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2 IGREJA ADVENTISTA DO SÉTIMO DIA: RELAÇÕES ENTRE MÍDIA,

2.2 Ellen G. White, mensageira do Senhor

Ellen Gould White, anteriormente Ellen Harmon, (1827-1915) nasceu em Gorham (Maine, EUA) e é considerada uma profetisa para o adventismo. Foi também fundadora da Igreja Adventista do Sétimo Dia e uma das escritoras estadunidenses mais traduzidas em todo o mundo, publicando cerca de 150 obras, entre livros e coletâneas, além de inúmeras cartas, manuscritos e artigos assinados para as publicações adventistas. Ela foi responsável pelo desenvolvimento do rol teológico adventista, inspirado pelos escritos bíblicos e pelas visões e sonhos que recebia. White é conhecida por escrever sobre os mais diversos assuntos, entre eles evangelismo, educação, finanças, comportamento e saúde. Por conta disso, até os dias de hoje as obras de Ellen G. White não apenas inspiram a vida dos adeptos do adventismo, mas são também os textos-base que formulam as próprias doutrinas da Igreja. Por sua importância para a história da Igreja Adventista do Sétimo Dia, sua obra ainda é amplamente difundida e traduzida, sem perder o valor profético dentro da instituição.

Entre as 28 crenças fundamentais dos adventistas do sétimo dia, encontra-se a crença no dom profético de Ellen G. White, que teria sido instruída por Deus “em favor de seu povo dos últimos dias” (NISTO CREMOS, 2017, p. 281). Mesmo que não tenha tomado para si o título de profetisa, White não se opunha àqueles que a identificassem como tal. Em uma publicação feita na Review and Herald em 26 de julho de 1906, ela explica:

Cedo em minha juventude foi-me perguntado muitas vezes: É você uma profetisa?

Sempre tenho respondido: Sou a mensageira do Senhor. Sei que muitos me têm chamado de profetisa, mas jamais reivindiquei esse título. [...] Por que não reivindico ser chamada de profetisa? Porque nestes dias muitos que audaciosamente pretendem ser profetas, representam um opróbrio à causa de Cristo; e porque minha obra inclui muito mais do que o termo “profeta” significa. [...] Reivindicar ser

profetisa é algo que jamais fiz. Se outros me chamam por esse nome, não discuto com eles. Mas a minha obra abrange tantos aspectos, que não posso chamar-me a mim mesma senão uma mensageira (WHITE apud. NISTO CREMOS, 2017, p.

281).

Entre os aspectos elencados pelos adventistas que justificam o reconhecimento de Ellen G. White como uma profetisa está: a concordância com a Bíblia, a exatidão de suas predições, o reconhecimento da encarnação de Cristo e a influência de seu ministério (NISTO CREMOS, 2017, p. 283-284). Ela se constitui como um espírito de Profecia, sendo que seus escritos não pretendem substituir a Bíblia.

FIGURA 01 – ELLEN G. WHITE EM REGISTRO FOTOGRÁFICO DE 1864.

FONTE: Ellen G. White Estate Inc31.

O teólogo adventista estadunidense Herbert E. Douglass escreveu um extenso livro sobre a vida e obra de Ellen G. White, traduzido pela Casa Publicadora Brasileira e intitulado

31 Esta e outras fotografias estão disponíveis no site do Ellen G. White Estate Inc:

<https://whiteestate.org/resources/photos/>. Acesso em: 26/12/2019.

“Mensageira do Senhor. O ministério profético de Ellen G. White”. Nele, são abordados diversos aspectos da vida pessoal e pública da escritora, trazendo informações desde sua infância até suas últimas horas de vida. Sendo assim, é uma obra que se destaca por trazer uma imagem extremamente positiva de Ellen G. White32, destacando a importância dela para a Igreja Adventista do Sétimo Dia e mostrando como sua vida inteira foi intimamente ligada à história da denominação. Mesmo que seja um texto em tom apologético, concordamos que Ellen G. White configura-se como uma personagem central na história do adventismo.

Atualmente, além dos livros publicados por White em vida e aqueles publicados após seu falecimento, o patrimônio literário da escritora também é formado por outros materiais, tais quais as incontáveis cartas para a família, membros da igreja e fiéis, seus diários (cerca de 60 volumes), sermões e artigos para periódicos (idem, p. 116). Uma das imagens mais utilizadas pela Igreja Adventista do Sétimo Dia para apresentar a profetisa é a fotografia dela sentada em uma mesa (FIGURA 01), com um olhar voltado para cima e em posição de escrita.

