• Nenhum resultado encontrado

ELEMENTOS PARA A HISTÓRIA DA RECOLHA E PUBLICAÇÃO DA LITERATURA ORAL PORTUGUESA

[1821(?) - 1870]

Palavras prévias sobre o corpus

Para compreendermos bem o lugar ocupado pela colecção de romances (e também pela de canções líricas) formada(s) por Estácio da Veiga, começaremos por traçar o panorama da recolha e publicação de materiais de literatura oral no nosso país, desde inícios do séc. XIX até 1870. A primeira destas datas tem a ver, obviamente, com o início do interesse por tais questões em Portugal; a segunda data é aquela em que foi publicado o Romanceiro do Algarve, o último escrito de Estácio da Veiga sobre o assunto e ponto de chegada do seu esforço colector.

Os dados que neste capítulo apresentaremos (assim como no capítulo que mais adiante dedicaremos à balada romântica) foram colhidos ao longo de vários anos, através da leitura de umas 150 obras oitocentistas, livros e sobretudo periódicos.

Destes últimos, assinale-se que folheámos mais de 100, na maioria das vezes a sua colecção completa (ou, pelo menos, toda a que existe na Biblioteca Nacional). Esta nossa decisão talvez necessite dalgumas palavras de esclarecimento. A presença de tão grande número de periódicos no corpus deve-se, por um lado, à enorme importância que os jornais e revistas desempenharam durante o âmbito cronológico deste trabalho e à impressionante quantidade deles.215 Por outro lado, a atenção que demos à imprensa justifica-se pelo facto de

215

Tenham-se em consideração os seguintes dados (extraídos de José Tengarrinha, História da

Imprensa Periódica Portuguesa, 2ª ed., revista e aumentada, Lisboa, Editorial Caminho, 1989, p. 141), que

organizámos por anos, indicando, entre parênteses, o número de novos periódicos fundados nesse ano: 1821 (39), 1822 (35), 1823 (33),1824 (6; dera-se a Vilafrancada no ano anterior), 1825 (5), 1826 (48; é promulgada neste ano a Carta Constitucional), 1829 (6; início do regime miguelista), 1830 (9).

ser aí que, em muitos casos, primeiramente (e, tantas vezes, exclusivamente) se publicaram os textos objecto do nosso estudo. Assim, a leitura dos periódicos coevos permite um conhecimento muito mais completo dos documentos e um levantamento da sua cronologia sem dúvida mais correcto. Bem poderemos fazer nossas —embora estendendo-as à imprensa não estritamente literária, pois que também nela existe muito material importante de e sobre literatura— as seguintes palavras de Sampaio Bruno:

As revistas literárias [...] são largas sínteses de toda uma época artística, são, por assim dizer, resumos onde o historiador crítico das literaturas pode, mais facilmente do que em livros destacados, estudar o renascimento duma literatura.216

A consulta de tantos livros e periódicos oitocentistas permitiu-nos a formação dum extenso corpus, o mais completo que conhecemos, referente à literatura oral (e também à balada romântica), entre, como dissemos, inícios do séc. XIX e 1870. Este corpus proporcionará, assim o esperamos, as bases necessárias para o estabelecimento das panorâmicas que passamos a apresentar.

Depois de 1834 (triunfo do Liberalismo), verifica-se um intenso movimento jornalístico (cf. op. cit., p. 152): 1835 (54 novos periódicos), 1836 (67), 1837 (59).

A decadência do Setembrismo (desde 1838), o seu fim (1842), e o período dos governos de Costa Cabral (1842-1851), com a reeclosão das lutas civis —Maria da Fonte (1846) e Patuleia (1846-47) — têm consequências negativas na imprensa (cf. op. cit., pp. 157 e 182): 1840 (8 novos periódicos), 1842 (32), 1843 (37), 1849 (36), 1850 (15; é o ano da promulgação da “Lei das Rolhas”, contra a liberdade de imprensa).

Em 1851 (queda do Cabralismo e início da Regeneração) é abolida a “Lei das Rolhas” e publicam-se 39 novos periódicos (cf. op. cit., p. 184). Começa então “um período de grandes facilidades para a Imprensa [...] No decénio de 1850 a 1859 foi de 35 a média aproximada do movimento anual da criação de periódicos, no decénio de 1860 a 1869 foi de 67” (loc. cit.).

