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Capítulo III RESULTADOS

4.8. Eficácia da Terapia da Dignidade na Espiritualidade

Diversas tentativas de definição de espiritualidade têm sido propostas. A espiritualidade é, provavelmente, melhor definida como a forma como as pessoas entendem as suas vidas no confronto com o seu valor e significado últimos (Nelson et al., 2002). A importância da espiritualidade como elemento central do cuidado médico e do bem-estar psicológico tem sido cada vez mais reconhecida. No seu confronto com a doença, a limitação, a perda e a morte em si mesma, a pessoa doente questiona a vida, o seu significado e sentido e a existência de uma força maior, uma razão superior, se esta existir ou for verdadeira. O momento de crise que caracteriza o fim de vida conduz – de forma quase indubitável – a um “mergulho” em problemáticas existenciais mais profundas, até ao momento ignoradas.

Diversos estudos têm demonstrado a relação entre espiritualidade e patologia psicológica, nomeadamente a depressão (Nelson et al., 2002). McClain e seus colaboradores (2003), num estudo realizado em 160 doentes seguidos em CP, demonstraram que a espiritualidade era o mais forte preditor de DAM e ideação suicida, concluindo que o bem-estar espiritual podia oferecer aos doentes em fim de vida um efeito protector contra o desespero vital, a diminuição de sentido e propósito existencial no confronto com a morte iminente.

O presente EAC pretendeu estudar a eficácia da TD na patologia psicossocial de doentes em fim de vida, englobando neste grupo, obviamente, a espiritualidade. Os dados do nosso ensaio relativos à depressão, ansiedade, SDesm e DAM ajudar-nos-ão a realizar uma melhor compreensão acerca dos resultados relativos à espiritualidade, face à evidência já publicada sobre este tema. É notória e de relevo a eficácia da TD no aumento da espiritualidade dos participantes do EAC face ao grupo controlo. Na análise dentro de cada grupo de estudo, os doentes alocados ao grupo controlo não mostraram alterações estatisticamente significativas na sua espiritualidade, ao invés do sucedido aos doentes do grupo de intervenção. Desta forma, mostra-se de forma inequívoca a eficácia da TD na melhoria da espiritualidade em todos os doentes alocados o grupo de intervenção, tanto na comparação entre grupos como também na análise comparativa dentro do grupo de estudo, nos diferentes momentos de follow-up. Esta eficácia foi demonstrada não só na subescala da Crenças como também na de Esperança. Em psicologia, o termo crença define-se como o acto de alguém no seu próprio poder de agir de modo efectivo. Uma forte crença contribui para um sentido positivo de lidar com o mundo, portanto está intimamente ligada com a noção de locus interno de controlo. Torna-se psicologicamente saudável para um indivíduo ter uma crença na sua auto-suficiência, levando tal a assumir tarefas mais difíceis e a persistir nelas. Pensamos que a melhoria da crença dos participantes da TD face ao grupo da IPM possa dever-se mais do que a uma crença transcendente ou vertical – cuja possibilidade não se afasta – mas sim numa crença na capacidade humana – horizontal, relacional – de acreditar em si mesmo, no impulso para uma auto-recriação, da persistência na elaboração e entrega de um documento de legado que se crê eternizado para além da morte. Tomando estas ideias em mente, vislumbra-se o que parece ser a razão principal da eficácia da TD numa das facetas da espiritualidade: as crenças. Ao assumir um papel activo, criador e de comando sobre a sua própria narrativa, no conto e reconto da sua história, na recordação presente e renovada de momentos passados guardados na memória, é dada a cada participante a possibilidade de dar um sentido ao seu relato vital único, tomando controlo – activando o seu locus interno –, sentindo-se capaz, auto- suficiente no domínio da sua biografia. Ao rever-se a ele próprio no percurso da TD – cada pessoa crê mais do que apenas nela própria – no mundo onde está inserida e crê, sobretudo, num sentimento renascido de persistência.

