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A invenção da Saúde Mental Coletiva ocorreu no Rio Grande do Sul e este nome foi usado para marcar um lugar de construção, não de uma saúde mental em geral, de uma saúde mental das populações ou de uma saúde mental vinculada às ações preventivas, que neste estado é bastante forte, mas uma Política Pública de expressão e afirmação da vida em sua diversidade, multiplicidade e pluralidade.

Em dez anos, 1987 a 1996, a experiência de uma intercessão inédita: a formação levava à criação de serviços inovadores e substitutivos, mobilizava profissionais ao pensamento estratégico e ao trabalho em ato (como a enfermeira de Santo Augusto), desafiava gestores de saúde (como a secretária da saúde de São Lourenço do Sul), reinventava práticas tradicionais (como os grupos de convivência do Alegrete) e constituía um movimento social, envolvendo agentes políticos, técnicos, cidadãos, “participantes”, familiares e amigos.

O nascimento da política pública foi proporcionado pelos cursos de formação, os quais chamamos inicialmente de Administração de Serviços em Saúde Mental e depois Saúde Mental Coletiva, que se desdobraram em um curso de aperfeiçoamento em Gestão e Programação, outros dois em Políticas Sociais e Municipalização e, mais recentemente, um de Educação

em Saúde Mental. O que estávamos querendo demonstrar era que a força de trabalho em saúde e em saúde mental é constituída por pessoas e não por recursos humanos, que se orienta pelo cuidado às pessoas e não pela eliminação ou tratamento de doenças. Pessoas necessitam de formação, não de treinamentos, práticas cuidadoras requerem desenvolvimento de si e não destrezas em procedimentos; geram acompanhamento e responsabilização, não, pronto-diagnóstico ou tratamento pontual. Foi desenvolvido um processo no sentido da socialização e do compartilhamento de saberes e da identificação de desconhecimentos e nós críticos à mudança.

Precisávamos criar novas estruturas e inventar instituições, terminologias para o cuidado, terminologias para o cuidado e terminologias gerenciais e administrativas que pudessem mobilizar pessoas, desafiar posturas cristalizadas ou práticas identificadas com cada formação profissional específica, precisávamos de profissionais e serviços que se s e n t i s s e m c o n v o c a d o s o u p r o v o c a d o s a p a r t i c i p a r d e u m a desterritorialização e outra territorialização, não conhecida, como administração de serviços de saúde ou de políticas públicas. Foi uma estratégia que teve mais que os efeitos esperados, pois, efetivamente, conseguimos criar serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos. Por ser educação, a transformação realizava-se por convocação pelo desconhecido e pela superação de limites, isto é, mobilizava o desejo de aprender. Se a ignorância compartilhada coletivamente, num espaço de aprendizagem, torna mais fácil sua explicitação, também torna mais fácil o reconhecimento de que nenhuma ignorância é absoluta e ficamos mais disponíveis para aprender e criar uns com os outros e nos coletivos.

Um dos pilares conceituais que mais se mostrou pertinente ao processo em curso, o pensamento estratégico de Mário Testa, apresentava- nos um princípio básico para a invenção da realidade, o postulado de coerência, que tem semelhança com o triângulo de governo proposto por Carlos Matus (1996) em seu Planejamento Estratégico Situacional (PES). O postulado de coerência, entre outras questões, partiu da constatação de que um dos fracassos das propostas de políticas públicas de transformação é a

incompatibilidade e incoerência entre os propósitos, os métodos e a organização. Os vértices do triângulo de governo concebido por Matus são o projeto de governo, a governabilidade e a capacidade de governo.

O esforço da política estadual de atenção integral à saúde mental, apresentada em 1987, foi de buscar coerência entre, de um lado, os propósitos de mudança ético-política e epistemológica e, de outro, o poder e o pensamento estratégico no setor da saúde. Acumulamos muito no campo da saúde coletiva e também no campo da saúde mental em relação à reforma psiquiátrica, à necessidade de modificar e de criar tecnologias de cuidado na área de urgências e à eliminação dos manicômios para que a loucura ocupasse outro lugar na sociedade, junto aos trabalhadores e nas instituições de saúde. Precisávamos saber como se fazia tudo isto, mais, precisávamos aprender esse saber. Precisávamos aprender quais métodos e quais organizações criar, eis um território muito propício para a problematização e agregação de coletivos de aprendizagem, típicas tecnologias de educação para a gestão dessa política pública.