Mesmo tendo em atenção que muitos destes jornais e revistas tiveram existência efémera (tantas vezes não passaram do primeiro número), a sua quantidade é enorme, facto que, necessariamente, torna impossível qualquer tentativa de exaustividade na formação dum corpus de materiais retirados da imprensa, como é o caso daquele que estabelecemos. De qualquer modo, temos a sensação de ter folheado não só a totalidade dos jornais e revistas oitocentistas considerados importantes pelos estudiosos da literatura portuguesa, como também muitos e muitos dos periódicos raramente (ou nunca) citados por esses estudiosos.

216

Cit. por Fernando Guimarães, A Poesia da Presença e o Aparecimento do Neo-Realismo, 2ª ed., Porto, Brasília Editora, 1981, p. 127.

77

Para a História da Recolha e Publicação do Romanceiro

O romanceiro não é, no período que nos ocupa, o subgénero de que possuímos o mais antigo texto recolhido, nem aquele sobre que existem mais items publicados.217 Porém, sendo o tema desta tese a colecção de romances formada por Estácio da Veiga, pensamos que se justifica começarmos pelo romanceiro o nosso percurso.

1809

Durante as pesquisas que levámos a cabo, a mais antiga menção ao romanceiro português da tradição oral moderna que encontrámos está, talvez não surpreendentemente (se tivermos em atenção o que atrás vimos sobre a importância da baladística na Grã-Bretanha desde o séc. XVIII), nas páginas dum autor inglês: o lusófilo Robert Southey.218 De facto, em 1809, no nº 2 da Quarterly Review, Southey publicou um artigo intitulado “On Portuguese Literature”.219 Aí se diz que “as Balhatas [sic] populares dos Portuguezes achaõ se

217

Como veremos no capítulo seguinte, o texto mais antigo de que temos conhecimento é uma lenda (publicada em 1824 por Marianne Baillie, e recolhida em Sintra, entre 1821 e 1823), e o número de items publicados referentes ao cancioneiro lírico ultrapassa o número dos referentes ao romanceiro.

218

Sobre as relações deste escritor com Portugal, ver Adolfo de Oliveira Cabral, Southey e Portugal.

1774-1801. Aspectos de uma biografia literária, Lisboa, P. Fernandes, S. A. R. L., 1959. Southey visitou por

duas vezes Portugal, e sobre as suas viagens publicou umas Letters Written During a Short Residence in Spain

and Portugal, With Some Account of Spanish and Portugueze[sic] Poetry, Bristol / London, Joseph Cottle / G.

G. and J. Robinson, and Cadell and Davies, 1797. Escreveu, além disso, um diário duma das suas estadias, postumamente publicado: Journals of a Residence in Portugal (1800-1801) and a Visit to France (1838),

Supplemented by Extracts from his Correspondence, ed. by Adolfo Cabral, Oxford, At the Clarendon Press,

1960. Southey traduziu o Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Morais (1807), e escreveu muitos artigos sobre assuntos portugueses.

219

Infelizmente, não pudemos ler este artigo no original. Porém, conseguimos uma sua tradução portuguesa, ao que parece não muito posterior: [Robert Southey], Memoria sobre a Literatura Portugueza, traduzida do jnglez [sic] com notas illustradoras do texto por J[oão] G[uilherme] C[hristiano] M[üller], s/l., s/n., s/d. Inocêncio (Diccionario Bibliographico Portuguez, III, Na Imprensa Nacional, 1859, p. 383) diz desta obra: “conjecturo [...] que foi impressa em Hamburgo, em 1809”.

perdidas”,220 aventando-se mesmo uma hipótese explicativa para tal desaparecimento: “as peças de maior antiguidade que existiaõ [na tradição oral], riscaraõse provavelmente da memoria, pela obstinada guerra que a superstiçaõ221 fazia aos cantos populares”.222