Analize-se o tema da esperança, uma das subescalas da Escala de Espiritualidade utilizada no nosso EAC. Esperança pode definir-se como uma crença emocional na possibilidade de resultados positivos relacionados com eventos e circunstâncias da vida pessoal, requerendo para tal um intenso grau de perseverança. No presente EAC, a TD foi eficaz no aumento

da esperança comparativamente aos doentes do grupo da IPM. Os doentes, entregues à certeza de um prognóstico diariamente mais encurtado, projectam a esperança para além do momento presente – para além da convicção numa cura ou num tratamento inovador –, elevando o seu desejo mais profundo para o mundo e para os outros que estimam: que esse mundo e que a história de quem a ele pertence seja melhor, que possa fortalecer-se com os conselhos mais genuínos de quem parte, deixados a quem vive e fica, após a morte. A execução da TD acompanha os seus participantes na tarefa de criar um documento de legado que seja ele próprio um escrito de esperança para os seus portadores, através daquilo que se quer deixar escrito, fruto das aprendizagens de vida, das palavras e ensinamentos que incentivam à continuação e à sobrevivência após a morte de quem se ama. Neste âmago reside, em nossa opinião, a razão essencial para que a TD seja um veículo eficaz de aumento da esperança de todos aqueles que aceitam o desafio de criar um documento de legado – ou de esperança, em termos sinónimos aqui (bem) utilizado – capaz de criar uma possibilidade real e presente de algo positivo, para além de uma circunstância adversa que é a morte de quem se ama.

Como foi já referido, na aproximação à sua finitude, cada doente em fim de vida irá reformular de forma única a razão da sua existência, questionando o sentido e o propósito de estar vivo, a sua morada, o seu pensamento sobre o mundo: “- Neste meu fim de vida, enquanto procuro respostas sobre o porquê e qual o sentido de toda esta minha vida a terminar, não sei bem como é o meu pensamento. Ele flui de forma organizada e desorganizada ao mesmo tempo e eu não me preocupo com isso, porque tudo se torna lentamente mais claro, apesar de um pouco triste por acontecer cedo demais”; e as razões porque o seu “coração ainda bate”, parafraseando dois participantes do estudo.

A TD encontra, na sua génese, um objectivo principal: o aumento do sentido e propósito de vida, a criação de uma sensação de bem-estar e realização pessoais, na relação com o próprio e os outros (com o mundo, em última análise), através do momento psicoterapêutico terapêutico (o da execução da terapia em si) e o da construção de um documento de legado, para os outros. Assim, parece que a razão principal pela qual a TD aumenta a espiritualidade dos seus participantes possa residir justamente nos seus próprios pilares, na razão fundamental da sua existência e aplicabilidade a pessoas em fim de vida: permitir o aumento de sentido e propósito de vida, dois dos aspectos questionados ou mesmo ameaçados na espiritualidade de quem se confronta com a morte. Apesar de parecer ser esta a razão que fundamenta mais fortemente a eficácia da TD na espiritualidade face aos participantes do grupo controlo, deve ser feita uma análise relativamente a outras variáveis psicossociais estudadas neste EAC e a sua relação com a espiritualidade, nomeadamente os sintomas depressivos, o SDesm e o DAM. Com já foi referido, a evidência científica – apesar de ainda escassa – tem demonstrado uma relação entre a patologia psicossocial e a espiritualidade. Mostrou-se uma relação inversa entre bem-estar espiritual e a depressão e, sabe-se hoje que na evolução da doença incurável, sobretudo com o declínio funcional mais marcado, são esperados sentimentos de desmoralização, aumento da ansiedade e de DAM. Quando são analisados os dados do presente EAC – relativamente às patologias anteriores do foro psicossocial –, verifica-se que

em todas elas se mostrou uma eficácia da TD, ou seja, uma diminuição da sua prevalência nos momentos de follow-up. Desta forma e já que a patologia psicossocial dos doentes em fim de vida é uma constelação sintomática e não um conjunto de afecções psicológicas isoladas e sem influência mútua, não se estranha que a melhoria significativa da depressão, da ansiedade, do DAM e da desmoralização – patologias cunhando frequentemente o fim de vida – possa ser acompanhada de uma melhoria significativa da espiritualidade já que esta é também reacesa neste último confronto com a morte que se aproxima.