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A construção do roteiro de entrevista para a presente pesquisa se baseia nos tópicos teórico-metodológicos desenvolvidos por Bernard Lahire (2004), que desenvolveu grades de entrevistas baseadas em algumas exigências norteadoras para a construção do questionário.

A presente pesquisa optou pela construção de um roteiro de entrevista temático (em anexo). O roteiro de entrevista temático abre espaço para o entrevistado explorar livremente os temas abordados. De acordo com Tim May:

Ao passar da entrevista estruturada para a não-estruturada, os pesquisadores mudam de uma situação na qual tentam controlar a situação predeterminando as perguntas e, assim, “ensinar” o entrevistado a responder de acordo com um esquema determinado (padronizado), para outra na qual o respondente é encorajado a utilizar os seus próprios termos. (MAY, 2004, p. 146).

O roteiro de entrevista temático permite ao entrevistado responder as perguntas dentro de sua própria estrutura de referência. Há, nesse método, a preocupação com a perspectiva do entrevistado que elege os tópicos específicos aos temas, por considera-los mais relevantes ou apreciáveis. De acordo com May (2004), a entrevista não-estruturada caracteriza-se pela profundidade qualitativa e permite ao entrevistado responder sem constrangimentos relativos às perguntas pré-formuladas que determinam uma variedade limitada de respostas.

O segundo momento com o entrevistado foi caracterizado pela aplicação de entrevista semiestruturada. O roteiro continha perguntas específicas em relação à trajetória do indivíduo. A entrevista, ao mesmo tempo, permitiu ir além das questões implicadas, de modo a verificar algumas hipóteses lançadas durante a análise da primeira entrevista. O segundo momento com o entrevistado também se caracterizou pela apresentação, ao sujeito de pesquisa, do material produzido a partir da primeira entrevista. O objetivo do segundo encontro, além de obter esclarecimentos quanto às informações obtidas, era assegurar o consentimento do entrevistado quanto à publicação dos dados gerados.

Para a construção do roteiro temático de entrevista buscou-se inspiração na metodologia de Bernard Lahire. Desse modo, o roteiro explora a trajetória do indivíduo a partir de contextos e transições. Busca-se conhecer e compreender elementos significativos da trajetória do estudante, principalmente, nas transições educacionais. São investigadas as

dimensões relativas às fases da infância, da adolescência e da vida adulta - nos seguintes contextos: família, escola, vida social (extramuros), universidade e profissão.

Assim, os tópicos numerados abaixo correspondem aos principais elementos norteadores desenvolvidos por Lahire que abrangem a investigação em campo, a construção do roteiro de entrevista e a interpretação do material coletado no âmbito da investigação.

a) Os contextos de socialização. A pesquisa observa a influência das grandes instâncias socializadoras sobre os entrevistados. Para isso, se dá atenção as matrizes contextuais ligadas às trajetórias individuais, tais quais:

 Família;

 Instituições educativas da primeira infância: maternal, creche e jardim de infância;

 Instituições educacionais: E. Fundamental, E. Médio e E. Superior;

 Mundo do trabalho;

 Instituições culturais, esportivas, religiosas e políticas.

b) Aproximação entre contextos de socialização. A pesquisa não se restringe a apenas um contexto socializador, pois as atividades e práticas sociais, segundo Lahire, apresentam ligações estreitas entre contextos diferentes. Há uma aparente autonomia dos universos específicos que a partir do detalhamento das práticas sociais se revelam entrelaçados. Assim, como observa Lahire, é difícil dissociar o universo escolar do universo familiar, pois, geralmente, detalhar a vida escolar leva a esclarecer práticas familiares.

c) Variações intra-individuais, variações de intradomínios e pluralidade dos princípios de socialização. A metodologia busca as diferenças internas dos contextos, observando as distinções entre pessoas significativas ao sujeito de pesquisa. Por outro lado, pretende buscar elementos que falem das propriedades dos próprios contextos transitados pelos indivíduos pesquisados. Quanto a pluralidade dos princípios de socialização, a pesquisa deve atentar à multiplicidade relacional entre os sujeitos do universo social do pesquisado que varia de acordo com os momentos de sua trajetória.

d) Identificar e compreender os fenômenos de compartimentação ou de interpenetração de práticas e sociabilidades entre diferentes contextos de vida do sujeito, assim como a concorrência ou a complementaridade entre investimentos sociais no que diz respeito a esforço e tempo de dedicação entre diferentes instâncias sociais.

e) Roteiro de entrevista possui um caráter biográfico. Compreende o entendimento das variações intra-individuais diacrônicas e sincrônicas, remontando a gênese das disposições, competências e apetências do indivíduo. As questões do roteiro de entrevista delimitam os contextos e as transições de vida do entrevistado, podendo ser dividida em:

 Familiar: da infância à vida conjugal ou materna/paterna;

 Educacional: desde o maternal às transições escolares avançadas;

 Trabalho e profissional: a trajetória laboral e profissional do pesquisado;

 Sociabilidade: abrange desde as amizades de infância até as atuais;

 Lazer e cultural: busca desde a infância as práticas relacionadas;

 Corporal: compreende desde as práticas esportivas aos hábitos alimentares desde a infância.