1823

Neste ano, Almeida Garrett foi obrigado a exilar-se em Inglaterra, para escapar à perseguição que lhe era movida em Portugal, devido às suas ideias liberais. Aí contactou com a literatura romântica, ainda desconhecida entre nós, nomeadamente (como ele próprio explica) com baladas de autores famosos, mais ou menos inspiradas em baladas tradicionais. Lembrou-se, então, dos romances que, em menino, ouvira às criadas, e “come[çou] a pensar que aquellas rudes e antiquissimas rapsodias nossas continham um fundo de excellente e lindissima poesia nacional, e que podiam e deviam ser approveitadas.223 Escreveu, então, para Portugal, pedindo a uma amiga (cuja identidade infelizmente se desconhece) que lhe recolhesse romances. Essa recolha teve lugar “nas circumvizinhanças de Lisboa”,224 e parece

220

Southey, Memoria sobre a Literatura Portugueza, cit., p. 6.

221

Refere-se, muito provavelmente, à Igreja Católica (tenha-se presente que é um anglicano quem escreve).

222

Southey, op. cit., p. 7. O autor tem mais alguns comentários curiosos a respeito do romanceiro português. Na verdade, explica ele, em Portugal nunca se escreveram romances históricos. Pelo contrário, “os Espanhões [sic] abundaõ destas poesias, cujo maior numero se refere a suas guerras com os Mouros. As mais dellas saõ do Seculo decimo sexto, e do principio do decimo septimo”. Ora como nessa época a lembrança das lutas da Reconquista, terminada em Portugal mais de dois séculos antes do que em Espanha, era aqui já muito ténue, no nosso país não se escreveram romances sobre este assunto. Os heróis que se poderiam exaltar em Portugal seriam os das lutas com os Castelhanos, de memória recente; “este porem era hum ponto, sobre o qual se naõ podiaõ permittir desafogos ao estro dos poetas em hum paiz, que jazia sob lo jugo dos Castelhanos. Estas circumstancias historicas explicaõ o porque naõ appareceraõ balhatas em Portugal n’ hum tempo, emque [sic] ellas eraõ a especie predilecta das producções poeticas em Espanha” (loc. cit.). As “balhatas” portuguesas teriam sido, portanto, anteriores ao séc. XVI, de assunto não-histórico, e, como vimos acima no texto, teriam desaparecido sem deixar rasto.

223

[Almeida Garrett], Adozinda. Romance, Londres, Em Casa de Boosey & Son e de V. Salva, 1828, p. xxiii.

224

79 ter constado de “umas quinze rapsodias”,225 sendo informantes “amas-seccas e cuzinheiras velhas”.226 Tal recolha, datável de entre Outubro de 1823227 e meados de Janeiro de 1824,228 constitui a primeira que se fez de romances na tradição oral moderna, não só portuguesa mas pan-ibérica.229

225

Adozinda, cit., p. xxv.

226

Adozinda, cit., p. xxiv. Ao republicar a “Carta a Duarte Leça” no Romanceiro, I (1843), esta passagem surge modificada para “amas-sêccas e lavadeiras e saloias velhas” (p. 17). A referência às duas últimas categorias está perfeitamente de acordo com o facto de a recolha ter sido feito nas “circumvizinhanças de Lisboa”, a chamada região saloia, de onde, na época (e até bem mais tarde), vinham mulheres até à capital, buscar roupa para lavar, ou trazendo produtos hortícolas para venda de porta em porta. É possível ainda saber que uma das informantes da amiga de Garrett foi uma senhora minhota (ver adiante).

227

Garrett chegou a Inglaterra a 13 de Setembro de 1823 e instalou-se em Edgbaston (então nos arredores de Birmingham e hoje um dos bairros desta cidade), seu primeiro local de exílio, a 27 do mesmo mês (ver “Viagens e Impressões. Diário da minha viagem a Inglaterra”, in Almeida Garrett, Obras, I, Porto, Lello & Irmão—Editores, s/ d., pp. 622 e 625). Não nos parece provável que antes do mês seguinte houvesse tempo para Garrett ler as obras de Scott, etc., pensar nas recordações da infância, escrever à amiga, a carta chegar a Lisboa e a amiga fazer a recolha.

