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Na entrada do século XXI a sexualidade da juventude brasileira se tornou cada vez mais dizível. Começamos o novo século com uma efervescência nas questões que envolvem a sexu- alidade infantil. Ela se tornou mote de cruzadas religiosas que invadiram as mídias com o dis- curso de que há a necessidade de aumentar a punição para os pedófilos como forma de proteger as crianças.

O foco do debate sobre as manifestações sexuais nunca é aleatório, ele se insere em um movimento maior da sociedade, em um movimento que define atos desejáveis e indesejáveis. A judicialização reivindicada aqui se insere em estratégias biopolíticas que visam, por meio da punição, controlar as condutas sexuais.

O discurso contra a pedofilia71, que seria o termo médico definida pela OMS como uma doença em que a pessoa apresenta desejos, fantasias e ou estímulo sexual por crianças e ou adolescentes, quando aparece na mídia, não é um discurso médico e sim um discurso inflamado, eu diria até pejorativo, que prima pela judicialização. Os provocadores desse debate ignoram a nomenclatura médica e acadêmica do termo abuso sexual, pois não fazem um debate amplo que envolveria questões médicas, culturais e sociais juntas. Eles apenas se restringem à proteção e prevenção de eventos de abuso sexual a partir de penas mais rigorosas.

Foi nesse jogo narrativo contra a pedofilia que se promulgou uma lei popularmente chamada de “lei de estupro de vulnerável”, lei nº 12.015 de 07/08/2009, visando punir qualquer ato libidinoso com menores de quatorze anos.

71 Denis Caramigo (s/d) faz o debate sobre esta questão mostrando as questões jurídicas que envolvem o termo no artigo: “Sim, pedofilia não é crime”. In: Canal Ciência Criminal. Disponível em: https://ca- nalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/518445952/sim-pedofilia-nao-e-crime Acessado em: 18/03/20.

A reivindicação de maior punição aos “pedófilos” tem como porta voz o político e pastor evangélico, senador Magno Malta, na época membro da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia no Senado. Com tais qualificações, assume o debate feito por especialistas que atuavam na proteção à infância, reivindicando uma nova legislação sobre a questão do es- tupro de crianças e adolescentes, visando não permitir que o abusador escapasse de uma puni- ção.

O argumento se sustentou na crítica ao Código Penal Brasileiro, aprovado em 194072, que ao tratar dos crimes contra os costumes e contra a liberdade sexual fala do crime de estupro como a conjunção carnal sofrida por uma mulher e originada por um homem73. Deste modo, as crianças, os adolescentes e os homens não se enquadravam nesta tipologia penal. A nova lei ampliou tanto para a vítima, que pode ser de qualquer sexo ou faixa etária, como para o agente do crime que pode ser masculino ou feminino.

Já havia uma popularização da compreensão de que para que ocorra um abuso sexual não é preciso deixar marcas físicas como hematomas, dilacerações, doença ou uma gestação; nem provas materiais como vídeos ou fotos. Porém, como aponta Bragagnolo (2006) o considerado abusador, para escapar de punições, evita deixar registro de seu ato. Entretanto, o foco na lei era a existência de “conjunção carnal”.

Assim, a ampliação foi necessária para se adequar a estas práticas que não se restringem mais a atos que marcavam o corpo como o exemplo do estupro, que é algo detectável pelas escoriações, vestígios materiais ou consequências do ato como doenças venéreas ou uma gra- videz. Deste modo, passa a ser considerado abuso sexual o enquadramento de qualquer ato libidinoso envolvendo crianças e uma parcela dos adolescentes. Foi a partir da Lei 12.015 de 07/08/2009 que estes atos também assumiram uma nova nomenclatura, passando a ser chama- dos de estupro de vulnerável. Esta nova lei fez aumentar o número de artigos no ECA referentes à sexualidade, que passou de três para nove (Art.130, Art. 240, Art. 241, Art. 241-A, Art. 241B, Art. 241C, Art. 241D, Art. 241 E e Art. 244 A).

Dois artigos dessa lei tentam elucidam a abrangência que a mesma assume.

72 Este código apesar de ter sofrido alterações, ainda é o que está em vigor. 73 Moura (2015) detalha a história da legislação penal com relação ao estupro.

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

Art. 218-A. Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. (BRASIL, 2009)

Cometer estes e outros atos sexualizados implica em austera punição, já que é compre- endido como algo irremediavelmente catastrófico, sendo crime de extrema gravidade, um crime hediondo. Pelas leis brasileiras, este tipo de crime é de ação penal pública incondicionada, o que impõe ao Ministério Público a obrigatoriedade de dar início ao processo mesmo contra a vontade da família e da vítima.

Deste modo, só a acusação já é uma condenação, a pessoa é condenada por ser passível de delação. Como se a delação, já fosse um crime. A acusação, é uma condenação a priori. Isto acontece em função de uma juridicialização cotidiana. Se juridicializa um evento (AUGUSTO, 2009), criando práticas de julgamento, na medida que ele foi publicizado. Pequenos tribunais na família, na vizinhança, na escola e em diferentes instituições serão criados. O outro, ou os outros julgam o evento “criminoso”. Delatar o possível abusador, é como se fosse um dever cívico, delatá-lo, também é, uma forma de não se cumpliciar com um delito.

“A denúncia da violência é o caminho mais recomendado. Não apenas para não incorrer em ilícito penal de, tendo tomado conhecimento de um crime, não comunicá-lo à autoridade competente, constituindo-se em verdadeiro encobridor do crime, mas principalmente para evitar o agravamento da situação.” (VERONESE; COSTA, 2006, p. 173).

O detalhe desta reformulação jurídica é que a forma que foi estruturada, vai além do que se propôs na medida que além de punir os chamados abusadores, ela define a proibição de qualquer “ato libidinoso com menor de 14 (catorze anos)” (BRASIL ,2009). Neste sentido, com o discurso de proteção da infância e da juventude, os tentáculos da judicialização determinam que as crianças não podem e quando os adolescentes podem manifestar sua sexualidade.

Na medida em que amplifica seu controle, o chamado estupro de vulnerável é mais que uma judicialização do abuso sexual de menores de 14 anos: é um novo dispositivo de controle da sexualidade de crianças e adolescentes. A contravenção que era restrita a um ato considerado violento como o estupro, ou o abuso sexual, agora é ampliada para qualquer ato libidinoso com

estas pessoas. O namoro antes dos 14 anos pode ser assim enquadrado, a não ser que seja um namoro sem carícias, sem contato, sem libido.

Deste modo, ao aprovar esta lei74 em nome da prevenção ao abuso sexual a judicializa- ção veio tecendo novas amarras no governo da vida, criando uma estratégia biopolítica por meio da punição que visa controlar não apenas os chamados pedófilos, mas também as condutas sexuais infanto-juvenis75.

26. A retirada da orientação sexual do currículo escolar e a “ideologia