Dentre seus escritos e conselhos, White dedicou grande atenção ao tema dos relacionamentos e da família. Para citar alguns títulos, temos traduzidos em português os livros Cartas a Jovens Namorados, Fundamentos do Lar Cristão, O Lar Adventista e Testemunhos Sobre Conduta Sexual, Adultério e Divórcio. Além destes, ela se dedica a escrever sobre esses temas em diversos outros livros, como Educação, Ciência do Bom Viver, Mensagens aos Jovens, Testemunhos Seletos, entre outros. Algumas das preocupações centrais de White com relação ao matrimônio e que aparecem nas revistas adventistas são a idade certa para casar, ambos serem tementes a Deus, estarem em condições materiais e mentais desenvolvidas, estarem amadurecidos fisicamente, ter a certeza de que se trata de amor verdadeiro e não de uma paixão passageira, e também o jugo desigual. No livro Cartas a Jovens Namorados, ela atenta para a necessidade de a juventude cristã zelar pela responsabilidade sexual. Alegando que muitas jovens mulheres podem ser insinuativas e tentadoras, os jovens moços devem tomar cuidado para não se deixarem levar por elas a desfrutarem de prazeres que infringem as leis de Deus. Estas mulheres, segundo White, “sob este ou aquele pretexto cativam a atenção dos homens, sejam casados ou solteiros, e continuam seduzindo-os até que tenham transgredido a lei de Deus, tornando-se inaptos para o trabalho, e sua alma esteja em risco” (WHITE, 2006, p. 52).

32 Em contrapartida, existem autores que realizaram estudos críticos sobre a instituição, sobre a profetisa e sobre a perspectiva cristã criacionista, como é o caso de Ronald L. Numbers, que era também membro da IASD e por conta de seus posicionamentos contestadores foi banido da denominação.

Outro problema que atinge jovens casais cristãos é a pressa em se unir em matrimônio, sem o amadurecimento necessário e, em muitos casos, sem sequer o consentimento familiar.

De acordo com White, “afeições formadas em tenra idade têm muitas vezes resultado em uniões infelizes, ou em vergonhosas separações. As uniões precoces, formadas sem o consentimento dos pais, raramente são felizes” (WHITE, 2013, p. 82). Os jovens devem estar sempre atentos às orientações de tutores e familiares, seguindo princípios firmes, a fim de

“que possam desenvolver devidamente as faculdades que Deus lhes concedeu” (WHITE, 2004b, p. 345). Nesse sentido, deve-se prezar pela cautela ao escolher o/a companheiro/a de vida, devendo ser feita de forma “a melhor assegurar, aos pais e aos filhos, a felicidade física, mental e espiritual” (WHITE, 2013, p. 251). Sendo assim, na escolha do par ideal devem

“observar todo traço de caráter naquele com quem desejam unir sua vida” (WHITE, 2004b, p.

394). White orienta que o caminho percorrido até o casamento, como também a vida matrimonial, “deve ser caracterizado pela modéstia, simplicidade, sinceridade e pelo sincero propósito de agradar e honrar a Deus. O casamento afeta a vida futura tanto neste mundo como no vindouro. Um cristão sincero não fará planos que Deus não possa aprovar” (idem).

Muitas são as passagens em que White também condena as diversões mundanas, como o teatro, o circo e as danças. Escrevendo sobre isso no século XIX, ela afirma que “o amor a esses espetáculos aumenta cada vez mais, assim como o desejo de bebidas alcoólicas se fortalece com seu uso. O único caminho seguro é evitar o teatro, o circo e qualquer outro lugar de diversão duvidosa” (idem, p. 346). A reprovação a estas e outras atividades de lazer é algo que permanece ao longo do tempo no universo religioso adventista. Em Mocidade, muitas diversões populares entre a juventude nas décadas de 1950 a 1990 são condenadas nas páginas da revista. Cinema, bailes, discotecas, bares, todos estes são lugares propícios a levarem os jovens para longe dos propósitos de Deus. Na década de 1960, por meio de colunas como “Forum de Problemas da Juventude”33, a revista busca pautar assuntos como

“recreações verdadeiras e falsas”. Como opção de recreações “verdadeiras” e sadias para a juventude, eles sugerem a prática de esportes, leitura de obras edificantes e o cultivo de hobbies como filatelia, aeromodelismo, floricultura, entre outros. Na edição de novembro de 1966, até mesmo um grupo musical específico é colocado em pauta no “Forum de Problemas da Mocidade”: “Há algum mal em gostar dos Beatles?”. Para o editorial da revista, cultivar o gosto por bandas e grupos do tipo nada tem de benéfico à juventude.

