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“Ela faz acreditar, duvidar, negar a razão.”.541

Depois de termos estabilizado o conceito de contingência no capítulo anterior, analisaremos o conceito imaginação em Blaise Pascal. Para realizarmos tal tarefa teremos o fragmento 44 dos Pensamentos542 como nosso objeto de estudo. Sublinhamos que outros fragmentos também serão analisados, pois Pascal usa do conceito imaginação em outros fragmentos que poderão trazer luz ao nosso objeto de estudo proposto. Como norteadora de nosso capítulo, traçamos a seguinte hipótese: é na imaginação que se manifesta a contingência. A imaginação, que para Pascal é parte constitutiva do instrumento cognitivo humano, ao realizar seu trabalho junto à razão manifesta a contingência, ou seja, ela desloca todo critério último que poderá servir de referência para o discernimento da verdade e da falsidade. Desta maneira, a imaginação causa efeitos que manifestam a contingência: eis a motivação do título deste capítulo. Ao mostrarmos como a imaginação funciona, o leitor verá que seus efeitos são sempre contingentes.

Diante desta agenda que pretendemos cumprir, escolhemos dois autores que serão nossos referenciais teóricos, a saber: Gérard Ferreyrolles com sua obra Les Reines du monde:

l´imagination et la coutume chez Pascal e Gérard Bras e Jean-Pierre Cléro com a obra Pascal

– Figures de l`imagination. Ferreyrolles reconhece que em outras obras de comentadores de Pascal sobre política, inclusive a sua com o título Pascal et la raison du politique, os autores fazem uma ligação entre o costume e o conceito de imaginação assim como entre a política e a antropologia de Pascal. Todavia, a obra de Ferreyrolles, que usaremos como referencial teórico para nossa pesquisa, o autor traça como proposta relacionar o costume e a imaginação para que depois fosse sublinhado os efeitos destes dois princípios de erro, ou seja, o costume e a imaginação. Desta maneira, nosso trabalho se apropria das investigações de Ferreyrolles sobre os efeitos específicos da imaginação, algo que o autor faz na segunda parte da obra. Já Bras e Cléro trabalham com a idéia de que a imaginação não é somente uma faculdade ou

541 Blaise PASCAL, Pensamentos, Laf. 44, Bru. 82, p. 12. 542 Ibid., Laf. 44, Bru. 82, p. 12 – 16.

potência enganadora: ela é tão enganadora quanto os sentidos, a memória, a razão e as paixões. Os autores destacam os efeitos que a imaginação causa nas três ordens: carne, espírito e caridade. Assim, sublinham que a imaginação apresenta-se no carrefour de três questões: a antropológica, na qual aponta para a situação do homem no mundo; na dimensão epistemológica, que diz respeitos às condições e possibilidades do homem em ter acesso ao conhecimento; e a ontológica, já que a imaginação impede uma sistematização que possa dar contar de toda realidade, ou seja, Pascal é um anti-metafísico. Ressaltamos que Ferreyrolles, Brás e Clero nos auxiliarão a entender os efeitos da imaginação na epistemologia, pois este é o nosso foco maior. Outro autor que usaremos, entretanto, de maneira mais periférica, é Jean Mesnard. Em sua obra Le Pensées de Pascal o comentador analisa algumas passagens do fragmento 44, nosso objeto de estudo, entretanto, não faz uma análise específica do conceito imaginação. Por este motivo, conscientes do alcance da análise de Mesnard, destacaremos algumas passagens de sua obra para esclarecer nosso objeto no percurso que faremos.