f) Buscar as variações disposicionais diacrônicas e sincrônicas. As variações intrapessoais estão associadas às transições de vida pelas quais os indivíduos passaram. Inspirando-se em Lahire podemos questionar: de que forma as transições influenciam a reorganização do patrimônio disposicional do estudante? Pelas variações diacrônicas do patrimônio disposicional torna-se possível aprofundar a compreensão das variações disposicionais sincrônicas, ou seja, permite detalhar como os novos contextos solicitam experiências passadas incorporadas pelo indivíduo e que permaneciam em condição de vigília. O objetivo deste ponto é captar as variações diacrônicas e sincrônicas sobre as oscilações, as ambivalências, as hesitações e as contradições disposicionais do pesquisado.

g) Investigar disposições precisas do estudante. Pesquisar determinadas disposições e compreender suas mobilizações a partir dos seguintes pontos: o grau de extensão, os contextos acionados e as condições de vigília. Lahire (2004) apresenta algumas disposições descritas abaixo.

 Modos práticos de aprendizagem versus modos escolares-pedagógicos de aprendizagem: o primeiro tipo busca as aprendizagens estabelecidas por imitação prática, impregnação e identificação. O segundo tipo entende a efetividade da aprendizagem por meio de disposições ativadas no âmbito escolar e disciplinar que se estendem a vários domínios do conhecimento.

 Ascetismo versus hedonismo: Lahire traz suas variações nos pares “rigorismo versus liberalismo” e “moralismo versus displicência”.

 Disposições de planejamento versus disposições espontâneas que implicam modos de organizar, planejar, revisar e gestar as práticas em contraponto à improvisação, não gestão e indeterminação de procedimentos para atividades e tarefas laborais e educacionais.

 Relação de hipercorreção versus relação de hipocorreção versus rejeição às normas: se tratam respectivamente da tensão, do relaxamento ou da recusa aos regulamentos relativos aos contextos profissionais e acadêmicos, ao agendamento e cumprimento de horários, à formalidade da fala em ocasiões próprias, etc.

 Disposições estéticas versus disposições utilitárias: verificadas no consumo, no lazer, na alimentação,

 Disposições para atividades públicas e coletivas versus atividades individualistas e privadas: busca-se compreender as tendências do indivíduo para atividades relacionadas a esfera públicas ou privada em relação a participações em movimentos estudantis ou sociais, a esportes coletivos ou individuais, as tendências ou não de compartilhamento, integração, coletividade, engajamento a grupos, etc.

 Disposição para “entrega de si” e passividade versus iniciativa e liderança: investigar como as disposições se mobilizam em contextos de dinâmicas coletivas e atividades que requerem tipos de participações diferenciadas entre integrantes de grupos de trabalho.

 Disposições do estudante para sociabilidade. A partir da compreensão de afinidades e vínculos de amizades, busca-se construir as multiplicidades dos gostos e inclinações do indivíduo. A ruptura, o surgimento e a transformação de amizades podem fornecer elementos de reconfiguração do patrimônio disposicional.

h) Relação entre disposições e contextos. Identificar sentimentos e práticas do estudante que revelem mobilizações disposicionais de inibição, suspensão, contradição e vigília por conta de elementos do contexto. Em vista disso, pretende-se reconhecer quais apetências, competências e disposições foram interditadas pelo contexto. Neste item,

convém ressaltar que a investigação sobre os contextos abrange também os limites pessoais, situacionais e institucionais que configuram a transição do estudante.

i) A precisão sobre contextos, pessoas, práticas e exemplos. Para Lahire, quanto maior o número de indicadores, mais facilitada será a interpretação e mais complexa a análise. A riqueza do detalhamento e a diversidade de experiências colaboram para evitar a homogeneização do discurso do entrevistado. Este tópico alerta sobre o risco de o pesquisador cair na lógica dominante da sociologia, construindo pela interpretação um discurso unificado pela regularidade e coerência dos elementos.

Bernard Lahire (2004) pretende apresentar uma metodologia interpretativa relativamente ideal sobre o desenvolvimento da pesquisa em campo. Assim, a partir da análise baseada nas condições teórico-metodológicas para a construção e aplicação das entrevistas, passamos a identificar vestígios de disposições dos entrevistados. Busca-se, então, a variação ou a não-variação dos comportamentos e delimitação contextual das atualizações ou não- atualizações disposicionais. Junto a isso, observa-se as propriedades sociais relativas aos contextos em que ocorrem as mobilizações de traços disposicionais. Neste ínterim, busca-se compreender os fundamentos das práticas sociais dos estudantes em relação aos contextos e suas influências internas e adjacentes.

A apreensão das realidades disposicionais individuais não deve ser reduzida pela busca de um princípio único de coerência. Lahire observa que o patrimônio disposicional pode apresentar coerências ou recorrências parciais das práticas e comportamentos do ator. Embora haja uma tendência de o entrevistado interpretar sua própria vida de modo a fornecer, segundo Lahire (2004), “as chaves de compreensão” ao pesquisador, o patrimônio disposicional poderá ser reconstruído parcialmente e por uma visão limitada do próprio entrevistado. Assim, o pesquisador, consciente do caráter experimental da investigação, buscará as complexidades do patrimônio disposicional do sujeito de pesquisa.