228

Segundo Gomes de Amorim (ver Garrett. Memorias biographicas, I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881, pp. 330-1), a recolha chegou às mãos de Garrett quando este estava ainda em Edgbaston. Tal foi, portanto, antes de 26/1/1824, data em que ele deixou essa localidade, passando a residir em Londres (ver Garrett, “Viagens e Impressões...”, cit., I, p. 630). Mesmo que Amorim se engane, e Garrett tenha recebido os romances quando já se encontrava em Londres, a verdade é que a recolha terá de ser anterior a Março de 1824. De facto, neste mês, Garrett partiu de Londres para o Havre, França [ver Amorim, op. cit., I, p. 340; informação corroborada por documentos publicados por José F. da Silva Terra, “Les Exils de Garrett en France”, Bulletin des Études Portugaises, N. S., 28-29 (1967-68), pp. 188 e 191]. Ora do Havre escreveu Garrett a Duarte Leça, pedindo que lhe remetesse, entre outras coisas que deixou ficar em Londres, “uns

romances populares que me tinha mandado uma senhora de Lisboa” (Amorim, op. cit., I, 359).

229

O que atrás deixámos escrito sobre a pioneira recolha da amiga de Garrett é, fundamentalmente, um resumo do nosso artigo “Nota sobre o Início da Recolha do Romanceiro da Tradição Oral Moderna”,

Boletim de Filologia, XXXII (1988-92), pp. 71-82, que se pode consultar para mais pormenores. Recorde-se

que se tem escrito repetidas vezes que o primeiro colector de romances da tradição oral moderna teria sido Bartolomé José Gallardo, graças aos três romances que, em 1825, recolheu em Sevilha [ver, por exemplo, Antonio Sánchez Romeralo, “El romancero oral ayer y hoy: breve historia de la recolección moderna (1782- 1970)”, in Antonio Sánchez Romeralo et al., El romancero hoy: Nuevas fronteras, Madrid, Editorial Gredos, 1979, p. 17]. Esta informação errada foi por nós corrigida no artigo atrás citado e, como voltámos a vê-la repetida em pelo menos outras duas obras, voltámos a corrigi-la mais tarde [ver “‘Alegres nuevas, alegres nuevas se cuentan de Andalucía’”, Estudos de Literatura Oral, 3 (1997), p. 229]. Infelizmente, a mesma informação errónea continua a ser divulgada em obras muito recentes [ver, por exemplo, Pedro M. Piñero

Dedicaremos em seguida algum espaço à questão (acima já mencionada) da influência que, segundo o próprio Garrett, a balada escrita britânica e alemã teve no projecto materializado com a Adozinda. Tais considerações irão fugir ao modo sucinto e de lista cronológica que o presente capítulo quase sempre assume. Porém, parece-nos que se justifica o desequilíbrio, digamos, estrutural que vamos introduzir, tendo em atenção a importância que o facto reveste para a história da recolha do romanceiro em Portugal e, sobretudo, para a compreensão do movimento (de que a seu tempo falaremos) da balada romântica portuguesa e, em última análise, de importantes aspectos do Romanceiro do Algarve.

Na introdução da Adozinda, Garrett afirma que a ideia da escrita de baladas que reversificassem romances tradicionais lhe veio depois de ter lido “os poemas de Walter Scott, ou, mais exactamente, suas novellas poeticas, as ballades allemans, [e] as inglezas de Burn” [sic, por Burns].230

Começando por Scott, vemos que Garrett refere a influência que recebeu das suas “novellas poeticas”, ou seja, os longos poemas narrativos, de que o autor português, mais à adiante,231 cita explicitamente dois: Marmion (1808) e Rokeby (1812). Que estes dois títulos não são apenas nomes atirados para o ar, mas que Garrett os tinha, efectivamente, lido nessa época é o que parece indicar o seguinte facto: o poema A Elysa, que serve de prefácio à Adozinda, tem como epígrafe232 uns versos de Scott, citados sem indicação do título da obra, mas que pertencem nem mais nem menos que ao Marmion, mais especificamente à “Introduction to Canto Third”, est. 7, vv. 1-6.233 Segundo Lia Correia Raitt —a quem se deve, aliás, a identificação da fonte dessa passagem—,234 o Marmion é mesmo responsável pela existência do mencionado poema que serve de prefácio à Adozinda e pelas

Ramírez, Romancero, Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1999, p. 43; ou Enrique Baltanás, “Exploración del romancero tradicional moderno en Andalucía. I”, in Pedro M. Piñero Ramírez et al. (orgs.), La eterna agonía

del romancero. Homenaje a Paul Bénichou, Sevilla, Fundación Machado, 2001, p. 388].

