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Eixo temático: estágios comportamentais

4.3 DELINEANDO OS EIXOS TEMÁTICOS

4.3.1 Eixo temático: estágios comportamentais

A partir das questões norteadoras, os colaboradores relataram suas experiências de vida como ex-portadores de hanseníase e como ex-moradores da Colônia São Francisco de Assis através de um recorte histórico do seu passado, enfatizando desde os tempos de infância, momento este em que muitos já conviviam com o peso e as consequências da doença, até os dias atuais, agora não mais na condição de doentes, mas de cidadãos que apesar de todo avanço na área da hanseníase ainda carregam um estigma injusto e nocivo.

Ao examinar os relatos, percebeu-se que todos os participantes fizeram referência a respeito do momento em que descobriram ser portadores de hanseníase. A partir desta confirmação, experienciaram um turbilhão de sentimentos como susto, choque, raiva, negação, tristeza e revolta.

Eidt (2004a) enfatiza que entre os sentimentos que brotam no paciente após a confirmação diagnóstica da hanseníase e passam a fazer parte do seu mundo, está o medo de ser desmascarado, o medo de transmitir a doença, da discriminação contra seus familiares, das sequelas físicas, o temor ao abandono, a rejeição e a solidão.

Além de experienciarem tais sentimentos, os pacientes passaram por diversos estágios até a aceitação, ou não da doença. Para Kübler-Ross (1994), estes estágios são denominados comportamentais ou psíquicos e incluem a negação, raiva/revolta, barganha, depressão e aceitação. Ainda que, estas fases, em geral, ocorram na ordem apresentada, isto não é obrigatoriamente necessário e as reações que tipificam cada uma delas podem coexistir em um mesmo momento.

De acordo com Peres, Franco e Santos (2008), a maioria das pessoas portadoras de hanseníase inicialmente passa por uma fase em que o comportamento mais frequente é o de negar a doença como uma estratégia para enfrentar alguma dificuldade ao encarar a nova realidade, podendo, então, negar a doença ou apenas uma parte do tratamento recomendado.

Em certas situações, usam-na como forma de prolongar o tempo que julguem necessários para entender o impacto emocional e criar forças para enfrentarem essa doença. Tais afirmações podem ser comprovadas conforme os relatos abaixo:

Não disse a ninguém porque não queria alarmar o povo. Nesse tempo a doença era um alarme medonho. Essa doença é boa agora, porque o camarada pode viver com todo mundo, mas naquele tempo era um caso sério (Tadeu).

Ele me examinou e disse logo que eu estava com lepra. Fiquei surpreso, não acreditava. Nessa época eu estava com uns vinte e cinco anos. Pensei que ia morrer, porque naquele tempo o povo tinha muito medo da doença, e eu fiquei com muito medo também (Pedro).

Muita gente por aqui num sabe não. O cara fica meio receoso, porque todo doente tem esse negócio, não vai dizer que foi doente. O cara não vai declarar mesmo que tem a doença, quem está aqui fora principalmente (Felipe).

Em meio a tantas emoções, alguns pacientes mascararam sua doença por medo de não serem aceitos socialmente e de serem abandonados por todos e, também, por não aceitrem sua nova condição de existência, a de portadores de lepra ou leprosos.

Os colaboradores também se comportaram com revolta e raiva após o diagnóstico e durante a evolução da doença. Em relação a esse estágio, Kübler-Ross (1994) descreve que sentimentos de raiva e ódio emergem, podendo se propagar contra a família, amigos, vizinhos, profissionais de saúde e até mesmo contra Deus. Nesse momento, às vezes, fica difícil para estes entenderem que essa explosão não tem motivos pessoais, mas é consequência de saber que é portador de hanseníase. O comportamento rebelde, a irritação, a exigência, a hostilidade, a inveja do saudável, as queixas e insatisfação e, o constante questionamento acerca do porquê ter acontecido, são características dessa fase.

Nesse momento senti que não era nada, porque nesse tempo a hanseníase era uma doença muito grande, o povo tinha medo, até a família tinha medo. Não tive o que fazer (Tiago).

Homem, o cara novo, eu estava com vinte e sete anos e, doente! Quis me jogar de prédio abaixo, não tive apoio de ninguém, só do povo de lá mesmo (Felipe).

No entanto, quando disseram que eu tinha lepra, enlouqueci, comecei a me desfazer de tudo ligeiro. Comecei a odiar meus familiares tudinho... a minha família agora era os doentes (Pedro).

Estudo desenvolvido por Boti e Aquino (2008) sobre a Via Sacra de Veganin, um doente de hanseníase segregado na Colônia Santa Izabel (MG), também demonstrou a revolta e insegurança do mesmo por não aceitar a doença e toda carga social.

