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Educação infantil e relações de gênero: por uma pedagogia das diferenças

INFÂNCIAS, SOCIALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO INFANTIL

2.5. Educação infantil e relações de gênero: por uma pedagogia das diferenças

A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, conforme a Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96 (BRASIL,1996), marca o início do processo de aprendizagem social das crianças, quando convivem pela primeira vez num grupo social mais amplo, com características diferentes das do meio familiar e da escola obrigatória. As relações das crianças na Educação Infantil apresentam-se, de certo modo, como uma importante forma de introdução de meninos e meninas na vida social mais ampla, quando passam a conhecer e aprender seus sistemas de regras e valores, interagindo e participando das construções sociais.

Um dos elementos centrais que caracteriza a especificidade da educação em creches e pré-escolas está ligado aos diferentes contextos em que a educação pode acontecer. Em casa, junto aos pais, a educação da criança acontece de forma individual e privada; já o ambiente coletivo e público da pré-escola possibilitam uma educação coletiva, o que propicia à criança diferentes experiências, possíveis por meio da convivência com as diferenças de sexo, idade, etnia, religião etc.

As experiências de gênero são vivenciadas desde as idades mais precoces, quando as crianças aprendem, desde bem pequenas, a diferenciar os atributos ditos femininos e masculino. Portanto, é necessário analisar o papel da educação na socialização de meninas e meninos, realizada pela instituição de Educação Infantil e questionar sobre os processos da construção desta diferenciação. É preciso que estejamos atentos em promover uma prática educativa não discriminatória desde a primeira infância.

O que a instituição de Educação Infantil faz com as diferenças que as crianças, de meninas e meninas? O que faz com a diversidade que as crianças apresentam? Qual a “forma” da organização de seu espaço, tempo e práticas e para quais interesses atuam?

Dessa forma, proponho discutir, neste estudo, além das formas de controle escolarizantes, outra forma de controle do corpo, mais sutil e muitas vezes despercebida no cotidiano da pré-escola: a demarcação das fronteiras entre o feminino e o masculino. Além das marcas da escolarização antecipada, outros aspectos podem ser evidenciados nos corpos das crianças: as experiências dos diversos papéis sociais são realizadas desde as idades mais precoces, quando as crianças aprendem a diferenciar os papéis atribuídos a mulheres e a homens; aí se enraíza a diferenciação que, muitas vezes, está na base das

futuras desigualdades na vida adulta. Daí a importância da realização de pesquisas sobre as práticas educativas e de iniciativas que introduzam conscientemente, como estratégia de socialização, a meta de igualdade de gênero e de extinção de práticas sexistas.

Desse modo, trago a questão, a ser aprofundada, acerca da infância como uma categoria social integrada ao gênero (SCOTT, 1995), para pensar as relações sociais no âmbito da Educação Infantil. Atrelar infância e gênero permite revelar como é que as crianças situadas em contextos sociais, individualmente ou como grupo social, experienciam as possibilidades e os constrangimentos colocados pelos sistemas e estruturas sociais generificados.

James, Jenks e Prout (1998) chamam nossa atenção para o fato de que a produção das culturas infantis existe apenas nos espaços e tempos nos quais as crianças têm algum grau de poder e controle, como os pátios e os parques de recreação existentes nas escolas; nos tempos vagos existentes nas rotinas criadas pelos adultos; nos grupos de ruas – espaços nos quais as crianças geralmente estão distantes do olhar adulto. Para os autores, as culturas infantis emergem nos interstícios dos ordenamentos espaciais e temporais que organizam as vidas das crianças.

Olhar para a organização do cotidiano da instituição e para as experiências corporais que meninas e meninos vivenciam pode ser um elemento para discutir as transgressões das fronteiras de gênero na produção das culturas infantis. As culturas infantis podem, assim, ser vistas como construção coletiva que se faz através da ação social das crianças (agency) diante das estruturas sociais e institucionais em que estão inseridas. “É engajando-se ativamente nessas estruturas e no esforço de compreendê-las que as crianças criam formas específicas de ação, reproduzindo, contornando ou até transformando as estruturas existentes.” (PROUT, 2000, p.78.)