230 Adozinda, p. xxiii. 231 Op. cit., p. xv. 232 Op. cit., p. 1. 233

Ver Marmion, in Sir Walter Scott, The Poetical Works of ..., with all the copyright introductions, extra notes, various readings, and annotations, edited by J. G. Lockhart, Edinburgh, Adam and Charles Black, 1869, p. 98.

234

Ver Lia Noémia Rodrigues Correia Raitt, Garrett and the English Muse, London, Tamesis Books Limited, 1983, p. 79. Embora não indicando a sua exacta situação dentro do Marmion, foi esta autora, tanto quanto sabemos, a primeira pessoa a identificar esta obra como a fonte dos referidos versos.

81 características dele, pois cada um dos cantos do Marmion é “introduced by one or more stanzas of a musing and descriptive character, addressed to Scott’s friends”.235

Não é impossível que, no respeitante ao modelo constituído pela obra de Scott, Almeida Garrett tenha sido influenciado não apenas pelas “novellas poeticas” mas também pelos vários poemas inspirados em baladas orais escritos pelo poeta escocês e por amigos seus que ocupam o IV vol. do Minstrelsy, sob o explícito título geral de “Imitations of the Ancient Ballad”. O influxo destes poemas parece até mais visível que o das “novellas poeticas”, se tivermos em conta que os “romances reconstruídos” de Garrett, a começar pelo Romance de Bernal e Violante (publicado na Adozinda), são quase todos eles poemas curtos, de tamanho comparável ao das “imitations”. Mesmo a Adozinda ou a Miragaia (os mais longos dos “romances reconstruídos”) são muitíssimo mais curtas que o Marmion, o qual deve ter cerca de quatro vezes mais versos que a Adozinda.

É verdade que o Minstrelsy é referido por Garrett pela primeira vez apenas em 1843,236 numa passagem relacionada, para mais, com uma época posterior à da publicação da Adozinda, talvez ao ano de 1829.237 No entanto, o facto de não mencionar essa obra antes não significa, claro, que Garrett não a tenha lido nos anos 1824-25. Além disso, tal leitura nem teria sido necessária: bastaria que Garrett tivesse contactado (como o nome de Burns permite concluir) com o movimento da balada literária anglo-escocesa. Tal movimento,238 a que já nos referimos de passagem ao falar da influência das Reliques, conheceu, sobretudo em consequência da obra de Percy, uma grande amplitude e é o responsável pela existência de numerosas baladas, mais ou menos inspiradas nos modelos populares. É possível determinar que, antes de 1828, ou seja, antes da publicação da Adozinda, existiam publicadas pelo menos 227 baladas literárias,239 devidas a nomes tão importantes como Swift, Gay, Pope, Goldsmith, Blake, Burns, Wordsworth, Scott, Southey, Lewis ou Byron.

235

Lia Correia Raitt, loc. cit.

236

Garrett designa-a como “a [collecção] das fronteiras de Scocia por Sir Walter Scott” (Romanceiro

e Cancioneiro Geral, I, Lisboa, Typ. da Soc. Propagadora de Conhecim. Úteis, 1843, p. ix).

237

Cf. op. cit., pp. v-ix.

238

Sobre este movimento, além de The Twilight of the British Literary Ballad, de Yamanaka, atrás citado, consulte-se G. Malcolm Laws, Jr., The British Literary Ballad. A Study in poetic imitation, Carbondale and Edwardsville, Southern Illinois University Press, 1972.

