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2.2 O TIPO IDEAL DE SOLDADO

2.2.4 Elementos da estética militar

O exame de aptidão física ultrapassa a constatação de resistência, ou de saúde, migrando também para uma avaliação estética do candidato, que não pode ter deformações ou “cicatrizes anti-estéticas” (SANTA CATARINA, 2013) na cabeça, ou no pescoço; nem deformações: no ouvido, na boca, no nariz, nos dentes e na pele. Proíbe-se, também, que o candidato possua cicatrizes e/ou tatuagens que o fardamento não possa cobrir (PARAÍBA, 2008). (APÊNDICE E).

A justificativa para tal exigência é que se trata de “uma questão de estética militar” (SÃO PAULO, 2013). Não é proibido o uso de tatuagens, mas no caso de possuí-las é vedado que elas “representem símbolos ou inscrições alusivas a ideologias contrárias às instituições democráticas ou que incitem a violência, ou qualquer forma de preconceito ou discriminação” (Ibid.). Tatuagens que expressem “obscenidade, ofensa, ou morte” além de comprometer os valores institucionais, também apontariam “desequilíbrios psíquicos” no indivíduo (SANTA CATARINA, 2013).

Ora, o fato de proibir o policial de usar tatuagens não é por si só uma espécie de preconceito, ou discriminação? Se tatuagens que representam morte e violência são indicadores de distúrbios psicológicos, o que justifica, hoje, no Brasil, diversos policiais militares utilizarem de forma legítima uma caveira como símbolo da causa que defendem? Entrando em contato e observando os policiais da PMPB por uma rede social na internet foi possível ver que o uso da caveira como símbolo da polícia é um fenômeno comum entre policiais não só Praças, mas também Oficiais. Expressões como “sou caveira” e “bandido bom é bandido morto” expressam apologia à violência e à morte, justamente as citadas ideologias que a polícia proíbe nas tatuagens dos candidatos ao CFSD.

Todos os soldados entrevistados conhecem alguém, ou já ouviram falar de candidatos que entraram no CFSD sub judicis por possuírem tatuagens e serem “barrados” pela instituição. Carlos cita um caso:

Conheço muitos. Eu conheço um policial que ia ser desligado desta última turma porque tinha uma tatuagem no braço. Quando ele botava a japona aí aparecia tatuagem. Ele ganhou a Ação e permaneceu no curso. Ele fez o curso todinho por liminar (Carlos).

Michel também cita um caso e lembra que nunca viu um candidato à PM ser desclassificado por ter tatuagens, até porque, vale lembrar, a pintura em si não é proibida, mas sua localização e seu formato. Afirma o policial:

Eu nunca vi ninguém não entrar na polícia por causa de tatuagens [...]. Tem um caso aí de um rapaz que entrou na Justiça [...]. Tavam querendo tirar ele, mas ele entrou na Justiça pra permanecer [na polícia] (Michel).

Joel também enfatiza:

Em relação a tatuagens, existe no edital que é proibido usar tatuagens. Na minha turma tinha três ou quatro alunos que entraram sub judicis porque tinham tatuagens (Joel).

É comum ver tatuagens em policiais à paisana e ouvir PM’s dizendo que querem fazer uma, ou no ocaso de já possuir, outra tatuagem. Porém, no processo seletivo o fenômeno é polêmico. Todos os informantes conhecem, ou ouviram falar de alguém que teve atritos com a instituição por possuir pinturas no corpo. O que revela o posicionamento da Polícia Militar acerca das tatuagens nos soldados?

A situação pode ser novamente analisada a partir da teoria dos estigmas sociais que, segundo Goffman (2004), não é um fenômeno novo e existe em várias sociedades. Os gregos estigmatizavam indivíduos através de sinais “com os quais se procurava evidenciar algo de extraordinário, ou mau sobre o status moral de quem os apresentava”. O cristianismo medieval também fez uso de tais sinais impressos no corpo para se referir, ou à graça divina, ou distúrbios físicos. Na modernidade, o estigma foi expandido, de modo que “as desgraças que causam ocupação” social se tornaram amplas. Os estigmatizados são os desacreditados, aqueles cujo perfil não se assemelha ao seu contrário, os ditos normais. Exemplos de estigmatizados modernos são os toxicômanos, os portadores de limitações físicas, os homossexuais, as prostitutas, os ex-presidiários, etc. (Ibid.), como já foi pontuado páginas atrás.

O indivíduo tatuado não representaria, para a PM, um ator desacreditado, cuja moral não é adequada à instituição? Se a tatuagem é símbolo de valores que a polícia não preza, o que a primeira representa? Símbolo da liberdade de expressão; de autonomia; de grupos marginalizados? Neste contexto, pensar o processo seletivo para o CFSD-PMPB é perceber como indivíduos que carregam um estigma, físico ou moral, representam categorias desacreditadas pela instituição. Note-se que o fenômeno é perceptível tanto no Exame de Aptidão Física, quanto na Avaliação Social.

