• Nenhum resultado encontrado

4 EMANCIPAÇÃO HUMANA: A PERSPECTIVA DA REVOLUÇÃO

4.2 Emancipação Política e Humana em “A Questão Judaica”

A obra de Marx deve ser encarada como um produto do iluminismo, da filosofia e da tradição emancipatória burguesa, tanto pelo contexto em que é

concebida quanto, por consequência, no que diz respeito ao núcleo central de sua exposição: a liberdade humana. Por outro lado, é bem verdade que desde a Universidade de Berlim, sob a influência intelectual dominante de Hegel, passando pelo “clube de doutores” e pela Gazeta Renana, Marx reconheceu a legitimidade da crítica romântica ao projeto iluminista. Assim, foi possível para ele observar o movimento político protagonizado pela burguesia a partir de um ponto de vista crítico mas consciente de sua importância numa perspectiva histórica. O resultado foi que, encontrando em Hegel a expressão mais alta dessa filosofia burguesa, Marx estabeleceu um contraponto afim de descortinar os limites ocultos dessa emancipação política.

O que está em discussão nesse ponto não é apenas a transição da sociedade civil para o Estado, mas uma noção antropológica muito particular da filosofia liberal. Quer dizer, os princípios fundamentais da democracia burguesa, que ocupam lugar privilegiado nas inquietações de Marx, possuem raízes no século XVII, como vemos Macpherson (1979), e com eles amadurecem as ideias sobre a igualdade do valor moral das pessoas, o homem como proprietário de si e de suas capacidades, a inclinação natural do ser humano para o domínio do outro, etc. Hobbes foi, a rigor, a expressão máxima desses princípios, ilustrando, à exemplo de Plauto, o homem

como o lobo do próprio homem. E, por consequência, a justificação do dever político

universal, que mais tarde encontra em Locke o mesmo argumento da instabilidade e da insegurança decorrente de transgressões voluntárias da lei da razão no Estado de Natureza, alcança com a democracia burguesa o seu ápice. No mesmo sentido, Della Volpe remete à Rousseau, ao afirmar que a emancipação política instaurada pela Revolução Francesa é originada em um contrato social cujas partes são, em verdade, definidas por um axioma dogmático expresso no homem da natureza (1969, p. 19-20).

Assim, ao modificar os mecanismos políticos, jurídicos e ideológicos, reorganizando as forças sociais com a eliminação dos resquícios feudais, a emancipação levada à cabo pela burguesia europeia representou as promessas da libertação política, da prosperidade e da igualdade entre os homens. Na prática, no entanto, o movimento emancipatório, por conta de suas próprias contradições internas, pôde apenas concluir a emancipação política. Na esteira de Hegel, Marx

preocupou-se inicialmente com essa questão em particular. Ao retomar a ideia hegeliana, segundo a qual o Estado representa a vontade individual elevada à universalidade, o autor estabelece a proposição que, ao contrário do que supôs Hegel, o Estado, em verdade, promove a divisão do homem no seu interior, isto é, promove o “dualismo de vida individual e vida como gênero, de vida em sociedade burguesa e vida política” (MARX, 2010c, p. 45).

Essa divisão, na verdade, representa a cisão entre (a) o homem que vive sua vida cotidiana e participa de uma comunidade cujas leis são estabelecidas pela lógica do capital e (b) o cidadão abstrato, cujos direitos políticos o fazem igual aos outros homens abstratos que constituem a esfera política da sociedade. Nas palavras de Marx:

Na sua realidade mais imediata, na sociedade burguesa, o homem é um ente profano. Nesta, onde constitui para si mesmo e para outros um indivíduo real, ele é um fenômeno inverídico. No Estado, em contrapartida, no qual o homem equivale a um ente genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal (MARX, 2010c, p. 40).

