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Paralelo ao que ocorria nos muros do hospício havia um movimento mundial contra a sífilis. O sifilógrafo era o médico que estudava a doença, geralmente eram dermatologistas, pois a identificação inicial da doença passava pelo exame físico das marcas na pele da pessoa. Era assim, que se observava em que estágio a doença estava. Por ser uma enfermidade mundial a sifilografia constituía uma área de pesquisa internacional. com disciplina específica, congressos e associações. Alguns médicos brasileiros participavam deste movimento.

Alguns dados cronológicos demostram a amplitude do debate em torno da sífilis. Se- gundo Carrara (1996) foi em 1879 que começou a primeira cátedra de sifilografia na França e em 1882 no Brasil. O primeiro congresso internacional Dermato-Sifilografia aconteceu em Pa- ris em 1890. A ideia de que há a necessidade de se construir medidas profiláticas para o combate à doença é registrado na primeira Conferência Internacional de Profilaxia da Sífilis e Doenças

Venéreas em Bruxela em 1899. Nessa conferência foi criada a Sociedade Internacional de Pro- filaxia Sanitária e Moral.

Três anos depois, em 1901, essa sociedade terá sua discípula brasileira, a Sociedade Brasileira de Profilaxia Sanitária e Moral criada no Rio de Janeiro. A partir daí várias ligas são instituídas em outros estados. Será esta sociedade uma das grandes responsáveis pela luta anti- venérea, nome que as campanhas contra sífilis ganharam no nosso território33 e que definirá ações preventivas que envolveram toda a sociedade. Tal prevenção se dará pela moralidade. Uma moralidade associada também às paixões, mas que se amplia em campanhas contra a sífi- lis.

A ideia do controle das paixões, base do tratamento moral dos alienados, se difunde na sociedade brasileira através do discurso médico, mas agora a base do discurso não é referenci- ada a Philippe Pinel e sim a outro psiquiatra, Bendict Morel34. Deste modo, uma proposta de moralidade que mantêm forte o catolicismo é divulgada e inclui a ideia de degenerescência no debate.

Baseando-se explicitamente em doutrinas cristãs [...] partia do princípio de que, criado por Deus, o homem era originalmente um ser perfeito. Com a primeira falha moral (o pecado original), a humanidade teria ficado a mercê de um conjunto de circunstâncias que, relacionadas ao ambiente físico-natural e sociomoral, teriam o poder de corromper os seus sistemas vitais. Atingindo principalmente o sistema nervoso, tal processo de degradação estaria na origem de uma infinidade de perturbações físicomorais. Os efeitos de tal corrupção seriam hereditariamente transmitidos aos descendentes como um conjunto de defeitos, progressivamente mais graves ao longo de gerações sucessivas. (CARRARA, 1996, p.54).

Este debate se fortaleceu na luta antivenérea motivado pela epidemia de sífilis que as- sociava a doença ao pensamento evolucionista que entendia a sífilis como “um processo de

33 A Sociedade Brasileira de Dermatologia e Sifilografia surgiu em 1912.

34 Bendict Morel (1809-1873), foi um psiquiatra fanco-austríaco, estudioso das enfermidades mentais que se torna referência a partir do seu Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et morales de l’espèce humaine et des causes qui produisent ces varietés maladives, publicado em 1857.

involução a estágios anteriores do desenvolvimento físico-moral” (CARRARA, 1996, p. 56). A temperança seria a forma de conectar novamente à proposta Moreliana.

Aqui temos uma ideia de doença associada ao império das paixões e da ausência de controle, mas que segundo Carrara (1996) faz parte do debate da teoria da degeneração.

Ao longo do século XIX, é importante lembrar, foi através da noção de degeneração que o axioma do livre arbítrio foi colocado mais seriamente em xeque, pois as ações humanas, principalmente aquelas que, por serem desviantes, pareciam ser a conseqüência mais concreta de uma vontade livre e soberana, passaram a ser vistas como biologicamente determinadas. Emanações imediatas de uma organização física e mental defeituosa ou anômala. (CARRARA, 1996, p.56).

No contexto brasileiro, onde a religião interferia em todos os assuntos da sociedade, incluindo as ações do estado, esta teoria das paixões se articula melhor com a moralidade reli- giosa da época. Desse modo, será este discurso médico que iniciará a pedagogização da sexu- alidade da criança no Brasil, havendo a defesa de que a educação moral deve ser iniciada na infância, pois lá despertam os vícios que deturpam a moralidade. Aqui começa a se delinear a importância da infância para esta sociedade, pois é afirmado que as raízes das paixões brota- vam na infância e na juventude.

Segundo Gondra (2015) ao longo do século XIX a ordem médica agencia a casa e a escola através de uma educação moral que visava uma reforma dos costumes. A meta era abafar as “tendências degenerosas” que a humanidade estava mostrando através de inúmeras paixões como no excesso de comida, de zelo e de inveja, de temor e medo e de cólera. Estas paixões brotavam na infância ou na juventude, por isso se teria que disciplinar os jovens para evitar o “desabrochamento das paixões que pudessem ‘desdourar a inteligência, e ofuscar a razão, e para desenvolverem em sua alma os sentimentos, que enobrecem o coração humano’” (GON- DRA, 2015, p.147-8).

O autor faz a análise do programa de formação moral através de publicações da Facul- dade de Medicina do Rio de Janeiro no final do século XIX e as sintetiza em cinco pontos nodais.

O primeiro refere-se à própria ideia de moral, que no caso, encontra-se associada ao controle das paixões. O segundo ponto é a associação de moral e religião, tornando a primeira dependente da segunda. O terceiro ponto vincula moral e sexualidade, sendo este segundo aspecto desdobrável em quatro

outros: onanismo, prostituição, celibato e pederastria. O quarto ponto remete à análise de algumas práticas escolares sob o ponto de vista da moral. O quinto e último ponto, muito diretamente vinculado ao programa de educação moral, é o do controle disciplinar, encontrando-se estruturado em torno de três aspectos: os castigos físicos, os castigos morais e as estratégias de premiação. (GONDRA, 2015, p. 146).

Neste sentido, a ideia de se tornar um cidadão modelo, saudável e útil à sociedade, passa por aquele que controla suas paixões através do controle de vícios. “No controle das paixões (gula, zelo, inveja, temor, medo e cólera) encontra-se, pois, a chave para o controle dos vícios.” (GONDRA, 2015, p. 148). A temperança seria para os médicos da época a melhor forma de governo dessas paixões, chamado de bons costumes.

Para se atingir esta forma comedida de viver, a educação é importante, pois será através dela que se pode aprender o princípio da moderação, da continência, na medida que estas pai- xões devem ser vigorosamente combatidas, pois a intemperança degrada o homem e arruína a saúde. Esta proposta aparece nas orientações dadas não apenas aos pais, mas também aos pro- fessores fazendo da escola um lugar de controle dessas paixões/ vícios.

Um dos lugares de controle deveria ser o colégio [...] Os bons costumes deveriam ser nele cultivados, ao lado das ciências e das artes. As inclinações perversas e as afecções morais contrárias às determinações da lei natural tornavam os homens inimigos do próprio homem [...] e também em inimigos da sociedade [...] inclusive, em inimigos da ‘Divindade’, fazendo com que renegassem os mandamentos de ‘nossa religião’. (GONDRA, 2015, p.149).

A ideia de moralidade associada à questão religiosa, como aparece na explanação acima, define uma concepção de saúde sob o domínio católico existente no país. Assim, uma vida saudável e consequentemente sem ser louca é uma vida dentro da moralidade da época, ou seja, uma vida aceita pela moralidade cristã.