Busco, dessa forma, contribuir para o aprofundamento e o questionamento das concepções a respeito das crianças pequenas e da Educação Infantil pública brasileira, numa perspectiva de gênero, para a construção de uma Pedagogia da Infância e:

Uma pedagogia da alteridade que respeite as crianças, que reconheça uma condição infantil (no plural), para além de uma natureza infantil (no singular), inscrita na capacidade das crianças de conviver e de estabelecer relações na diferença no convívio educativo, de reproduzir e de transformar a educação e a sociedade, de inventar e descobrir, de construir culturas infantis. (PRADO, 2006, p. 87)

Os processos de socialização são interativos, as crianças participam ativamente dessa relação, elas a reinventam e a transformam. É possível observar a capacidade das crianças em arranjar estratégias de transgressão das regras estabelecidas pelos adultos;

são capazes de constituir outras, a partir das relações construídas no grupo.

Assim, na Educação Infantil, a convivência com as diversas formas de ser e de relacionar-se é um ponto importante: é a vivência no coletivo que permite a riqueza de possibilidades de aprender com o outro e com o diferente. É na singularidade da construção cotidiana do espaço, do tempo, da organização e das práticas que o trabalho educativo com crianças pode ganhar uma tonalidade própria.

Assim, a infância é vista como uma fase da vida tão provisória (e concomitante) como as outras fases. E o espaço da Educação Infantil é tido como um espaço coletivo, de educação tanto de crianças quanto de adultos, um espaço de reflexões sobre o respeito à diversidade e também de planejamento de práticas pedagógicas, a fim de permitir e favorecer a diversidade.

[...] neste espaço da sociedade vivemos as mais distintas relações de poder: gênero, classe, idade, étnicas. Desse modo é necessário estudar as relações no contexto educativo da creche e pré-escolas onde confrontam-se adultos – entre eles, professor/a, diretora, cozinheira, guarda, pai, mãe, secretário/a de educação, prefeito/a, vereador/a, etc. –; confrontam-se crianças, entre elas: menino, menina, mais velha, mais nova, negra, branca, judia, com necessidades especiais, pobre, rica, de classe média, católica, umbandista, ateia, “café com leite”, “quatro olhos”, etc; e confrontam-se adultos e crianças – a professora e as meninas, a professora e os meninos, o professor (percentual bastante baixo, mas existente e com tendência a lento crescimento) e os meninos, o professor e as meninas, o professor e a mãe da menina [...] (FARIA, 2006, p. 87).

Ao investigar, conhecer e compreender as práticas educativas, as relações e as interações de adultos e crianças, no interior da instituição, foi possível discutir questões relacionadas à constituição das identidades, à circulação de preconceitos, aos modos de lidar com a diversidade, às relações de autoridade, isto é, à distribuição de poder entre crianças e adultos. Além disso, foi possível refletir sobre a construção de uma pedagogia das diferenças, na qual é de fundamental importância pensar em uma outra forma de organização dos tempos, dos espaços e das práticas cotidianas:

Podemos dizer que esse espaço coletivo de convívio entre crianças de várias idades, meninos e meninas, de origens culturais diversas e entre profissionais docentes, mães, pais e entre adultos e crianças pode ter dado origem a uma pedagogia das diferenças, uma pedagogia das relações, à qual pretendemos dar continuidade e na qual a criança é a protagonista. (FARIA, 1999, p. 69).

Desse modo, inspirada em Faria, esta pesquisa acaba contribuindo para refletir sobre uma outra Pedagogia: uma “pedagogia da escuta”, uma “pedagogia das relações”, uma “pedagogia da diferença”,onde a Pedagogia busca “a ausência de modelos rígidos

preparatórios para a fase seguinte e, além de um cognitivismo característico das pedagogias, também a construção de todas as dimensões humanas e o convívio com a diferença”. (FARIA, 2006, p. 286).

Mas por que olhar para as práticas educativas das professoras de Educação Infantil? Olhar para elas consiste em repensar o modelo da educação voltada para as crianças de zero a seis anos e analisar os estudos de uma Pedagogia voltada para Educação Infantil; possibilita a constituição de um espaço de escuta, de respeito às suas especificidades, de valorização da cultura construída pela criança, nas suas diferenças, ouvindo-a, compreendendo-a, para garantir-lhe o direito de ser criança. Pois, como ressalta Faria “a superação da desigualdade com certeza passa pela educação desde a infância em espaços coletivos na esfera pública convivendo com as diferenças” (2006, p.18).

CAPÍTULO 3

POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL: a construção dos novos