

A comparação em educação gera uma dinâmica de raciocínio que obriga a identificar semelhanças e diferenças entre dois ou mais factos, fenómenos ou processos educativos e a interpretá-las levando em consideração a relação destes com o contexto social, político, económico, cultural, etc. a que pertencem. Daí a necessidade de outros dados, da compreensão de outros discursos (FERREIRA, 2008, p. 215).

A comparação em educação leva em consideração diversos contextos como o social e o cultural, para ampliar o olhar sobre as realidades que permeiam o objeto de estudo, desse modo, “[...] o que importa é que o estudo das problemáticas ou das realidades se faça tendo em conta contextos diferentes para se poder estabelecer o que há de diferente e de semelhante, o que diferencia e aproxima, na tentativa de compreender as razões que determinam as situações encontradas.” (FERREIRA, 2008, p. 215).

Em análise dos estudos de António Nóvoa (1998) sobre os paradigmas da educação comparada, Maria Juraci Maia Cavalcante (2008, p. 257) mostra que o autor “[...] faz o reconhecimento de diferentes tendências e construções culturais e ideológicas [...]” no campo da educação comparada, onde as diversas configurações discursivas surgiram para explicar as investigações em educação comparada.

São configurações discursivas da educação comparada segundo António Nóvoa (1998, 2009, p. 39-50; CAVALCANTE, 2008): (1) Configuração A: perspectivas historicistas; (2) Configuração B: perspectivas positivas; (3) Configuração C: perspectivas de modernização; (4) Configuração D: perspectivas da resolução de problemas; (5) Configuração E: perspectivas críticas; (6) Configuração F: perspectivas do sistema mundial e (7) Configuração G: perspectivas sócio-históricas.

Diante das configurações discursivas apresentadas por António Nóvoa (1998; 2009, p. 49), compreendemos que a configuração G: perspectivas sócio-históricas foi a que nos guiou para o desenvolvimento desta investigação; tal compreensão surge do modelo apresentado por essa configuração, pois a perspectiva sócio-histórica “[...] procura reformular o projeto de comparação por meio da passagem da análise dos ‘fatos’ à análise do ‘sentido histórico dos fatos’”. Através desse olhar sócio-histórico, o fato histórico não é mais visto como algo

isolado, concreto e imutável, é necessário nesse momento “[...] compreender a natureza subjetiva e o sentido que lhe é atribuído pelos diferentes autores (individuais e coletivos)” (IB.).

A experiências educacionais e sociais das travestis participantes desta investigação, buscaram ser observadas e analisadas também por essa configuração “[...] epistemológica do conhecimento, que define as perspectivas de pesquisa centrada não apenas sobre a materialidade dos fatos educativos, mas também sobre as comunidades discursivas que os descrevem, interpretam e localizam em dado espaço-tempo” (IB.). Sendo que, através dela, diversas são as conexões que podem ser realizadas entre essas variáveis de investigação, visto que, nessa configuração, há um abandono a referências e contextos definidos por questões geográficas, políticas ou sociais. Na configuração sócio-histórica busca-se,

[...] apreender toda a complexidade dos fenômenos de globalização e de localização: o inquérito comparativo interroga o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, não como dois processos distintos, mas como dois momentos de um mesmo processo histórico. As questões da identidade estão no centro das preocupações destes autores [PEREYRA; SCHRIWER; POPKEWITZ; RINGER], assim como as temáticas da construção do currículo, da formação das disciplinas escolares, das novas regulações políticas e sociais, das relações com o poder, ou a consolidação das formas ‘legitimas’ de conhecimento escolar (NOVÓA, 2009, p. 50).

Para apreensão dessa complexidade, e tendo em vistas a compreensão dos conteúdos da educação, e não apenas seus resultados práticos, os métodos qualitativos foram incorporados nesta investigação, retirando assim a exclusividade dos métodos quantitativos e estatísticos para compreender o fenômeno da educação, numa perspectiva métrica e generalista.

Os autores da configuração sócio-histórica foram influenciados pelas correntes da história das ciências, da sociologia do conhecimento e das teorias da comunicação. Nesse sentido, esses autores buscaram novos modos de racionalidade científica, buscando ir além da relação dos fatos observados, ou seja, compreender os sistemas de relações que apreendem esses fatos, realizando conexões entre fatos observáveis e sistemas (PEREYRA, 1993; SCHRIEWER, 1992 apud NÓVOA, 2009).

Jünger Schriewer (2009, p. 70) ressalta que a análise dos fenômenos sociais na investigação em perspectiva comparada “[...] deve combinar certas declarações da teoria social-científica com dados empíricos internacionais (interculturais, [inter-regionais], etc.) por meio das operações comparadas de estabelecimento de relações entre conexões.”. Desse modo, os estudos comparados necessitam ser mediados pela teoria (CAVALCANTE, 2008),

uma vez que os diferentes cenários educacionais e sociais proporcionam o estabelecimento de semelhanças e diferenças, além de estarem, de algum modo, relacionados como parte de uma história, de uma sociedade, de uma política de uma cultura que se desdobra sobre distintos aspectos, mas que estão interconectados por alguma variável, “manusear” de modo comparado às semelhanças e diferenças encontradas no campo de investigação e nos atores sociais (individuais e coletivos) exige do pesquisador um embasamento teórico tanto da perspectiva comparada, como também das teorias utilizadas para realização de uma leitura sócio-histórica.

A educação comparada, como foi visto, constitui-se de um campo disciplinar, permeado por diversas configurações e olhares sobre a perspectiva comparada. A educação comparada possui um caráter duplo e relacional, sendo uma disciplina teórico-metodológica que proporciona ao investigador manuseá-la de diversas formas, utilizando diversos itinerários metodológicos, tanto de abordagem quantitativa como qualitativa. Os aspectos metodológicos que envolvem as abordagens qualitativas possibilitam ao pesquisador utilizar diversos métodos para obtenção de dados empíricos, como até mesmo abordar outras metodologias para análise comparativa. Desse modo, a utilização da história oral como opção metodológica para essa investigação, agrega-se à Educação e História Comparada, como meio para estabelecer processos comparativos.