Neste percurso veremos que a imaginação toca em alguns temas que manifestam a contingência diretamente, como a eqüipolência entre verdade e falsidade. Desta maneira, a imaginação poderá apresentar-se como uma potência que impede o discernimento, entretanto, veremos que ela é engenheira de conceitos, realidades e natureza, coagindo, de maneira especial, os sentidos, gerando desconfiança e uma possível passividade do homem em relação aos efeitos da mesma. Todavia, veremos também que o homem não é totalmente passivo aos solavancos da imaginação, pois, os versados em imaginação fazem bom uso desta potência intrínseca à razão humana. Tal ação destes versados tem os juízes como vítimas, estes porém, são influenciados pelos efeitos da imaginação, de modo que Pascal desmistificará a idéia de que um juiz é absolutamente impassivo em seu julgamento. Ao fazermos uma análise dos juízes ao julgar destacaremos detalhadamente o funcionamento da imaginação e construiremos uma grade conceitual que permitirá entender como a imaginação funciona, ou seja, faremos uma análise das filigranas daquilo que chamaremos de máquina imaginativa. Em seguida, usaremos da grade conceitual que construímos para entender os efeitos da imaginação nos advogados, assim, tentaremos verificar se a mesma ausência de impassividade que Pascal detecta nos juízes ao julgar também é encontrada nos advogados na defesa de uma determinada causa: veremos se os advogados e juízes julgam aquilo que é essencial pelo inessencial, ou seja, pelas aparências. Tentaremos entender a importância das aparências para a construção de uma função ou cargo na sociedade e como elas favorecem os magistrados, advogados, médicos e doutores, de modo que as respectivas funções destes personagens estão ligadas as suas aparências, todavia, a aparência, tão necessárias aos profissionais acima não

são necessárias aos reis. Veremos que ele tem a força efetiva, mas será a imaginação que irá inserir a força no mundo social sem constranger demasiadamente ao povo, instituindo um reino de paz tão querido pelo rei. Diante deste itinerário, observaremos que a contingência permeará os efeitos da imaginação na medida que os saltos desta potência enganosa provocarão efeitos que não poderão ser detectados previamente com toda certeza. A imaginação é a garantia de que seus efeitos contingentes são improváveis antecipadamente, o que ferirá o discernimento da razão. Mas antes de iniciarmos este extenso trabalho, vale destacar alguns aspectos do conceito imaginação no sistema cartesiano, o que nos permitiria averiguar as possíveis diferenças e confluências da concepção do conceito nos dois autores. Analisaremos a sexta parte da obra Meditações543 de Descartes e teremos como referencial teórico a obra Descartes: a metafísica da modernidade do filósofo Franklin Leopoldo e Silva.

1 – O conceito imaginação em Descartes.

Descartes inicia a sexta meditação afirmando que só resta examinar uma única coisa

em seu edifício filosófico, a saber: se as coisas materiais existem ou não objetivamente. Para tal verificação, o raciocínio conduzido por um método bem elaborado poderia proporcionar a obtenção de idéias claras e distintas. Para obtê-las, a geometria seria o veículo norteador na elaboração do método.544 Assim, a possibilidade das idéias claras e distintas no nível intelectual fá-lo conceder a probabilidade que estas idéias tenham algum valor objetivo. “Juntando-se a possibilidade, dada pela essência, essa probabilidade vem reforçar a crença na existência do mundo exterior.”.545 Tal transposição entre as idéias claras e distintas de um eu pensante e a existência do mundo do corpos objetivamente dar-se-ia por outro princípio: Deus é bom e não me deixa enganar, logo, as idéias inteligíveis clara e distintamente têm a sua correspondência objetiva garantida por Deus, visto que qualquer dúvida sobre a bondade de Deus só poderia ser realizada artificialmente pela ficção de um Gênio maligno ou de um Deus enganador. Mas, no decorrer da obra, antes de conceber este raciocínio como certo e indubitável – garantia da objetividade do mundo –, Descartes propõe analisar a faculdade da imaginação. Tal proposta visa verificar se o mundo dos corpos poderá ser concebido objetivamente ao fazermos uma análise de como a imaginação procede, já que tal faculdade tem uma ligação tênue com os corpos. Vejamos a análise cartesiana do conceito imaginação.

543 René DESCARTES, Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 544 Cf. Ibid., p. 129.

Descartes afirma: “[...] a faculdade de imaginar, que existe em mim e da qual vejo por experiência que me sirvo quando me aplico à consideração das coisas materiais, é capaz de me persuadir da existência delas [...].”.546 Cabe a nós seguir os passos do filósofo neste trabalho para verificarmos o que é a imaginação e como ela funciona no sistema cartesiano. Assim, indagamos: o que é a imaginação para Descartes? Para ele a imaginação é “[...] uma aplicação da faculdade que conhece ao corpo que lhe é intimamente presente e, portanto, que existe.”.547 Verificamos que a imaginação é uma faculdade do espírito voltada aos corpos. “Isso encoraja a hipótese de que a imaginação trabalha com algo mais do que o puro pensamento, embora seja um modo de pensamento.”.548 Assim, a faculdade da imaginação