Uma formação por meio de uma educação problematizadora e por coletivos de aprendizagem indaga, põe questões, sobre o indivíduo que somos, as instituições que fazemos funcionar com nossos saberes e práticas e os coletivos de nossa própria formação. Detectamos a pedagogia da implicação: como modificar nossas práticas? O que faremos para isso? Essas eram questões dirigidas aos trabalhadores que já estavam nas instituições. Uma das possibilidades era de propiciar a formação em serviço. Essas questões configuravam nosso campo de intervenção pedagógica e os cursos oferecidos eram para “mudar” os trabalhadores da gestão e da atenção nas instituições municipais e estaduais de saúde ou inseridos nos mais diversos setores públicos, instigando a formação, a criação de serviços e a constituição de movimento social local.

Para possibilitar o acesso aos cursos pelas pessoas que viviam nos municípios havia a necessidade de cursos interiorizados, que ocorressem em vários municípios, durante os finais de semana e à noite, para que os(as); alunos(as), mesmo em trabalho, pudessem freqüentá-los. Não queríamos fazer mais do mesmo que já vinha sendo feito: ofertar cursos de

aperfeiçoamento ou especialização na capital, com baixa implicação com os locais, durante o afastamento do trabalho, como se a formação fosse uma acumulação e não a experimentação.

Instigar vários setores e provocar ações locais intersetoriais era crucial à pedagogia buscada pelos cursos. Os cursos eram viabilizados e garantiam a presença e a articulação continuada entre o estado, os municípios envolvidos e as universidades locais/regionais; entre os setores da saúde, da cultura e da educação e entre representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Durante os cursos eram realizados painéis, seminários abertos à população em geral e para públicos específicos: estudantes universitários, juízes, professores e escolares.

A coordenação dos cursos, bem como seus corpos docentes, eram constituídos por equipes de professores de inserção local, regional, estadual, nacional e internacional, de várias profissões e instituições e dispostos à itinerância, com a assessoria permanente de Rubén Ferro. O objetivo era provocar um diálogo entre saberes e práticas de diferentes inserções e produzir, em aula, a desterritorialização e o desenho para as reconfigurações de práticas e serviços, provocar a transdisciplinariedade (outro conceito ferramenta da pedagogia da implicação).

A pedagogia da implicação exigia incluir trabalhadores e populações que estavam excluídos do processo de formação. Desse modo, realizamos em dez anos, de 1987 a 1996, dezoito cursos de saúde mental coletiva, que estão inventariados no próximo capítulo, “implicamos” 709 alunos, 556 em aperfeiçoamento e 153 em especialização. Contamos com 97 professores e “implicamos” igual dezena de apoiadores docentes locais em cada curso. Já na metade do período, em 1992, tínhamos 112 serviços de saúde mental criados nos municípios “implicados”.

Ancorados no pensamento estratégico de Mario Testa, trabalhávamos com a categoria “poder”, instigando a capacidade de mobilizar, de propor, de gerar e de gerir recursos e tecnologias. A lógica era de reterritorializar, possibilitar a continuidade das políticas e serviços, independentemente dos períodos das gestões governamentais e, por isso, precisávamos localizar aliados junto aos municípios, desencadear processos de mobilização e

trabalhar com políticas sociais, o que propiciaria um trabalho junto às câmaras de vereadores, junto aos executivos municipais, junto aos movimentos sociais, junto às populações locais e junto aos próprios formadores dos diversos locais. Era preciso desencadear processos de abertura, geradores de mudanças políticas, técnicas e administrativas, mobilizando diferentes atores sociais, articulando e comprometendo diversos setores, instituições e disciplinas do ensino regular formal. As estratégias de criação de serviços de atenção integral à saúde mental, de sistematização dos intercâmbios entre os municípios e regiões, entre os estados e internacionais e de articulação de atores em torno de um movimento, o Fórum Gaúcho deSaúde Mental, efetivamente, garantiram a continuidade do processo de implicação, após o término da gestão estadual em 1991 e tivemos cursos ocorrendo por todos os dez anos do nosso inventário. A autoria de políticas públicas passou a ser exercida desde outros espaços sociais, constituídos durante a gestão estadual.

Um apoio decisivo para a continuidade da formação foi o da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde (Cosam-MS), que assumiu a política de implementação da reforma psiquiátrica desinstitucionalizante a partir da década de 1990. O coordenador, Domingos Sávio de Nascimento Alves, garantiu o apoio tanto do Ministério quanto da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) enquanto esteve na condução da política de saúde mental e na direção do Departamento de Programas de Saúde (1991-1996) do Ministério da Saúde. O apoio foi construído ativa e estrategicamente: a gestão estadual havia terminado, estava em andamento o primeiro curso de especialização em saúde mental coletiva na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), havia a possibilidade de uma segunda edição em Bagé na Universidade Regional da Campanha (Urcamp) e precisávamos de novos aliados institucionais para avançar o processo desencadeado. Nestas circunstâncias nosso coletivo de trabalho constituído por Teresinha Klafke, professora da UFSM, coordenadora do curso de Santa Maria e integrante da equipe descentralizada, Delvo Oliveira, coordenador da equipe descentralizada e do curso de Bagé, Carmen Oliveira, ex-coordenadora da formação em saúde

mental da SES-RS e por mim, decidiu ir à Brasília solicitar o apoio do Ministério da Saúde.

