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4 PROCESSOS EDUCATIVOS E A FORMAÇÃO DO SUJEITO DO CAMPO

4.1 EDUCAÇÃO NÃO ESCOLAR

Como visto, as múltiplas dimensões da educação oferecem possibilidades para cada sujeito construir sua identidade. A capacidade do homem de aprender fez com que, historicamente, a educação fosse vivenciada de geração em geração de diferentes formas, seja oralmente, pela observação dos mais velhos, ou socializada entre seus pares, por experiências e trocas. O fato é que o conhecimento não chegou aos seres humanos através de aulas em instituições fechadas; logo, os papéis sociais de quem aprende e de quem ensina não foram sempre demarcados. Na verdade, conforme afirma Brandão (2007), ao longo da história existe mais um processo de aprendizagem do que ensino propriamente dito. Ao analisar os processos de aprendizagem de algumas tribos registrados por antropólogos no início do século XX nas Américas, na Ásia, na África e na Oceania, o autor sintetiza que

não existe ainda nenhuma situação propriamente escolar de transferência do saber tribal que vai do fabrico da arco e flecha à recitação das rezas sagradas aos deuses da tribo. Ali, a sabedoria acumulada do grupo social não “dá aulas” e os alunos, que são todos os que aprendem, “não aprendem na escola”. Tudo o que se sabe aos poucos se adquire por viver muitas e diferentes situações de trocas entre pessoas, com o corpo, com a consciência, com o corpo-e-a-consciência. As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de quem sabe-e-faz, para quem não-sabe-e- aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam os momentos e situações de aprender de crianças e adolescentes, são raros os tempos especialmente reservados apenas para o ato de ensinar. (BRANDÃO, 2007, p. 17-18). [grifos do autor]

Assim, num momento histórico onde a instituição escolar já havia sido amplamente massificada ao redor do mundo, ainda existiam culturas que continuavam desenvolvendo seus próprios modelos de educação, a partir do que acreditavam importante ser incorporado pelas novas gerações. Mesmo no interior de uma sociedade onde a escola se constitui como o centro da educação, ainda há práticas e vivências cotidianas que a colocam apenas como mais um espaço de aprendizagem, mas não como o único. E todos têm sua contribuição na constituição de cada indivíduo como um ser social e cultural.

A perpetuação da agricultura, que envolve parte importante da temática da pesquisa efetivada, pode exemplificar um dos conceitos que envolvem a educação que ocorre fora da

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escola. A aprendizagem da atividade agrícola pelo homem se constituiu como um importante passo para a evolução da espécie humana e foi aperfeiçoada através da observação e da experimentação.

É importante resgatar o lugar que os agricultores ocuparam historicamente nos processos educativos por ser a agricultura uma das formas iniciais de organização do trabalho humano. Ela foi resultado de um longo processo de evolução que a cada estágio se aperfeiçoou. Foi a partir dela que o ser humano começou a se estabelecer em apenas um território, abandonando a vida nômade e adotando uma condição sedentária (MAZOYER, 2010). A partir de então, o homem passou a semear a terra, cultivar algumas espécies de plantas e domesticar diversos animais.

Para o autor, essa pode ser considerada uma das primeiras revoluções econômicas da humanidade. Embora não seja o único fator determinante para o aumento da população mundial, o domínio da agricultura fez-se extremamente importante para que grandes sociedades agrárias se desenvolvessem a partir de então. Não só contribuiu para o crescimento de habitantes do planeta, mas também foi primordial para o desenvolvimento cultural e social da humanidade.

Dentre tantas mudanças nos modos de vida, começaram a se fazer necessárias novas formas de organização do próprio grupo para manter o sistema agrário emergente. Surgem então técnicas de plantio e de colheita, além do planejamento da distribuição da safra. Padrões de comportamento, sistematização de regras de convivência, crenças, delimitação dos papéis de cada membro do grupo e dos trabalhos que cada um deve desempenhar também começam a surgir. Mas como transmitir isso para as novas gerações, a fim de perpetuar esse novo modo de vida? Havia a necessidade de manter o que fora dominado pelos mais velhos quando esses morriam ou se subdividiam em novos grupos. Isso foi possível através do que hoje chamamos educação, que ocorria pela observação e reprodução dos modos de fazer dos mais velhos. Da educação dos mais jovens dependia a sobrevivência da cultura construída pelos primeiros povos que habitaram a Terra.

Finalmente, é preciso dizer que nada do novo modo de vida teria sido compreendido, transmitido de um indivíduo a outro, conservado de geração em geração e aperfeiçoado sem a ajuda da linguagem. Esta deveria estar apta a expressar as novas condições materiais, as novas práticas produtivas, a nova organização e as novas regras sociais, assim como as ideias, as representações e as crenças correspondentes. No começo do novo modo de vida, houve necessariamente o verbo, ou seja, uma nova língua. (MAZOYER, 2010, p. 109).

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A linguagem assume papel essencial na socialização dos indivíduos em seus contextos e nas relações deles com o saber. Passado muito tempo desde o domínio da agricultura pelo ser humano, a lavoura, assim como o pastoreio e o trabalho nas oficinas, continuaram a ser os lugares de aprendizagem de ofícios para grande parte da população. Aprender fora da escola foi a única experiência de educação de muitos desde as primeiras tentativas de sistematização do ensino, quando o conhecimento era passado de geração para geração através das atividades e experiências cotidianas.

Já a partir das primeiras experiências gregas e romanas, a educação formal passa a atender os filhos dos mais nobres e também da população mais pobre, dando para cada um uma formação diferente, condizente com sua classe social (BRANDÃO, 2007). Ao primeiro grupo, configurando-se como algo elitizado e acessado por poucos, enquanto ao segundo grupo uma educação destinada ao fazer, na contramão da educação para o pleno desenvolvimento e para a participação democrática na comunidade.

Como já nasce de maneira excludente, a educação escolar acaba acentuando os limites e as desigualdades entre os pobres e os ricos. Essa situação perdurou por séculos e ainda hoje não foi superada. Conforme Afonso (2001, p. 29), “chegamos assim, neste início do século XXI, a uma encruzilhada desenhada pela confluência de expectativas e percursos permeados de tensões e contradições sobre o papel e a função escolar”.

Por ter uma característica mais dinâmica e menos burocrática que a educação escolar, muitas vezes a educação não escolar permite que o diálogo seja o condutor de suas práticas. Por meio dele, os sujeitos têm condições de trazer à pauta seus interesses e demandas do cotidiano, problematizando-os e buscando chegar a consensos de como agir e intervir no seu próprio mundo, construindo, assim, seus conhecimentos, suas próprias verdades.

Muitos anos se passaram desde as formas mais antigas de cultivo até o avanço das ferramentas e aperfeiçoamento do manejo do solo, que proporcionaram a diversificação das culturas anuais, o aumento das safras e a implantação dos sistemas de irrigação. Atualmente, temos uma agricultura amplamente mecanizada e intrinsecamente ligada à tecnologia, desde a seleção e aprimoramento das sementes até os processos de escoamento da produção, convivendo com formas produtivas tradicionais. Em todo esse período de tempo, a educação não escolar esteve fortemente presente.

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