obtém alguma intelecção no seu trabalho, pois ela também é uma faculdade ligada ao espírito. Desta maneira, o cumprimento da proposta cartesiana de verificar a eficácia da imaginação na demonstração e prova da existência do mundo corpóreo objetivamente é antecedida pela distinção pontual entre a imaginação e a pura intelecção ou concepção pura549. Vejamos abaixo as considerações de Descartes acerca desta distinção.

Quando Descartes, absorto em suas especulações, imagina um triângulo, o entendimento o concebe como uma figura composta e determinada por três linhas, todavia, pela força da imaginação a imagem de tal figura se apresenta para a intelecção. Mas quando pensa um quiliógono, figura de mil lados, ou um miriágono, figura de dez mil lados, ou qualquer outra figura de muitos lados, a imaginação não consegue imaginar tais figuras, ou seja, vê-las com os olhos do espírito. E, desta maneira, ao conceber uma destas figuras, a imaginação apresenta uma representação confusa550 e também “[...] ela não serve, de maneira alguma, para descobrir as propriedades que estabelecem as diferenças entre o quiliógono e os demais polígonos.”.551 A representação da imaginação de uma figura que apresente um número maior de lados não é fiel à definição realizada pela pura intelecção: a imaginação apresenta uma imagem de algo que não existe. Assim, a imaginação “[...] me faz representar coisas na ausência delas.”.552 Portanto, desde já conhecemos três qualidades da imaginação: ela é uma aplicação que se volta para os corpos; faz ver de maneira confusa alguns objetos; e não serve para estabelecer diferenças, esta sendo uma característica da intelecção pura. A intelecção, ao contrário, não precisa da imaginação para definir os polígonos, pois

546 René DESCARTES, Meditações, p. 129. 547 Ibid., p. 129 – 130.

548 Franklin Leopoldo e SILVA. Descartes: a metafísica da modernidade, p. 72. 549 René DESCARTES, Meditações, p. 130.

550 Cf. Ibid., p. 130. 551 Ibid., p. 130.

independente dos lados que a figura possui, ela poderá fazer este trabalho sem a necessidade de traçar nenhuma relação com os corpos. Eis as diferenças destacadas por Descartes entre a imaginação e a intelecção pura.

A “[...] virtude de imaginar [...]”553 dirá Descartes, difere da intelecção pura na medida que se apresenta como dependente dos corpos para realizar seu trabalho, ao passo que a intelecção pura não depende dos corpos, mas possui certa autonomia garantida pelo método geométrico com seus atributos de clareza e distinção. Além disso, a imaginação “[...] não é de modo algum necessária a minha natureza, ou a minha essência, isto é, à essência de meu espírito [...]”.554 Ou seja, o espírito não apresentaria nenhuma transformação que

comprometesse a sua essência não tivesse a faculdade imaginativa: ela não é necessária, é contingente. Todavia, está presente no eu pensante cartesiano, portanto, cabe agora destacar as filigranas do seu funcionamento.

E concebo facilmente que, se algum corpo existe ao qual meu espírito esteja conjugado e unido de tal maneira que ele possa aplicar-se a considerá-lo quando lhe aprouver, pode acontecer que por este meio ele imagine as coisas corpóreas: de sorte que esta maneira de pensar difere somente da pura intelecção no fato que o espírito, concebendo, volta-se de alguma forma para si mesmo e considera algumas das idéias que ele tem em si; mas, imaginando, ele se volta para o corpo e considera nele algo de conforme à idéia que formou de si mesmo ou que recebeu pelos sentidos. Concebo, digo, facilmente que a imaginação pode realizar-se dessa maneira, se é verdade que há corpos [...].555