Nos cursos foram provocadas expressões criadoras de cada um, nas aulas e nas oficinas de criação com artistas educadores. Como escreveu Marly Meira (1993), sobre as oficinas, através da arte integram-se o campo

dos afetos com o campo dos saberes e práticas. Uma das criações foi o

boletim poético cometa loucura produzido coletivamente durante os módulos dos cursos.

A linguagem poética foi a escolha de muitos para se expressarem. Lúcia Crescente, deSanto Augusto, enfermeira e militante sócio-política, assumiu-se, desde então, também poeta.Introduziu seu trabalho de conclusão com uma poesia (Crescente, 1993):

Estalos da vida, estalos da meia-noite Nos entrelaçam, nos estruturam

Garantindo rumos.

Rumos de paixão, de fantasia, de angústia Que não nos permitem enrijecer

Diante do amanhecer e do anoitecer De um novo brilho, de um novo degrau Que nos permite saltar e bailar

Como sujeitos amorosos e epistêmicos.

No final de um dos cursos, uma aluna silenciosa e presente, solicitou um espaço para manifestar-se, abriu um estojo de violino e tocou, diante de uma platéia boquiaberta. Agradeceu ao curso o fato de retornar ao violino depois de um longo período de abandono.

As experiências criadas possibilitaram nomear essa trajetória de construção, como o nascimento do campo da saúde mental coletiva, em ato, construção que exige militantes sócio-políticos da vida cotidiana, que exige pessoas sentipensantes.

Para viabilizar as mudanças, os serviços precisam flexibilidade e agilidade administrativa para decidir e mudar. É preciso viabilizar plantões, visitas domiciliares, idas aos serviços de referência e contra-referência, contando com infra-estrutura para as atividades itinerantes e com

remuneração para as mesmas. O trabalho deve incluir a prestação e o desenvolvimento da atenção, onde a formação ganha estatuto de desenvolvimento de si e das práticas, desenvolvimento do pensamento investigativo e da atuação criativa e, definitivamente, o desenvolvimento da potência instituinte da criação da vida.

Ao final do período de dez anos houve a construção de legitimidade do conhecimento produzido por meio de dissertações de mestrado e teses de doutorado. Entre 1999 e 2002, muitos “quadros” da saúde mental coletiva ocuparam postos de direção na gestão estadual de saúde, como já foi mencionado, e de 2003 a 2006 de novo a academia acolhe e fortalece em produção do conhecimento essa, agora nomeada, pedagogia da implicação. As dissertações e teses legitimaram, trabalharam sobre o inventado e contribuíram para a consolidação do processo. São Lourenço do Sul foi objeto de três dissertações de mestrado (Bernardes, 1995; Hirdes, 2000; Wetzel, 2000). A Casa, o primeiro serviço de saúde mental antimanicomial do município de Novo Hamburgo e um dos pioneiros do Rio Grande do Sul, foi o tema da dissertação de Fábio Moraes (2000). De Bagé, a Oficina de Criação Coletiva foi objeto de dissertação de mestrado (Meira, 2001). Santo Cristo, município onde era alto o número de suicídios, levou ao mestrado e ao doutorado o desenvolvimento da saúde mental coletiva, repercutindo seus efeitos na formação em saúde mental nos cursos universitários regionais (Heck, 1993 e 2000). Dissertações e teses foram elaboradas pelos egressos dos cursos sobre a lei da reforma psiquiátrica do Rio Grande do Sul (Dias, 1997); cidadania, saúde mental e população de rua (Martins, 1998); localização das diversas categorias profissionais na reforma psiquiátrica (Kantorski, 1998; Dalmolin, 1998; Saldanha, 2004) e aprofundamento dos recursos assistenciais substitutivos à internação (Arejano, 2002; Sotelo Prandoni, 2005; Cabral, 2005). Vera Miron (1998) escreveu sua tese de doutorado sobre as memórias da loucura em Ijuí de 1890 a 1990. As interrelações e interfaces entre reforma psiquiátrica, saúde do trabalhador e modos de subjetivação foram formuladas na dissertação de Tatiana Ramminger (2005).

Basicamente, fomos construindo, nesse processo, dirigentes/gerentes/ gestores de políticas públicas, seja no executivo, ou na diretoria de departamentos universitários, capazes de criarem espaços para a invenção, facilitarem a possibilidade de criação de serviços inovadores em saúde mental e desencadearem processos de educação permanente em saúde mental coletiva.