33 Optamos por citar a seção da forma como é originalmente escrita, sem acento na palavra Fórum.

O pensamento de White sobre namoro, noivado e casamento também são perpetuados através das revistas adventistas, como a Vida e Saúde e Mocidade. Como veremos no próximo capítulo, muito do que circula de ideais sobre essas etapas da vida (que seriam naturalizadas, vivenciadas por todas as pessoas), bebe das influências do pensamento da profetisa adventista, desenvolvido em grande parte ao longo do século XIX. Como exemplo, o cultivo da religiosidade pelos jovens casais é bastante valorizado em seus escritos. White destaca em uma passagem do livro A Ciência do Bom Viver que “só em Cristo é que se pode com segurança entrar para a aliança matrimonial. O amor humano deve fazer derivar do amor divino os seus laços mais íntimos. Só onde Cristo reina é que pode haver afeição profunda, verdadeira e altruísta” (WHITE, 2013, p. 252). Outras características do pensamento da profetisa com relação ao casamento é a preocupação com os “fundadores do lar” e a influência dos mesmos em relação aos filhos e filhas.

Os que pensam em casar-se devem tomar em conta qual será o caráter e a influência do lar que vão fundar. Ao tornarem-se pais, é-lhes confiado um santo legado. Deles depende em grande medida o bem-estar dos filhos neste mundo e sua felicidade no mundo por vir. Determinam, em grande extensão, a imagem física e a moral que os pequeninos recebem. E da qualidade do lar depende a condição da sociedade; o peso da influência de cada família concorrerá para fazer subir ou descer o prato da balança (idem, 251).

Aqui, também podemos observar o destino natural de homens e mulheres em constituírem matrimônio, bem como terem filhos e filhas. Diversas são as passagens em que White reforça a separação dos papéis de gênero, algo também presente nos periódicos adventistas ao longo do século XX, incluindo aqui a revista Mocidade. Às mulheres cabem os serviços domésticos e o cuidado familiar no que tange à saúde, alimentação e bem-estar. Aos homens, a tarefa de prover a casa daquilo que seja necessário para a sobrevivência familiar.

“Todos se casam com um santo propósito” (WHITE, 2004a, p. 98), diz White; e estabelecida essa relação, ambos devem servir de modo a completarem um ao outros, afinarem suas qualidades e dons: “do homem Deus fez a mulher, para ser-lhe companheira e ajudadora, [...]

para alegrá-lo, encorajá-lo e abençoá-lo” (idem) e quanto ao marido, cabe “conquistar as puras afeições do coração da esposa” (idem). Em sua obra Cartas a Jovens Namorados, ela afirma que:

Embora as mulheres desejem homens de caráter forte e nobre, a quem possam respeitar e amar, essas qualidades precisam estar combinadas com ternura e carinho, paciência e tolerância. A esposa, por sua vez, deve ser alegre, bondosa e dedicada, assemelhando seu gosto ao de seu marido até onde for possível, sem perder sua individualidade. Os dois devem cultivar paciência e bondade, assim esse terno amor de um para com o outro tornará a vida de casados deleitosa e agradável (WHITE, 2006, p. 23).

Nos escritos de Ellen G. White, não se observa nada de novo com relação aos papéis de gênero à época. À mulher, resta cumprir suas tarefas no âmbito doméstico e familiar, servindo de suporte para o marido, que deve ser o provedor e grande protagonista da vida social. Em Testemunhos sobre Conduta sexual, Adultério e Divórcio, White evidencia o caráter vitalício da união matrimonial, que representa a união entre Cristo e Sua Igreja. Já no século XIX, criticava o modo como a juventude vislumbrava o casamento, muitas vezes esquecendo-se que se trata de uma decisão para toda a vida.

Na mente juvenil, o casamento se acha revestido de romance, e difícil é despojá-lo desse aspecto com que a imaginação o envolve, e impressionar a mente com o senso das pesadas responsabilidades compreendidas nos votos matrimoniais. Esses votos ligam os destinos de duas pessoas com laços que coisa alguma senão a mão da morte deve desatar (WHITE, 2008, p. 11).