Quando a negação e a raiva são superadas, aparece a barganha. Nesta fase, o doente, assim como o familiar, estabelece acordos com figuras que lhe representam onipotência e supremacia, que em sua fantasia tem o poder do bem sobre o mal, da vida sobre a morte, como o médico, Deus, curandeiros, entre outros. São mecanismos de luta, esperança de cura e prolongamento de vida, na tentativa de se acalmar e tentar o enfrentamento da crise do descobrimento da doença. Observam-se mudanças no comportamento do doente que se torna aparentemente mais resignado, visando receber um prêmio: a saúde (PÉRES; FRANCO; SANTOS, 2008; KÜBLER-ROSS, 1994).

Considerando-se que o diagnóstico da doença representou por anos a morte simbólica do paciente para sociedade e muitas vezes para a família, percebeu-se que o estágio da barganha não foi evidenciado nas narrativas dos colaboradores, pois como é possível alguém negociar algo com Deus depois de morto!

No mais, os colaboradores demonstraram sentimentos de tristeza, angústia, choro e apatia, caracterizando assim um estado de depressão, considerado por Perez, Franco e Santos (2008) como uma fase de percepção da perda iminente, em que a angústia e a introspecção se avolumam, a dor psíquica aumenta gradativamente, sentimentos de culpa e insegurança, tristeza e perda retornam com grande intensidade. Aqui, a depressão assumiu um quadro clínico mais típico e característico de desânimo, desinteresse, apatia, tristeza e choro. Em algumas pessoas pode persistir durante meses e até anos, o que talvez comprometa o sucesso do tratamento e ocasione complicações, às vezes irreversíveis. Os fragmentos abaixo ilustram esta fase.

Quando ele terminou de falar comecei a chorar, naquele tempo eu era criança, quatorze anos! Mas rapaz, não pude fazer nada, comecei a chorar (André).

Quando chegou em casa e disse que eu era doente de lepra não fiz nada, aceitei tranquila, não chorei (silêncio)... só fiquei triste porque ia me separar da menina que criei, ela só tinha dois anos e seis meses. Foi um sacrifício, mas o resto aceitei tudo, porque vinha ficar perto de minha mãe (Sara).

Do jeito como vi aquele pessoal todo acabado e longe de suas casas, fiquei assim, meio triste. Fiquei bem triste mesmo... (João).

Vale ressaltar que quando o paciente percebe que além das perdas obteve ganhos com sua nova realidade, instala-se então o quinto estágio, a aceitação da doença. Nesta fase, o paciente encontra-se mais tranquilo, sereno, conformado e adaptado a sua condição, gerando conscientização e responsabilidade pelo seu estado geral de saúde (PÉRES; FRANCO; SANTOS, 2008; KÜBLER-ROSS, 1994).

Contudo, considerando-se o impacto provocado pela hanseníase na vida desses pacientes, muitos foram obrigados a aceitá-la, tendo em vista a ameaça constante do preconceito marcado por sofrimento, abandono e discriminação.

Não tive apoio de nada e de ninguém, mas também não fiquei revoltada não. Aceitei (Maria).

Não senti nada quando ele disse isso, tinha que ficar internado mesmo, fazer o quê! Não tinha o que fazer. Porque todo Brasil tem essa históra de hanseníase. Fortaleza tem, aqui tem, no Recife tem, toda capital tem essa tal de hanseníase (Simão).

A gente tinha que aceitar a doença sem dizer nada, sem fazer revolta, sem coisa nenhuma. Aceitei numa boa, quem quisesse dizer as coisas podia dizer, mas nunca fui de me revoltar porque sou doente e, num sei o quê. Se alguém perguntasse se eu era doente de hanseníase eu dizia (Tomé).

É como li na escritura, aquilo que empena não voltará a ser o que era. Então o que vou pensar da própria escritura, vou apelar pra quem? Num tem jeito (Mateus).

Outros pacientes, no entanto, mesmo aprendendo a conviver com a doença, nunca aceitaram sua condição de ser portadores deste mal. Para Mellagi e Monteiro (2009), a aceitação de uma doença pelo paciente não implica no gosto pela mesma, uma vez que este pode não gostar de algo e mesmo assim aceitá-lo.

Quando o médico disse que eu tinha lepra num senti nada, fiquei [silêncio]... já estava doente minha filha. Mas nunca aceitei não, quem é que aceita mulher, ninguém (Izabel).

Nunca me conformei porque não gostava de lá, não tinha saudades. O povo dizia: você devia dar graças a Deus porque foi doente e teve um canto para você se recuperar e morar. Mulher, não vou dar graças a Deus por uma doença que não pedi e que me arrasou, acabou comigo. Sofri e chorei demais, fui muito humilhada (Sara).