239

Número conseguido através dos dados incluídos no Apêndice III da obra de Yamanaka, pp. 338- 351, que consiste numa “List of Literary Ballads”, a mais completa que conhecemos (a obra de Laws inclui

Claro que, na sua maioria, esses poemas não parecem ser a reversificação de baladas tradicionais, mas sim obras totalmente devidas à imaginação dos autores, que da tradição apenas aproveitaram a metrificação e certos temas e ambientes. Portanto, não poderia ser esse subgénero literário a servir de modelo a Almeida Garrett, o modelo que chamou a sua atenção para as “antiquissimas rapsodias nossas [, que] continham um fundo de excellente e lindissima poesia nacional, e que podiam e deviam ser approveitadas”. E, como se sabe, foi isso que ele fez na Adozinda propriamente dita e no Romance de Bernal e Violante. No entanto, é preciso não esquecer que uma parte dessas baladas literárias constitui, de facto, a reversificação de versões tradicionais. Infelizmente, os autores que pudemos consultar, embora refiram, de passagem, esse facto, não lhe dedicam uma atenção particular, limitando- se, quando falam mais pormenorizadamente desta ou daquela balada escrita (e, como vimos, o corpus é enorme), a referir que ela é reversificação dum texto oral. De qualquer modo, graças a essas referências esparsas, foi-nos possível determinar que, até 1828, há, pelo menos, na Grã-Bretanha, 9 baladas cujos autores reversificam versões tradicionais.240 E entre esses textos há alguns famosíssimos na época, devidos a Godsmith, Scott ou Burns.

Burns é, aliás, um dos autores cujo exemplo, como vimos, Garrett explicitamente menciona, como sendo um dos que seguiu. De notar, é verdade, que (ao contrário do que faz com as “novellas poeticas” de Scott) Garrett não especifica nenhuma das poesias do autor, referindo apenas, em geral, “as ballades [...] inglezas de Burn”. Talvez Almeida Garrett não tivesse grande familiaridade com a obra de Burns, que, aliás, não escreveu propriamente em inglês, mas no dialecto anglo-escocês das Terras Baixas. Essa possível pouca familiaridade explicaria, aliás, o facto estranho de o nome do autor escocês surgir mal escrito (sem “s”) não só em 1828, mas inclusive muitos anos depois, quando a introdução da Adozinda foi reproduzida, com alterações, no I vol. do Romanceiro, em 1843.241 No entanto, para levar Garrett a olhar para os romances portugueses como uma matéria-prima digna de ser aproveitada, poderia perfeitamente ter bastado a fama —aliás merecidíssima— que Burns gozava de se inspirar em textos orais.242

também uma lista, mas bastante menos rica, nomeadamente quanto à época anterior a 1828, a que mais nos interessava).

240

Ver Yamanaka, op. cit., pp. 11 e 40, e Laws, op. cit., pp. 27, 30, 33 e 34.

241

Ver Romanceiro e Cancioneiro Geral, I: Adozinda e outros, cit., p. 16.

242

“Much of his best work [...] was done in an antiquarian spirit, as an attempt to save folksong from extinction. But it is not easy to distinguish his editorial work from his original, creative work. He had three methods of composing: first, he would ‘edit’ and polish up songs that came to him in a more or less complete

83 Por último, além de Scott e de Burns, Garrett refere também, como vimos, a influência modélica das “ballades allemans”. Na introdução da Adozinda, diz-se apenas assim, sem indicação de nome dum autor em especial. Porém, ao ser republicado esse texto em 1843, tal passagem torna-se: “as ballads allemans de Bürger”.243 Como se sabe, Bürger foi autor de baladas mais ou menos inspiradas em crenças populares, que se tornaram celebérrimas por toda a Europa. Na altura em que saiu a Adozinda, nenhuma dessas baladas estava traduzida para português (a primeira seria a Lenore, vertida em 1834, por Herculano).244 Porém, o facto de Garrett ter mencionado o nome de Bürger apenas em 1843 não significa, necessariamente, que, em 1828, ao aludir às “ballades allemans” sem outra especificação, ele apenas tentasse exibir conhecimentos que, afinal, não teria. Na verdade, nas épocas em que viveu em Inglaterra (1823-24 e 1828-32), Almeida Garrett poderá

Documentos relacionados