Outro cuidado a ser tomado pelos jovens cristão na escolha das amizades e do/a companheiro/a de vida é com relação a “associações mundanas” (idem, p. 13). Segundo a profetisa, elas “tendem a colocar obstruções no caminho do serviço a Deus” (idem). Por esse motivo, qualquer relação entre crentes e descrentes é proibida, afinal, “em Sua Palavra o Senhor instruiu claramente Seu povo a não se unir com aqueles que não andam em Seu amor e temor” (idem, p. 14). Entre outros comportamentos não recomendáveis e baseados na doutrina cristã está o casamento em tenra idade, quando a jovem muitas vezes não passa de uma menina; casamentos muito precoces, quando mal se conhece o par escolhido; e também longos noivados, nesse caso, pautado por “saudável discernimento e discrição” (idem, p. 15), a duração ideal é de um a dois anos. Quanto ao divórcio ou separações, estes só podem ser verdadeiramente justificados em casos excepcionais, como quando um dos lados do casal renuncia à religião (apostasia) ou comete o pecado do adultério. Mesmo que um casal se divorcie pelas leis do país, sob as leis de Deus eles continuam sendo marido e esposa.

Em outro capítulo da mesma obra, Ellen G. White dedica-se a falar “outros males sexuais” (idem, p. 100), entre eles a excessiva condescendência sexual (cedendo a “paixões corruptas”) e desonrando o próprio corpo, a desconfiança entre marido e esposa, a transmissão de vícios entre pais e filhos34 e o abuso dos privilégios sexuais (apelando para a intemperança e o sensualismo). Entre as atitudes recomendadas pela conselheira, está a dignidade e o auto-respeito da esposa com relação ao sexo, a importância do bom exemplo com relação à conduta sexual e à preservação do corpo e da mente. Outra questão pautada por White é a diferenciação entre paixão e amor, algo que também aparece na revista Mocidade como alerta para os jovens casais.

34 Argumento este que era típico do discurso eugenista da época, e que aparece também nos escritos de Ellen G.

White sobre saúde e em publicações estadunidenses e brasileiras sobre saúde até meados do século XX.

Ainda em Testemunhos sobre Conduta sexual, Adultério e Divórcio são agregadas algumas percepções de Ellen G. White quanto às “perversões sexuais”, colocadas em pé de igualdade à homossexualidade, à masturbação e ao abuso sexual de crianças. A autora não dedicou longos escritos sobre esses temas, e muito do que escreveu estava relacionado aos escritos bíblicos. A “impureza sodomita”, como ela se refere à homossexualidade, deve ser combatida com jejum e oração, e aqueles “que não se arrependerem e não abandonarem toda impureza, cairão junto com os ímpios” (idem, p. 109). Para ela, principalmente os jovens são tentados pela depravação moral e têm suas almas poluídas, “a menos que se encontrem entrincheirados na verdade” (idem, p. 110), em comunhão com o plano de Deus para suas vidas. Em seus textos de orientação para crianças, reproduzidos na obra acima citada, White afirma que aqueles que praticam a masturbação estão em concordância com os planos de Satanás.

A masturbação destrói as boas resoluções, o esforço fervoroso e a força de vontade para formar um bom caráter religioso. Todos os que têm qualquer verdadeiro senso do que significa ser cristão sabem que os seguidores de Cristo estão na obrigação, como discípulos Seus, de trazerem todas as suas paixões, forças físicas e faculdades mentais, em perfeita subordinação à Sua vontade. Os que são controlados por suas paixões não podem ser seguidores de Cristo. Estão devotados demais ao serviço de seu mestre, o originador de todo o mal, para abandonarem seus hábitos corruptos e escolherem o serviço de Cristo (idem, p. 112).

Aqueles que estão em propósito com Deus controlam suas paixões e pensamentos impuros, pois sabem que a masturbação diminui a “energia vital” (idem) e é “base para várias doenças futuras” (idem). Ainda assim, como veremos no quarto capítulo, em Mocidade o ponto de partida para falar sobre a homossexualidade e a masturbação encontra-se muito mais nos argumentos psicanalíticos do final do século XIX (que relaciona as práticas ao desenvolvimento da criança e as influências familiares) e menos nos argumentos descritos por White ou na retórica cristã. Por ora, cabe apresentaremos as principais características do periódico adventista e como ele se trata dos temas mais emergentes relacionados à juventude na segunda metade do século XX.