O espírito quando se relaciona com os corpos fá-lo-ia pela via da imaginação, maneira de pensar diferente da pura intelecção, visto que esta ao conceber fá-lo voltando-se a si mesma e não aos corpos, todavia, a imaginação ao voltar para os corpos e associar os corpos à imagem que fez deles realiza este trabalho pela mediação dos sentidos: é desta maneira que Descartes irá pressupor a provável existência dos corpos através da descrição do funcionamento da imaginação. Se a imaginação se volta para os corpos, portanto, os corpos existem objetivamente, pensará Descartes. Assim, a associação de uma imagem – imperfeita muitas vezes, como é o caso do quiliógono – com o corpo correspondente seria uma prova da existência das coisas, independente daquilo que a imaginação representa, pois Descartes

553 René DESCARTES, Meditações, p. 130. 554 Ibid., p. 130.

somente tem o objetivo de formular um caminho para provar a existência objetiva dos corpos pela via da imaginação. Todavia, pondera em aprovar tal possibilidade como efetivamente possível: a imaginação tem como mediadora a sensibilidade e, para que a afirmação da existência objetiva dos corpos seja verdadeiramente clara e distinta, fazer-se-ia necessário uma análise da capacidade humana de sentir o possível mundo existente fora de seu intelecto. Como a imaginação exerce seu trabalho voltando-se para os corpos e, sabendo que as informações deste último é concedida pelos sentidos, “[...] vem a propósito examinar ao mesmo tempo o que é sentir, e ver se, das idéias que recebo em meu espírito por este modo de pensar, que chamo sentir [...]”556, é prova da existência das coisas corpóreas objetivamente.

Assim, Descartes retoma alguns argumentos favoráveis para a prova da existência das coisas objetivamente, independente do pensamento, mas logo depois mostra as flutuações dos sentidos que, conseqüentemente, inviabilizariam a provável existência do mundo objetivo por meio da imaginação. Vejamos, em um primeiro momento, a retomada cartesiana favorável à existência do mundo sensível.

1º - Há idéias que se apresentam ao pensamento sem que houvesse consentimento da minha vontade e, ao contrário disso, acontece que muitas vezes não podemos sentir a presença de alguns objetos se o mesmo não está presente.557

2º - As idéias adquiridas pelos sentidos parecem ser muito mais vivas do que as que se encontram na memória.558

3º - Acredito não haver nenhuma idéia em meu espírito que não passe antes pelos sentidos.559

4º - Pareceria ser evidente que o corpo que chamamos meu me pertence, que não posso me separar dele, que sinto por ele os afetos e não por outro corpo que acredito estar separado dele.560

5º - Que tais sentimentos estimula nossa vontade, pois a emoção do estômago, que chamo fome, me dá vontade de comer e a secura da garganta dá sede; também o meu juízo é

556 René DESCARTES, Meditações, p. 131.

557 Cf. Ibid., p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da modernidade, p. 73: ele chamará este modo de coerção.

558 Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da

modernidade, p. 73: ele chamará este modo de vivacidade.

559 Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da

modernidade, p. 73: ele chamará este modo de prioridade.

560 Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica da

afetado por estes objetos, de modo que ele se formulava sem que pudesse considerá-lo atentamente.561

É esta a regressão562 que Descartes realiza para tentar mostrar que, da mesma forma pela qual os possíveis corpos afetam nossa sensibilidade e, por este motivo, me levariam a crer que existem causas objetivas das minhas representações independente do eu pensante, tais afetos não são garantias claras e distintas da existência destes corpos: “E, quanto às razões que me haviam anteriormente persuadido da verdade das coisas sensíveis, não tinha muita dificuldade em rejeitá-las.”.563 Constata-se que apesar da suposição da existência das coisas

sensíveis que afetam meus sentidos e que são representadas pela imaginação, Descartes inviabiliza que os cinco modos acima apresentados provariam a existência do mundo sensível, pois uma faculdade desconhecida também poderia causar efeitos em mim sem que ela necessariamente exista como é o caso de pessoas que tinham seus braços e pernas dilacerados e, mesmo assim, continuavam a sentir dores em seus membros amputados. Assim, a substância pensante poderá ser persuadida por um afeto que o objeto causante possui existência enquanto substância extensa sem que o mesmo a tenha efetivamente. Portanto, Descartes sublinha algumas distinções depois das digressões acima: há diferença entre a substância pensante e a substância extensa – se é que ela existe –, de modo que a substância pensante poderia existir sem o corpo; a faculdade da imaginação volta-se para os corpos, ao contrário da intelecção pura que volta-se para si mesma; a faculdade imaginativa e de sentir – [...] este modo de pensar [...]”564–, apesar de fazerem parte do espírito, ou seja, sendo modos pelo qual o pensamento se expressa, são distintos da intelecção pura, pois nada muda o espírito caso a imaginação ou os sentidos venham a faltar, ou falhar. Portanto, percebemos que a imaginação é um modo de pensar que Descartes concebe ser distinto da intelecção pura: a imaginação não inviabilizaria o conhecimento na medida que este é analisado