Assim, enquanto membro da sociedade civil o homem não é mais do que a expressão histórica de sua existência, o homem burguês – é, portanto, um “fenômeno inverídico” na sua vida concreta. Por outro lado, enquanto membro do Estado político, ele apresenta-se como “ente genérico” – mais em uma comunidade imaginária e dono de uma “soberania fictícia”, onde sua individualidade real é constrangida a submeter-se à “universalidade irreal”. Desse modo, o Estado reduz à abstração a existência do cidadão, submetendo-o ao indivíduo egoísta, ao bourgeoi, tornando a existência política um falso apêndice da sociedade burguesa. Em outras palavras, como afirma Chasin (2000):

é muito importante notar que não se trata apenas de uma conciliação contra o princípio de universalidade, que lastreia idealmente os atos políticos, mas de uma subordinação degenerativa da política às particularidades da sociedade civil, no sentido de que a cidadania, a comunidade política são reduzidas a simples meio (CHASIN, 2000, p. 51).

Nessa divisão, a disposição sociável individual é mediada pela atividade política, ou seja, a determinação essencial de sua natureza é alienada à condição de força externa operada pelo Estado. Desse modo, a crítica marxiana demonstra que, com a referida emancipação, o homem não foi libertado para cultivar sua humanidade, mas tornou-se livre para exercer a sua humanidade não cultivada. A

analítica de Marx torna-se mais clara quando recomposta com os conceitos de “homem” e “alienação” trabalhados anteriormente. Isso porque na sociedade civil- burguesa, onde “faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para sua existência” (MARX, 2004, p. 85), o homem estranha-se dos demais, manifestando em sua vida privada os valores espirituais oriundos de sua atividade prática. A política, por consequência, ao submeter dissimuladamente o cidadão ao

homem burguês, compreende o “indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao

seu capricho privado e separado da comunidade” (p. 50). Por isso, afirma Marx:

a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política (MARX, 2010c, p. 54).

Percebe-se, aqui, uma síntese do movimento emancipatório de características plenamente humanas, segundo Marx. Ou seja, quando “o homem individual real” tiver se tornado “ente genérico”, isto é, recuperado para si o seu ser social, e, dessa forma, “reconhecido e organizado suas forças próprias”, ou seja, reconhecido a sociabilidade enquanto determinação essencial do seu ser, o homem, então, não separará “a força social na forma de política” - de modo que a política, enquanto desvio alienado de suas forças próprias, será, enfim, desnecessária para a sociabilidade humana. Desse modo, segundo Marx, a revolução social começa a transformação pela própria sociedade civil – reconduzindo o homem à sua humanidade. Isso porque o homem, diz Marx (2010c), é infinito em relação ao cidadão, assim como a vida humana é em relação à vida política. Por consequência, a eliminação da falsa determinação política, insignificante para o ser social, resulta em que a emancipação estará realizada com um caráter, de fato, universal – isto é, enquanto emancipação humana.

Em outras palavras, o projeto emancipatório burguês atinge seu ápice e mostra-se consumado quando a classe burguesa enquanto classe revolucionária destitui a ordem social anterior e impõe suas particularidades à totalidade do corpo social. Decorre disso que o Estado modela sua atividade política com base nas características da sociedade civil que o origina e, portanto, torna-se, a rigor, servo dela. A revolução social, por outro lado, tendo a classe proletária como classe

revolucionária atinge seu ápice quando essa suprassume a si mesmo, isto é, quando não submete a totalidade do corpo social à nenhuma particularidade senão aquelas potencialidades essenciais que constituem o ser social. Assim, “se o proletariado vence, nem por isso se converte, de modo nenhum, no lado absoluto da sociedade” (Marx, 2003, p. 49). Isso porque a realização plena da emancipação humana representa a dissolução das classes e, portanto, o proletariado só pode considerar- se de fato vitorioso quando já não existir enquanto classe.

Por consequência, segundo Marx, a revolução social, cujo protagonista é o proletariado, apresenta-se como a única forma de universalização verdadeira da libertação humana. É isso que possibilita ao autor a afirmação de que a emancipação política, embora um progresso histórico, “não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral” (Marx, 2010c, p. 41). A forma definitiva da emancipação humana, como se viu, está intimamente relacionada com a recuperação da humanidade condizente com o homem, isto é, com a reapropriação das determinações essenciais do ser social e, assim, de suas forças próprias. É, por fim, a total emancipação de todos os sentidos e atributos humanos.