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O poder foi se constituindo como categoria central nos cursos das águas e nas rotas de navegação. O autor que deu suporte para o tema foi Mário Testa com sua produção sobre pensamento estratégico e implicação com a saúde mental coletiva no Rio Grande do Sul, a partir de 1989.

A implantação efetiva do Sistema Único de Saúde e da reforma psiquiátrica no Brasil exigia mudanças políticas, sociais e institucionais, produzia incômodo, deslocamento de forças e superação de instituídos, portanto, num contexto conflitivo e de disputa de poderes. Ser autor nesse contexto exigia preparo para os embates propositivos. Chamava a atenção a ausência do tema poder na formação dos trabalhadores de saúde, o que os fragilizava para a autoria de processos instituintes e a sustentação de novas institucionalidades. Nesse sentido, o encontro com Mário Testa e Carlos Matus foi decisivo para o traçar de nossas rotas. Com Mário Testa realizamos várias viagens.

Duas formulações de Testa (1992) sobre planejamento estratégico foram efetivas ferramentas para nosso saber-agir: o postulado de coerência e os poderes no setor da saúde. Postulado de coerência é a expressão das relações de determinação e/ou de condicionamento entre propósitos, métodos para alcançá-los e organizações que os implementam. A determinação abrange as forças propulsoras (facilitadoras) para a ocorrência de situações. O condicionamento é constituído pelas forças que limitam (obstaculizadoras) acontecimentos. O autor propõe o estudo das referidas relações, identificando os atores implicados e os poderes que cada um dispõe nos diversos componentes da equação. Ao estudar as relações entre propósitos, métodos e organizações, Testa identificou outra equação composta pela História, Estado e Teoria na qual há uma relação de determinação entre si e entre instâncias (equações). Relações próprias de países latino-americanos, dependentes e periféricos no sistema capitalista. Na macro-instância, a história é o maior determinante (do Estado e da teoria) e a teoria é a mais determinada (pela história e pelo Estado). Nas relações entre instâncias, o Estado determina os propósitos de governo, a teoria os métodos e a história as organizações. Na micro-instância, os propósitos

determinam os métodos e as organizações e estas são condicionantes para os demais componentes.

Na análise dos propósitos de governo foram mapeados os de legitimação, de crescimento e de transformação (da estrutura social). O último nem sempre presente e apenas compatível com uma visão de Estado constituído por heterogeneidades portadoras de contradições e conflitos. Cada propósito determina um método e processo organizacional próprio para haver maior eficácia. Assim, ao propósito de crescimento, corresponde um diagnóstico administrativo (quantificativo) e um processo de continuidade dos avanços (produzir mais do que já é produzido). Ao propósito de legitimação corresponde um diagnóstico ideológico (saberes e práticas construtores de sujeitos) para consolidação. Ao propósito de transformação corresponde um diagnóstico estratégico (atores, poderes e diferenças) para processos de abertura (porosos, permeáveis e produtores do novo). Em 1995, Testa propôs uma “síntese diagnóstica”, referindo que os diagnósticos administrativo, ideológico e estratégico são parciais e precisam ser reconstruídos em situações concretas para que se abra caminho a propostas de saúde.

Trabalhamos nos cursos de saúde mental coletiva e na implementação das políticas públicas de saúde a necessidade de construir coerência no cotidiano da sala de aula e dos sistemas e serviços municipais (implicação dos alunos). Sendo o objetivo a construção de autoria, esta tende ser produzida sem que seja mera intenção esvaziada de sentido e de prática, por isso a itinerância, a metodologia com apresentação primeiro das realidades locais e a circulação e produção de conceitos-ferramenta como estrutura dos cursos.

Aos propósitos do SUS de universalidade, descentralização, integralidade e participação correspondiam métodos e organizações que dessem concretude aos mesmos. Para universalizar era necessário ampliar o acesso com serviços que operassem com outra ética (da inclusão, da cidadania e da responsabilização) que não a vigente (da exclusão, do favor e do descompromisso) nos serviços públicos de saúde. A descentralização da gestão para os municípios (municipalização) era uma proposta potente para a efetiva transferência de poder para o âmbito local e pactuação entre os diversos atores do setor (não só o governo). A integralidade exigia uma rede de serviços e modificação nas práticas cotidianas capazes de escuta, de atenção às necessidades de saúde, de resolutividade e de trabalho coletivo. A participação precisava ser de todos com poder de decisão e com o exercício do controle da sociedade sobre o Estado: as conferências e os conselhos de saúde foram os dispositivos criados no final da década de 1980 e primeira metade dos 1990. Muitos de nós, professores e alunos, nos dedicamos à municipalização, à realização das Conferências de Saúde e à criação de Conselhos de Saúde nos municípios (Oliveira e Saldanha, 1993; Beskow, 1993; Rocha et al, 1995; Crescente e; Oliveira, 1995; Ferrari e Mulazzani, 1997). A exigência de produção de coerência continua vigente no SUS e muitos problemas do sistema são oriundos das discrepâncias entre seus propósitos, métodos e organizações.