Joel classifica a atitude da polícia de discriminatória e sem fundamento já que, depois que entra na polícia, o soldado não é proibido de tatuar.

Eu acho que isso é descriminação. Quando você se forma, pode ter tatuagens, então eu acho que isso é uma cláusula do edital que não tem lógica, não tem fundamento (Joel).

Denize conhece uma policial que tem uma pintura no punho e que não foi punida por isso. Kátia, de certo modo, confirma os discursos de Joel e Denize, que dão margem à interpretação de que a proibição de tatuagens aparenta “nascer e morrer” no processo seletivo.

Eu conheço um policial que tinha uma tatuagem na panturrilha e ele trabalhava com uniforme que era de short e ele não foi impedido de trabalhar (Kátia).

De todo modo, as tatuagens são sempre motivo de disputas judiciais para entrar no CFSD. São dezenas de “tatuados” que a polícia tenta impedir de serem soldados, sob a alegação de que tais pinturas não condizem com a estética militar, notavelmente formal, ou fechada, já que não admite na fachada cênica dos soldados impressões acerca de outras instituições, ou estilos de vida, ou modos de pensar, e assim por diante. A coação a soldados com tatuagens pode contribuir para a reprodução de estigmas sociais. O sinal, impresso no corpo, desacreditaria moralmente aqueles que o possuem, isto na ideologia da Polícia Militar.

Alberto, Oficial da PMPB, não economizou palavras para tratar do assunto. Segundo o policial, a justificativa para o fato de a polícia exigir essa estética formal do policial é que se o soldado usasse utensílios tais como brincos e piercing, isso poderia prejudicar sua aceitação social. Para ele, nossa cultura ainda está atrelada a padrões estéticos tradicionais, estigmatizando indivíduos com tatuagens, cabelos coloridos, etc. Acrescenta que não só a polícia, mas outras instituições sociais reproduzem tais padrões estéticos, e questiona: o que as pessoas diriam se vissem um juiz, ou um padre usando brinco, piercing, ou tatuado no rosto?

Alberto afirma, ainda, que esse tipo de pensamento, tradicional, leva tempo pra mudar e realiza várias indagações à pesquisadora: se a polícia tomar a iniciativa de quebrar paradigmas, quanto tempo duraria para as pessoas aceitarem o policial? Porque outras instituições também não tomam essa iniciativa? O oficial conclui: a mudança de pensamento requer tempo para aceitabilidade, o que não é conveniente para a sociedade que precisa da polícia, cuja serventia é diária.

O discurso de Alberto é provocador. Por si só, proposta de outro trabalho científico. A partir da estética policial militar, o informante apresenta questões sociológicas de relevância considerável, tais como a resistência que instituições tradicionais apresentam a alguns valores sociais modernos e a segregação de grupos que compõem a fachada social. Representa, portanto, a opinião de um Oficial do setor administrativo da instituição, acerca dos padrões valorativos desta.

O processo seletivo para o CFSD determina o tipo ideal, ou quem pode ser soldado da Polícia Militar: o jovem, de preferência homem, que aparente virilidade, inteligência, boa conduta e boa aparência. O tipo ideal de soldado é aquele tem o “passado limpo”, sem estigmas determinados, tais como ter estado na prisão, ter “passagem na polícia”, ou ter sido expulso da escola. É também ser um indivíduo psicologicamente saudável, capaz de enfrentar situações de risco, de reagir bem a situações de pressão psicológica e estar apto a interagir

socialmente com a equipe que trabalha e com os cidadãos. Um tipo ideal de soldado que, como o nome sugere, se encontra apenas no campo simbólico.

3 A INTERIORIZAÇÃO DO ESTILO DE VIDA MILITAR

“Uma vez que a mente já está colonizada, devíamos pelo menos tentar examinar o processo colonizador” (Mary Douglas).

Enquanto o processo seletivo escolhe perfis ideais de policiais, o CFSD inicia o recém ingresso na instituição. Nesta fase, o aluno soldado dá início à carreira militar e passa a conhecer as regras que resumem seus direitos e deveres de policial. O curso de formação marca o que a polícia chama de passagem do “eu civil”, ou da identidade civil para a “militar”. Dito em outros termos, este é o momento da interiorização do estilo de vida policial.

Este capítulo destina-se a análise da formação do soldado, fenômeno indispensável para entender o processo de construção desta identidade. Que tipo de soldado o CFSD forma? Quais são os discursos e as práticas desta socialização? Onde ela ocorre e quais são as condições materiais desta ação? O que diz a SENASP acerca da formação policial militar? O CFSD-PMPB atende às suas reivindicações? O que diz a instituição sobre esta fase da carreira moral do policial? O que é o currículo oculto do CFSD? O que dizem os soldados acerca de sua formação? Há aplicabilidade do que se aprende na sala de aula no trabalho de rua?