separadamente pela intelecção pura capaz de agir sem sofrer os afetos das falácias criativas e enganadoras que a imaginação constrói como forma de representar um objeto apreendido pela sensibilidade. Diante desta breve exposição do conceito imaginação em Descartes, vejamos como Blaise Pascal trabalha tal conceito em seu sistema.

561 Cf. René DESCARTES, Meditações, p. 132 –133. Ver Franklin Leopoldo e SILVA, Descartes: a metafísica

da modernidade, p. 73: ele chamará este modo de interação corpo-mente .

562 Descarte já havia tratado destas oscilações dos sentidos no Discurso do método. 563 René DESCARTES, Meditações, p. 133.

2 – Imaginação e contingência.

Para que possamos verificar o funcionamento da imaginação na epistemologia pascaliana teremos que em um primeiro momento esclarecer quais são as vias pelas quais o homem recebe as opiniões. Pascal cataloga em seu texto De l`Art de Persuader duas vias:

Ninguém ignora que há duas portas pelas quais às opiniões são recebidas na alma, que são suas duas principais potências: o entendimento e a vontade. A mais natural é a do entendimento, pois jamais deveríamos consentir senão nas verdades demonstradas; mas a mais comum, embora seja contra a natureza, é aquela da vontade; porque todos os homens que existem são quase sempre levados a crer, não pela prova, mas pela satisfação.565

Entendimento e vontade são estas duas portas ou “potências”. No século XVII o conceito potência significa “[...] a capacidade de fazer, de realizar e de produzir efeitos [...]”566, todavia, este efeito não é determinístico, ou seja, a realização de um fim determinaria desde a origem todo efeito causado – como a causa final em Aristóteles – , mas é um movimento, um impulso, uma força em um dado momento. Tal movimento manifesta-se no entendimento e na vontade. A primeira potência é mais natural, pois é na 2ª ordem, do espírito, onde o entendimento manifesta sua força. Pascal descreve os procedimentos ou efeitos desta ordem: definindo os termos ou os nomes através de definições claras; propondo axiomas ou princípios para provar; e substituindo mentalmente nas demonstrações as definições no lugar dos definidos.567 Esta é a lógica geométrica naquilo que diz respeito ao entendimento, visto que não poderíamos consentir nada que não passe por esta lógica, o que seria contrário à natureza da própria ordem, ou seja, tirânico.568 A segunda potência, ou seja, a vontade, é contra a natureza e mais comum. Contra a natureza porque pertence a 3ª ordem, aquela do coração569, tocada pela graça e na qual o raciocínio não tem a supremacia. Impor

565 Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355.

566 Gérard BRAS & Jean-Pierre CLÉRO, Pascal – Figures de l`imagination. Paris: PUF, 1994, p. 10. 567 Cf. Blaise PASCAL, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 356.

568 “A tirania consiste no desejo de domínio universal e fora da sua ordem.”. (Idem, Pensamentos, Laf. 58, Bru. 379, p. 20). O querer dominar tudo é, por exemplo, fazer da vontade, uma instância de 3ª ordem, dominadora do entendimento, instância de 2ª ordem.

569 “Portanto, falo somente das verdades a nosso alcance; e é sobre elas que eu digo que o espírito e o coração são como portas por onde elas são recebidas dentro da alma, mas muito poucas entram pelo espírito, enquanto que são introduzidas em massa pelos caprichos temerários da vontade, sem o aconselhamento do raciocínio.”. (Idem, De l´Esprit Géométrique et De l`Art de Persuader, p. 355). Enfatizo a mudança conceitual da vontade

uma verdade à razão pela ordem do coração é ir contra a natureza da ordem do espírito.

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