Destarte, observou-se que apesar de compartilharem o mesmo drama, os colaboradores comportaram-se de maneiras diferentes no decorrer destas fases, o que é algo considerado esperado nessas situações em que se sentiram ameaçados, tendo em vista a singularidade e a subjetividade do ser humano. Tal comportamento pode estar associado à história pregressa de vida de cada participante, em que marcados por uma infância traumática ou mesmo ausente, tiveram de conviver com a dor, o sofrimento, a violência e a apatia dos pais, adotando muitas vezes estratégias de defesa para enfrentar tal situação. Nesse caso, percebeu-se que as reações e atitutes apresentadas pelos colaboradores mediante o diagnóstico e a evolução da doença foram diretamente influenciadas pelas experiências vivenciadas nas diversas etapas de suas vidas que precederam à doença, especialmente à infância.

Destaca-se ainda que a maneira rude como os colaboradores foram abordados e informados sobre o diagnóstico da doença também influenciou o comportamento desses indivíduos, nos quais muitos não foram esclarecidos acerca do seu estado de saúde, em que logo foram encaminhados ao leprosário. Outros, no entanto, foram surpreendidos pela notícia através de familiares ou mesmo colegas de trabalho, que associaram a doença à presença de deformidades ou incapacidades físicas.

Meu irmão é enfermeiro chefe. Foi ele quem suspeitou dessa doença. Ele chegou lá e disse: você está tocado, você está doente, vamos pra Natal porque você já está com as orelhas muito grandes, cheio de caroços nas pernas, o rosto cheio de mancha, caroço em todo canto, nas pernas, nos pés, vamos embora (André).

Nesse tempo fui pro consultório de doutor Silvino, na cidade. Chegando lá ele fez uns exames, confirmou, disse que eu estava com lepra e me mandou logo pro leprosário (Felipe).

Quando foi com trinta dias, no dia trinta e um de Santana, o administrador do leprosário João Quirino foi me buscar lá em casa. Estava sozinha em casa quando ele chegou batendo na porta e perguntando se ali era a casa de Francisco Ladotinho! Confirmei e logo em seguida ele disse que eu estava com lepra e perguntou pelo meu marido (Izabel).

Quando o resultado do exame saiu, a assistente social me chamou para acompanhá-la até um certo lugar, mas não disse o que eu tinha. Entrei na ambulância da usina e quando pensei que não, estava dentro de Recife. Ela me levou a um hospital, mas não descobriram a doença. Na outra semana, me levou direto para o leprosário de Recife, o Mirueira (João).

Às dez horas o médico chegou, doutor Silvino, o homem mais credenciado do instituto, sua assinatura era mesmo que um tiro. Assim que olhou pra

nós, não disse nada, foi logo mandando um funcionário providenciar uma ambulância pra nos deixar lá no Km-6 (Mateus).

Na mesma hora ele pediu que eu entrasse no consultório. Entrei e me consultei primeiro que o paciente. Ele me examinou e disse logo que eu estava com lepra. Fiquei surpreso, não acreditava (Pedro).

Em sessenta e oito fiz exame de sangue na base naval, na base aérea e deu hanseníase. Minha doença era a de caroço, a tuberculóide. Levaram-me num transporte da base para colônia, encaminhado por doutor Pires, coronel e médico da polícia (Tiago).

Através dos fragmentos, sinalizou-se a preocupação dos profissionais e familiares com a vigilância da doença propriamente dita e com o corpo físico do paciente, não se importando com o bem-estar psíquico e emocial do mesmo.

Péres, Franco e Santos (2008) ressaltam que as reações emocionais são tão importantes quanto os dados fisiológicos, sendo necessário considerar também os aspectos sociais, culturais, psíquicos e econômicos no processo saúde doença, uma vez que influenciam no comportamento escolhido para enfrentar a doença.

Vale enfatizar que, mesmo experienciando este momento em períodos distintos da história da lepra, os colaboradores não tiveram um suporte social ou emocional dos profissionais de saúde para lidar com a situação.

Receber o diagnóstico de uma doença como a hanseníase, repleta de significados sócio-culturais e adaptar-se a ela, envolve mudanças nos hábitos que influenciam significativamente a qualidade de vida dos pacientes. Ademais, desperta diversos sentimentos, reações emocionais e fantasias, nas quais os profissionais de saúde, sobretudo, o enfermeiro, deve estar atento aos seus próprios sentimentos para a partir de então tentar compreender o indivíduo afetado e buscar junto aos seus familiares estratégias eficazes capazes de minimizar o sofrimento e auxiliá-lo no enfrentamento desse momento difícil.

Por fim, entende-se que o conhecimento das características dos estágios comportamentais pelos profissionais e familiares é importante porque permitirá administrar melhor a evolução dos acontecimentos até o desfecho da doença, evitando ou minimizando os conflitos e as angústias do paciente, entre ele e os demais.