O postulado de coerência ancorou as práticas de saúde mental coletiva nos municípios. Para muitos, antes de saber que serviço criar e o que fazer, o motor da ação consistia no conjunto de propósitos: garantia de direitos (cidadania e saúde), atendimento local e atenção integral. São exemplos

desse processo a criação da Nossa Casa em São Lourenço do Sul, no qual a secretária municipal de saúde provocou à equipe para implantar um serviço, não sabendo qual, mas sabendo ser possível (Beskow, 1993) e a abertura de leitos no hospital geral de Alegrete, inicialmente disponibilizado pela necessidade de um usuário (José de Canoas), depois pelo argumento do direito e por último pela formação da equipe em serviço (Salbego, 2004). O conhecimento foi produzido na ação, em sua ressignificação e na interação com outras práticas.

A outra formulação de Testa (1992 e 1995) que operou como conceito- ferramenta foi sobre os poderes político, técnico e administrativo no cotidiano do setor da saúde. Entendendo poder como capacidade, prática e relação entre atores sociais; proposto como distribuição democrática e estratégica de ganhar espaços de liberdade. A aprendizagem de que podem existir vários modos (estratégias) de implementar uma política, foi inspiradora da frase “não estamos desnorteados: temos vários nortes” de autoria de Abraham Turkenicz.

O poder político é a capacidade de desencadear uma mobilização e é o impacto de sua prática tanto nos mobilizados como nos mobilizadores, resulta em saberes e práticas. O poder administrativo é a capacidade de apropriar-se e de alocar recursos e está sintetizado nas diversas formas de financiamento. O poder técnico é a capacidade de gerar, usar, circular,

processar e veicular informações. Testa identifica o poder técnico por tipo de informação (médica, sanitária, administrativa e marco conceitual), âmbitos (docência, investigação, serviços, administração e população), homogeneidade/heterogeneidade e por estilo (linguagem). Os poderes são interdependentes e se interseccionam.

Os âmbitos do poder técnico identificados por Testa coincidem com o matriciamento formulado no item anterior e com o conceito de integralidade proposto na Política de Atenção Integral à Saúde Mental (Paismental-SES/ RS): formação-atenção- gestão-participação.

A identificação dos poderes na saúde e na saúde mental e a construção das propostas de intervenção nos mesmos foram intercessoras na produção de autoria nas políticas públicas do setor no Rio Grande do Sul. Para mim foi uma ferramenta que possibilitou a interlocução com políticos (no sentido convencional): prefeitos, secretários de saúde e legisladores, com técnicos profissionais de saúde e administradores, bem como facilitou a comunicação entre os mesmos. Trabalhar pedagogicamente com os preconceitos recíprocos tais como “todo político é mentiroso”, “todo técnico é alienado” e “todo o administrador é burocrata” era um disparador para refazer conceitos, romper limites rígidos e produzir interferências múltiplas em suas práticas cotidianas. Nos cursos os alunos utilizavam nos boletins “as bolas” em contraposição “aos quadrados” que precisavam ser rompidos e superados, bem como para expressarem o quanto essa aprendizagem gerava inquietudes. Os poderes estão presentes no conceito de Saúde Mental Coletiva (Fagundes, 1995), na estruturação dos cursos de saúde mental coletiva (Cescon, 1995), nas propostas e avaliações de políticas públicas de saúde e saúde mental (Oliveira e Saldanha, 1993; Dias, 1993; Crasoves, 1995; Fagundes, 2001) e na constituição de colegiados gestores (Fagundes, 2001).

O tema provocou encontro com outro autor: Foucault. Inicialmente com a História da Loucura, depois com Vigiar e punir, Microfísica do poder, A ordem do discurso e, mais recentemente, com os Ditos e escritos, para o qual o poder é categoria central no assujeitamento e no disciplinamento na

sociedade. A noção de biopoder (poder sobre a vida) também é um conceito- ferramenta que possibilitou o rompimento com seu exercício e o agenciamento de outros modos de inventar a vida no cotidiano (biopolítica) do trabalho vivo em saúde e saúde mental.

Outro encontro foi com Nietzsche dando ao poder sentido de vontade de potência para o movimento, as forças de expansão, transmutação, de destruição e criação de formas de invenção de si e da vida (Naffat Neto, 1996).

Camiseta do Mental Tchê (São Lourenço do Sul, 2005)

O poder aparece como categoria e não conceito, serve ao pensamento estratégico, ao desenvolvimento da autonomia, com coragem e ousadia para as autorias. A implicação é poder de autoria.